Sumário: 1.Introdução - 2. O que é princípio? - 3. O princípio da confiança - 3.1 O princípio da confiança e da boa-fé - 3.2 O princípio da confiança e o princípio da segurança jurídica - 3.3 O princípio da confiança e a proteção aos direitos adquiridos - 3.4 O princípio da confiança e o respeito à coisa julgada - 3.5 O princípio da confiança nos atos administrativos e sua aplicação nas leis municipais - 3.6 O princípio da confiança e o Direito do Consumidor - 4. Conclusão - 5. Bibliografia.
1. Introdução
O princípio da confiança, intrinsecamente ligado aos princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito, traduz o dever-poder que possuem os três poderes públicos de cuidar da estabilidade decorrente de uma relação matizada de confiança mútua, no plano institucional.
Tal princípio, como será dito no decorrer do nosso trabalho, é um componente essencial para a promoção da previsibilidade do direito, bem como da certeza de que direitos alcançados e prescritos em leis não podem ser desrespeitados.
Destarte, o princípio da confiança tem o intento de proteger prioritariamente as expectativas legítimas que nascem do cidadão, o qual confiou na postura e no vínculo criado através das normas prescritas no ordenamento jurídico a que o indivíduo pretende cumprir e seguir as admoestações.
O trabalho a seguir tratará do princípio da confiança em seus diversos âmbitos e dará especial importância a proteção da confiança no âmago do Direito Constitucional e nas leis municipais.
2. O que é princípio?
Conforme o abalizado mestre Paulo Bonavides, “os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema normativo”. O princípio da confiança é, conforme veremos no decorrer de nosso trabalho, um dos mais imprescindíveis princípios do nosso ordenamento jurídico. Muito embora não esteja expresso em nossa Constituição Federal, é legítimo e quando respeitado, permite que as leis e atos normativos tenham um máximo de efetividade e aplicabilidade correta. Ademais, encontra-se ínsito no princípio de Estado de Direito, preceituado no artigo 2° da nossa Constituição Federal.
Mas, para entendermos de forma satisfatória o que seja o princípio da confiança é necessário que compreendamos, primeiramente, o que é princípio.
Os princípios são as premissas de todo um sistema. F. de Clemente, em “El método em la aplicación del Derecho Civil”, afirma que “assim como quem nasce tem vida física, esteja ou não inscrito no Registro Civil, também os princípios gozam de vida própria e valor substantivo pelo mero fato de serem princípio”, figurem ou não nos Códigos.
Assim, todo grupo harmônico de regras positivadas é apenas o resumo, o substrato de um complexo de altos ditames, o índice materializado de um sistema orgânico, a concretização de uma doutrina, série de postulados que enfeixam princípios superiores. Constituem estes as diretivas idéias do interpretador das leis, os pressupostos científicos da ordem jurídica.
Um dos melhores conceitos que consideramos para princípios é o da Corte Constitucional italiana: “Faz-se mister assinalar que se devem considerar como princípios do ordenamento jurídico aquelas orientações e aquelas diretivas de caráter geral e fundamental que se possam deduzir da conexão sistemática, da coordenação e da íntima racionalidade das normas, que concorrem, para formar assim, num dado momento histórico, o tecido do ordenamento jurídico”.
A respeito dos princípios gerais do Direito, estes progressivamente transformados em princípios constitucionais, são reconhecidos como a base e o teor da eficácia que a doutrina mais recente e moderna, em voga nas esferas contemporâneas da Ciência Constitucional, lhes reconhece e confere, escorada em legítimas razões e excelentes argumentos.
A juridicidade dos princípios passa por três fases distintas e que são de fundamental importância para que o estudante de Direito se apegue e se interesse por eles. Trataremos deles com base nos escritos do consagrado doutrinador constitucional, professor Paulo Bonavides.
Fase jusnaturalista – nessa fase, os princípios revelam uma natureza por demais abstrata. Sua normatividade é um tanto quanto nula e duvidosa, contrastando com o reconhecimento de sua dimensão ético-valorativa de idéia que inspira os postulados de justiça. Esta fase predominou durante um longo período, até o advento da Escola Histórica do Direito. Finalmente, o jusnaturalismo concebe os princípios gerais do Direito em forma de axiomas jurídicos ou normas estabelecidas pela razão. São, dessa forma, normas universais de bem obrar, princípios de justiça, constitutivos de um Direito idealizado, constituídos por verdades objetivas derivadas da lei divina e humana.
Fase positivista – “sustenta que os princípio gerais do Direito equivalem aos princípios que informam o Direito Positivo e lhe servem de fundamento. Estes princípios se induzem por via de abstração ou sucessivas generalizações do próprio Direito Positivo, de suas regras particulares. Os princípios já estão dentro do Direito Positivo e, por ser este um sistema coerente, podem ser inferidos no mesmo. Seu valor lhes vem não de serem ditados pela razão ou por constituírem um Direito Natural ou ideal, senão por derivarem das próprias leis. (Flórez-Valdés)”. Entrementes, essa idéia que faz o positivismo de manter um conteúdo principiológico com meras pautas programáticas supralegais, carece e muito de normatividade, o que acaba por estabelecer a sua irrelevância no ordenamento jurídico.
Fase pós-positivista – tem seu início no final do século XX . As Constituições promulgadas daí em diante passam a acentuar a “hegemonia axiológica dos princípios, que são convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”, consoante Paulo Bonavides, em seu livro Curso de Direito Constitucional. Os teóricos desse neopositivismo, em especial Dworkin, colocarão abaixo as doutrinas naturalistas e positivistas.
Assim, citando o insigne jurista argentino Agostín Gordillo, “os princípios são o oxigênio das Constituições na época do pós-positivismo. É graças aos princípios que os sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração de sua ordem normativa”.
3. O princípio da confiança
3.1. O princípio da confiança e a boa-fé
Originário do Direito Romano, o princípio da confiança mantém analogia com a proteção da confiança depositada pelos sujeitos no tráfego jurídico. A relação entre o princípio da confiança e a boa fé é deveras estreita. Aquele se mostra como princípio fundamental para a concretização deste, ao passo que, nas relações jurídicas deve-se ter a certeza de que há veracidade nos atos dos indivíduos. Ou seja, o princípio da confiança promove a previsibilidade do Direito a ser cumprido, assegurando que a fé na palavra dada não é infundada.
A boa-fé, considerada como um princípio básico, é um dos pilares mais necessários para a sustentação da teoria contratual atual. No entanto, uma vez que na maior parte das vezes os contratos são considerados, essencialmente, no espaço de aplicação do Direito Privado, entendemos que a boa-fé deve ser invocada, principalmente, nas relações entre Estado e cidadão. Ora, a Constituição Federal, as constituições estaduais e as leis orgânicas dos municípios não podem deixar de ser comparados com uma espécie de contrato social(aí invocando a teoria rousseniana), fundamentalmente pelo fato de sua elaboração ter sido feita por representantes do povo, aos quais foi dada a confiança da maior parte de uma determinada sociedade.
No entanto, situações do cotidiano nos obriga a subjazer a boa-fé, pois o que é observado na maioria das vezes é que o investimento ao princípio da confiança feito pelos indivíduos é protegido comumente pelo direito pela via de dispositivos legais, não pelo influxo da cláusula geral da boa-fé.
A fim de que o direito, baseado na boa-fé, proteja a confiança, é exigido, de forma cumulativa, via de regra, segundo o doutor Ronnie Preuss Duarte:
a. existência de uma situação justificada de confiança a ser protegida, ou seja, os fatos concretos verificados devem ter o condão de objetivar e efetivamente incutir no agente uma determinada expectativa. Afasta-se o atendimento ao requisito quando houver torpeza ou excessiva credulidade deste. Na prática, o requisito se reputa preenchido com a resposta positiva à seguinte indagação: qualquer pessoa normal, submetida às mesmas circunstâncias, criaria a expectativa afirmada pelo sujeito?
b. essencialidade da situação de confiança, tendo em vista que a confiança criada deve ter sido determinante na atividade jurídica do sujeito, sem a qual o indivíduo não teria agido. Na prática, necessária será a resposta positiva à seguinte indagação: a situação de confiança foi decisiva para a opção do sujeito pela prática de determinado ato jurídico?
c. Imputação ou responsabilidade pela situação de confiança, ou seja, o sujeito que infundiu a confiança deverá responder por ela. Não se admite, por exemplo, que A inspire a confiança e B venha a ser responsabilizado pela situação. O atendimento ao requisito se dá mediante a resposta positiva à seguinte indagação: o responsável pela situação de confiança é o sujeito que a incutiu?
d. Interesse na proteção da confiança, ou seja, deve haver um benefício prático efetivo ao sujeito para que se reclame a proteção da confiança. Deve a situação trazer uma vantagem ou evitar um prejuízo ao agente. Finalmente, reputa-se atendido o requisito com a resposta positiva à seguinte pergunta: a desproteção da situação criada causa prejuízos ao sujeito depositário da confiança?
Importante lembrar que tais requisitos, conforme Ronnie Preuss, são regras e estão
sujeitos à não observância, conforme o caso em questão. Pode haver ainda a aplicação de alguns apenas.
Assim, de acordo com Pais de Vasconcelos, “a confiança depositada pelas pessoas merece tutela jurídica. Quando uma pessoa atua ou celebra certo ato, negócio ou contrato, tendo confiado na atitude, na sinceridade, ou nas promessas de outrem, ou confiando na existência ou na estabilidade de certas qualidades das pessoas ou das coisas, ou das circunstâncias envolventes, o direito não pode ficar absolutamente indiferente à eventual frustração dessa confiança”, devendo levar em conta os princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da proteção da confiança.
3.2. O princípio da confiança e o princípio da segurança jurídica
O princípio da confiança encontra-se coligado com os elementos e aspectos subjetivos da segurança, ou seja, relaciona-se com a calculabilidade e a previsibilidade dos indivíduos no que tange aos efeitos jurídicos de atos dos poderes públicos, tanto nas esferas do Legislativo e Judiciário, como também no âmbito do Poder Executivo.
Concebido como um estágio avançado do standart Estado de Direito, o princípio da confiança assume contornos de príncipe fédérateur. Tal princípio, alojado no gênero princípio da segurança, é um componente essencial para a promoção da previsibilidade do direito, bem como da certeza (ao menos em tese) de que direitos alcançados e prescritos em lei não podem ser desrespeitados.
A linha diferenciadora situada entre o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança é realmente tênue. Enquanto, conforme J.J. Gomes Canotilho, a segurança jurídica está em conexão com elementos de ordem objetiva na esfera jurídica, a proteção da confiança atenta para os aspectos subjetivos de segurança. Todavia, ambas demandam, dentre outras, as seguintes características: transparência dos atos do poder, racionalidade, clareza de idéias e palavras e fiabilidade. Tais postulados são exigidos em qualquer ato, de qualquer um dos poderes.
Assim, é notório e devido que o cidadão tenha a convicção de que pode confiar na estabilidade e eficácia dos atos jurídicos, uma vez que estes estejam baseados em normas jurídicas em vigor e ainda, que tais normas sejam válidas.
A proteção da confiança não é o único princípio-espécie da segurança jurídica. A irretroatividade, a proteção dos direitos adquiridos, a legalidade ou qualidade da lei, e uma série de outros princípios são exemplos que estão alojados no bojo desse macroprincípio. Assim, todos eles integram e estão presentes na esfera de incidência da segurança jurídica, a essa vinculando-se por uma forte, porém de diferenciada ligadura. Algumas têm sua interface com esse cânone, de maior amplitude, assegurada por sua vocação ao combate da insegurança e da incerteza que podem atingir a norma jurídica tanto no seu aspecto formal quanto no que toca a seus requisitos de fundo. Outros, contudo, aproximam-se da segurança jurídica, complementando-a em sua formatação, pela predisposição de contornar e evitar incertezas decorrentes da aplicação do direito no tempo.
Vejamos, a seguir, a classificação formulada por Bertrand Mathieu, em “Constitution et Securité Juridique”:
O princípio da segurança jurídica
- Princípios atinentes à qualidade do direito
1. Princípio da claridade da lei
2. Princípio da acessibilidade
3. Princípio da eficácia
4. Princípio da efetividade
- Princípios atinentes à exigência de previsibilidade do direito
1. Princípio da irretroatividade
2. Princípio da proteção dos direitos adquiridos
3. Princípio da confiança legítima
4. Princípio da estabilidade das relações contratuais
Os princípios da segurança jurídica e da confiança são de extrema necessidade no âmbito do Direito Constitucional, ao passo que um de seus principais atributos vem a se configurar na sua vocação ao reforço, entendido como de suma importância, da proteção dos direitos fundamentais. Conforme Canotilho, tais princípios podem ser formulados do seguinte modo: “o indivíduo tem o direito e o poder de confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam ou efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.
O princípio da segurança jurídica e seu subprincípio são invocados e gozam de importância quando manifestados em relação a: atos normativos (proibição de normas retroativas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos); atos jurisdicionais (inalterabilidade do caso julgado); atos administrativos (tendencial estabilidade dos casos decididos através de atos administrativos constitutivos de direitos). Veremos a seguir cada um deles, observando suas mimezes no Direito Constitucional e atentando para sua aplicação no âmago das leis municipais.
3.3. O princípio da confiança e a proteção aos direitos adquiridos
Quanto à proteção da confiança e da segurança jurídica referente aos atos normativos, devemos atentar para além da clareza das normas legais. Faz-se mister que consideremos a questão da retroatividade das leis e atos normativos. Vivemos em um atual estado de direito que legitima o princípio da confiança, ao passo que este protege a permanência de situações jurídicas já solidificadas pelo tempo. É claro que não pode haver uma absoluta proibição da retroatividade de normas, ao passo que a imutabilidade das leis colide com a dinâmica da sociedade. Assim, a exemplo de J.J. Gomes Canotilho e Valmir Pontes Filho, uma norma retroativa é inconstitucional quando a Constituição Federal conduzir a este resultado, afirmando a violação de direitos adquiridos.
Mas o que seria direito adquirido? Prescreve o art. 5°, inciso XXXVI da Constituição Federal de 1988: “A lei não prejudicará o direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Ou seja, no título que define quais os direitos e garantias fundamentais, nós temos o direito adquirido, sendo ele, portanto, um direito fundamental, alcançado constitucionalmente. Ainda, no § 2° do art. 6° da Lei de Introdução ao Código Civil, observamos o seguinte: “Consideramos adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo ou condição pré-estabelecida inalterável a arbítrio de outrem.”
Portanto, conforme assevera Celso Bastos, o direito adquirido, atua como um recurso da Constituição para limitar a retroatividade das leis, que passam por constantes modificações. O Estado deve atualizar suas leis, devido à dinâmica da sociedade. Contudo, utilizar a lei em caráter retroativo, não esporadicamente, repugna, pois fere situações jurídicas já consolidadas no tempo, e essa é umas das principais fontes da segurança, bem como da confiança em um ordenamento do homem na terra.
Assim, preceitua o abalizado doutrinador J.J. Gomes Canotilho: “A orientação normativo-constitucional não significa que o problema da retroatividade das lei deva ser visualizado apenas com base em regras constitucionais. Deverá ainda acrescentar-se: uma lei retroativa pode ser inconstitucional quando um princípio constitucional, positivamente plasmado e com suficiente densidade, isso justifique. Esta formulação, que pretende ser uma conseqüência da idéia de constituição como sistema aberto de normas e princípios, evita duas unilateralidades: (1) a redução do parâmetro normativo-constitucional às regras, esquecendo-se ou desprezando-se a natureza de direito atual e vinculante dos princípios: (2) a derivação para uma retórica argumentativa a partir de princípios abstratos, insuficientemente positivados ou desprovidos de densidade normativa, tais como o princípio de non venire contra factum proprium, o princípio da vinculação temporal do direito (cada tempo tem o seu direito, cada direito tem o seu tempo), o princípio da garantia de direitos adquiridos, o princípio do livre desenvolvimento da personalidade, o princípio da igualdade do patrimônio. Uma argumentação ancorada exclusivamente em princípios desse gênero reconduzir-se-á a um infrutífero esquema tautológico (ex. deve ser protegida a confiança do cidadão digna de ser protegida, devem proteger-se os direitos adquiridos por serem direitos adquiridos)”.
Uma interessante questão a ser abordada é a seguinte: diante de leis novas que podem vir a gerar efeitos sobre fatos passados, é permitido que o princípio da confiança seja invocado? Concordamos que a resposta seja afirmativa tanto nos casos de retroatividade autêntica (uma norma tem efeito sobre o passado) quanto nos casos de retroatividade aparente (uma lei tem a pretensão de vigorar para o futuro, mas acaba por tocar em situações, relações jurídicas ou direitos desenvolvidos no passado, mas ainda existentes). Entretanto, nesse último caso, o princípio da proteção da confiança é aplicado com menor intensidade. Mas há de se ressaltar que os direitos já conquistados dos cidadãos devem ser protegidos, atendendo ao cânone dos direitos fundamentais e é preciso que o legislador seja cauteloso e preveja normas justas para as situações em causa.
Finalmente, percebemos que no Direito Constitucional brasileiro, a proibição ou freada no retrocesso de leis e atos normativos decorre de alguns princípios de matriz jurídico-constitucional, como: a) O princípio do Estado Democrático e Social de Direito, que traz consigo a necessidade de segurança jurídica, mantida e abrangida pelo princípio da confiança, oferecendo segurança não só contra medidas retroativas, mas, de certa forma, contra aquelas de cunho retrocessivo; b) o princípio da máxima efetividade das normas que conceituam os direitos fundamentais, com otimização e eficácia do princípio da segurança jurídica, que dá suporte contra medidas retrocessivas; c) no princípio da proteção da confiança, que exige do poder público a boa-fé nas relações com os particulares e o respeito pela confiança que os indivíduos depositam na estabilidade e continuidade do ordenamento jurídico.
3.4. O princípio da confiança e o respeito à coisa julgada
Como já foi dito anteriormente, o princípio da confiança, como espécie do princípio da segurança jurídica, guarda muitas de suas características. Dessa forma, ambos não são apenas elementos essenciais do princípio máximo do estado de direito no nosso Direito Constitucional, mas são desenvolvidos em torno do conceito de estabilidade. Este trata a respeito da situação em que, uma vez que as decisões do poder público são adotadas, estas não podem ser modificadas de forma arbitrária, sob pena de violar direitos adquiridos pelos cidadãos.
O inciso XXXVI do art. 5° da nossa Magna Carta preceitua que a lei não prejudicará a coisa julgada. E é com base nessa regra que o princípio da confiança, no que tange aos atos jurisdicionais, aponta para a coisa julgada, algo que vai promover a garantia da certeza jurídica. O aprazado instituto da coisa julgada assenta na estabilidade, de forma definitiva, das decisões judiciais, seja pela exclusão da possibilidade de entrar com recursos ou reapreciação de questões, seja porque a relação material controversa é decidida em termos irretratáveis e definitivos, impondo-se, assim, a todos os tribunais.
3.5. O princípio da confiança nos atos administrativos e sua aplicação nas leis municipais
Em relação aos atos da administração, os princípios da confiança e da segurança pública indicam a idéia de força de caso decidido (Bestandkraft) dos atos administrativos (conceito de Canotilho). Assim, o ato administrativo desfruta de uma propensa imutabilidade traduzida pela auto-vinculação da administração na qualidade de autora do ato e como conseqüência da obrigatoriedade de tal ato; e pela tendencial irrevogabilidade a fim de proteger e salvaguardar os interesses dos indivíduos destinatários dos atos, atendendo à proteção da confiança, bem como da segurança jurídica. Nesse sentido, os órgãos municipais estão sujeitos a uma auto-vinculação em relação aos seus atos anteriores, como corolário do princípio da confiança.
A exemplo do que foi dito supra, o princípio da confiança ou da boa-fé nas relações administrativas reforçam a posição de que os Procuradores Municipais devem defender única e exclusivamente o Município. De tal fato pode-se tirar o proveito que a proteção da confiança traduz-se num princípio de dever-poder de qualquer administrador público zelar pela estabilidade decorrente de uma relação matizada de mútua confiança, no plano institucional. Assim, em harmonia com Nobert Achterberg, “o cidadão deverá ser protegido na sua confiança na legalidade da ação administrativa”.
O Direito Municipal em pouco ou quase nada difere do Direito Constitucional no que diz respeito ao princípio da confiança. O “legitimate expectation”, expressão inglesa com a qual é conhecido, no âmbito das leis municipais, continua por ser revelador do conteúdo do cânone da segurança jurídica e da estabilidade, impondo a idéia de manutenção da ordem jurídica e das situações juridicamente definidas por essa ordem.
Com efeito, as leis municipais, uma vez em vigor e válidas, devem ter ainda eficácia, e aqueles que a construíram têm o dever de respeitar seus preceitos de forma a assegurar o direito dos cidadãos nelas prescritos, bem como promover o maior grau possível de legitimidade das mesmas.
Tenhamos como exemplo a Lei Orgânica do Município de Fortaleza, em seu art. 45:
“Serão leis complementares, além de outras previstas nesta Lei Orgânica:
I - Código Tributário do Município;
II - Código de Obras;
III - Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado;
IV - Código de Posturas;
V - Lei instituidora do regime jurídico único dos servidores municipais;
VI - Lei Orgânica da Guarda Municipal;
VII - Lei orgânica da Procuradoria-Geral do Município;
VIII - Código Sanitário Municipal;
IX - Lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos;
X -Código de Saúde;
XI -Código de Defesa do Meio Ambiente”.
Propostas tais leis e uma vez postas em vigor no ordenamento jurídico do Município, os Poderes Administrativo e Executivo têm, não apenas o condão, mas sobretudo, o poder-dever de assegurar ao cidadão que seu direito é certo, estável e dotado de efetividade. Caso contrário, o princípio da confiança, juntamente com o princípio da segurança jurídica, serão violados, sob pena de o governo perder sua legitimidade e cair em descrença do povo.
Assim, se o Município, a exemplo, cobrar, aumentar ou exigir tributo sem prévia lei que o estabeleça, estará claramente violando de forma arbitrária, suas próprias normas, pondo em cheque a intrínseca relação Estado-cidadão, uma vez que o princípio da confiança na lei fiscal traduz-se praticamente a possibilidade dada ao contribuinte de conhecer e computar os seus encargos tributários com base exclusivamente na lei.
3.6. O princípio da confiança e o Direito do Consumidor
O princípio da confiança tem a pretensão de salvaguardar, de modo prioritário, as expectativas legitimadas fruto do outro contratante, o qual confiou na postura, nas obrigações e no vínculo criado através da declaração de vontade do parceiro. Assim, é protegida a boa-fé e a confiança, ambas depositadas pelo consumidor na declaração do outro contratante.
A situação costumeira de o comerciante propor uma oferta ao consumidor e este por ela ter-se interessado, faz-nos supor que o consumidor acreditou na boa-fé do ofertante, emitindo, por exemplo, um cheque pós-datado. Há desse modo, um contrato verbal cujo conteúdo é uma obrigação de não-fazer, ou seja, de não apresentar o título ao Banco antes da data previamente acertada entre os contratantes. As garantias são, então, dadas de ambos os lados da relação de consumo. O cliente prometeu que o cheque terá fundos quanto for sacado e o vendedor que só o apresentará na data que foi acertada. Trata-se de um acordo bilateral de vontades, com obrigações recíprocas, em que as partes estipulam, livremente, o modo de aquisição e o pagamento daquilo que foi acertado.
O princípio da confiança baseia-se no indivíduo e sua primazia, o qual recebe a declaração de vontade, em sua boa-fé ou má-fé, mas tem como fim proteger os efeitos do contrato e assegurar, através da ação do direito, a proteção aos legítimos interesses e a segurança das relações. O Código do Consumidor instituiu no Brasil o princípio da confiança do consumidor, que consta de dois aspectos deveras relevantes: a proteção da confiança no vínculo contratual – tem o intuito de assegurar o equilíbrio das obrigações e os deveres de cada uma das partes, através da proibição de cláusulas abusivas (em especial nos contratos de adesão) e de uma interpretação sempre pró-consumidor; a proteção da confiança na prestação contratual – procura garantir ao consumidor a adequação ao produto ou serviço adquirido, assim como evitar riscos e prejuízos oriundos destes mesmos produtos e serviços. Assim, se ocorrer, no caso supracitado, a apresentação do cheque antes da data acordada entre as partes contratantes, configurar-se-á a quebra da confiança existente nesta relação de consumo.
Consoante os aspectos observados, o mundo atual é um espaço para novos desafios no ramo do Direito Contratual e este só pode ser atendido de forma conveniente, com a aplicação dos princípios da confiança e da boa-fé. Assim, o ideal almejado é que o mercado seja um local seguro, onde haja harmonia e lealdade nas relações entre fornecedores e consumidores.
4. Conclusão
Percebemos em nossos estudos o quão importante e fundamental é o princípio da confiança em um Estado Democrático de Direito como o Brasil. Ademais, uma vez que nosso País é uma federação composta pela “união indissolúvel dos Estados e Municípios”, a aplicabilidade e efetividade da proteção da confiança legítima do cidadão faz-se extremamente necessária.
Muito embora não esteja expresso (apesar de ínsito no art. 2° da nossa Carta Magna), tal princípio existe, consistindo em uma das manifestações do próprio espírito de nossa legislação constitucional, bem como municipal.
Importante ressaltar nossa opinião no que tange à classificação do princípio da confiança. Consideramos tal princípio como um princípio geral do direito, uma vez que decorrem do próprio fundamento da legislação positiva que, embora não se mostrando expressos, constituem os pressupostos lógicos necessários das normas legislativas.
Finalmente, o princípio, utilizando as palavras do abalizado jurista Agostín Gordillo, “estabelece uma direção estimativa, em sentido axiológico, de valoração, de espírito. O princípio exige que tanto a lei como o ato administrativo lhe respeite os limites e que além do mais tenham o seu mesmo conteúdo, sigam a mesma direção, realizem o seu mesmo espírito”. E o princípio da confiança, afirmativamente, insere-se nesse conceito.
5. Bibliografia
ACQUAVIVA. Dicionário Jurídico Brasileiro.8 ed. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1995.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.15 ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004.
CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.3.ed. Coimbra: Editora Almedina, 1997.
DUARTE, Ronnie Preuss. Revista dos Tribunais: Boa fé, abuso de direito e o Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: 11/2003. v. 817.
GORDILLO, Augustin. Introdución al Derecho Administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2001.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004.
(Elaborado em fevereiro/2006)
Mariana Almeida de Souza
Estudante de Direito da Universidade Federal do CearáCódigo da publicação: 1501
Como citar o texto:
SOUZA, Mariana Almeida de..O princípio da confiança do Direito Constitucional e sua aplicação nos municípios. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 194. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/1501/o-principio-confianca-direito-constitucional-aplicacao-municipios. Acesso em 3 set. 2006.
Importante:
As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.
Pedido de reconsideração no processo civil: hipóteses de cabimento
Flávia Moreira Guimarães PessoaOs Juizados Especiais Cíveis e o momento para entrega da contestação
Ana Raquel Colares dos Santos LinardPublique seus artigos ou modelos de petição no Boletim Jurídico.
PublicarO Boletim Jurídico é uma publicação periódica registrada sob o ISSN nº 1807-9008 voltada para os profissionais e acadêmicos do Direito, com conteúdo totalmente gratuito.