INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende abordar o tema relativo à proibição da prisão civil por dívida sob a ótica da hermenêutica constitucional concretizadora dos direitos fundamentais.

Sabe-se que trata-se de tema complexo e de intrincada discussão no âmbito da doutrina e jurisprudência, em seus variados ramos.  O artigo, porém, não discute as hipótese de prisão, não aborda a questão relativa ao Pacto de São José da Costa Rica, não suscita controvérsia sobre o conceito semântico do termo “dívida” e muito menos sobre a extensão dos créditos de natureza alimentar.   

Passando ao largo de todas essas discussões, o texto procura abordar o tema exclusivamente a luz da moderna interpretação constitucional.  Para atingir o intuito proposto, o artigo é dividido em quatro partes.  Na primeira, é abordada a previsão constitucional de proibição de prisão civil por dívida.  Na segunda são expostas as bases teóricas sobre de a definição e conteúdo dos direitos fundamentais. Na terceira, é abordada a interpretação constitucional  concretizadora dos direitos fundamentais. Na parte final,  é verificada, em caráter conclusivo,  a necessidade de ponderação de interesses em concreto para o cabimento da prisão civil por dívida para a  adequada concretização dos direitos fundamentais.

A PROIBIÇÃO DA PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA INSERTA NO ART.  5º , INCISO LXVII DA CONSTITUIÇÃO

Dispõe o art. 5º LXVII da Constituição Federal que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

Ao interpretar o citado artigo, doutrina e jurisprudência se debatem, para precisar o conteúdo da proibição constitucional.  Questiona-se, assim,  se  o termo dívida pode ser interpretado como “obrigação de pagar quantia” ou como “obrigação civil”.  Abordando a questão, Marcelo Lima Guerra (2003, p. 135) expõe compreendo-se dívida como obrigação de pagar quantia, a vedação imposta pela Constituição Federal não exclui a possibilidade de ser admitida no ordenamento o uso de prisão civil para a tutela de outras modalidades de obrigação, como as de fazer e não fazer.  Por outro lado, compreendendo-se dívida como obrigação civil, então a vedação seria absoluta.

Parece, contudo, que tais discussões de ordem semântica não são hábeis à discussão do tema, tendo em vista que o que realmente se discute é o direito à liberdade, enquanto direito fundamental, em cotejo com outros direitos fundamentais, como o próprio direito à vida, atingido pelo eventual inadimplemento das obrigações.

Por tal motivo, urge a análise da questão sob o ponto de vista da interpretação constitucional concretizadora dos direitos fundamentais e da ponderação de valores, o que é empreendido nos tópicos seguintes.

DEFINIÇÃO E CONTEÚDO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A conceituação do que sejam direitos fundamentais é particularmente difícil, tendo em vista a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico.  Aumenta essa dificuldade, o fato de se empregarem várias expressões para designá-los, como “direitos naturais”, “direitos humanos”, “direitos públicos subjetivos”, “liberdades fundamentais” etc.

Ingo Sarlet (2006, p. 35-37) estabelece a distinção entre “direitos fundamentais”, “direitos humanos” e “direitos do homem”.  Nesse sentido, segundo o autor, o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, enquanto que a expressão direitos humanos seria relativa aos documentos de direito internacional, por referir-se às posições jurídicas que se reconhece ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação a determinado Estado.  Já a expressão “direitos do homem” seria, segundo Sarlet (2006, p. 37) marcadamente jusnaturalista, de uma fase que precedeu o reconhecimento dos direitos no âmbito do direito positivo interno e internacional.

Cumpre frisar que o conteúdo dos direitos fundamentais foi sendo paulatinamente alterado, a partir da verificação do seu caráter histórico.  Com efeito, consoante assinala Canotilho (2003, p. 1395), os direitos fundamentais “ pressupõem concepções de Estado e de Constituição decisivamente operantes na atividade interpretativo-concretizadora das normas constitucionais”. 

Importa destacar, ainda,  a classificação dos direitos fundamentais procedida por Ingo Sarlet (2006 p. 194) que os divide em dois grupos: direitos fundamentais como direitos de defesa e direitos fundamentais como  direitos a prestações.  Esse último grupo, por seu turno, subdivide-se em  direitos a prestações em sentido amplo, direitos à proteção, direitos a prestações em sentido estrito – direitos sociais  -  e direitos à participação na organização e procedimento.

A primeira divisão apontada, relativa aos direitos de defesa e direitos a pretações,  parte da clássica distinção efetivada pela  doutrina.  Com efeito, os direitos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos, que deverá respeitar os direitos individuais.  Por outro lado, os direitos fundamentais a pretações implicam uma ostura ativa do Estado, que é obrigado a colocar a disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material (SARLET, 2006, P. 216)

Em relação aos direitos de defesa, esses abrangem não somente os tradicionais direitos de liberdade e igualdade, como também os direitos à vida, à propriedade, às liberdades fundamentais de locomoção, de consciência, de manifestação de pensamento, de imprensa e de associação, além dos direitos que irradiam da personalidade, da nacionalidade e da cidadania,  bem como os direitos coletivos.

Em relação aos direitos fundamentais como prestações, estes se encontram vinculados à concepção de que ao Estado incumbe colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundametnais.   Dentro da subdivisão, efetivada por Sarlet (2006) entre direitos a prestações em sentido amplo e estrito, tem-se que, segundo o autor, na rubrica de direitos a prestações em sentido amplo enquandram-se todos os direitos fundamentais de natureza tipicamente (ou, no mínimo, predominantemente) prestacional que não se enquadram na categoria de direitos de defesa.   Quanto aos direitos a prestações em sentido estrito, Sarlet (2006, p. 221) aponta que estes se reportam à atuação dos poderes públicos como expressão do Estado Social.  Trata-se, por outro lado, de direitos a prestações fáticas que o indivíduo, caso dispusesse de recursos necessários, poderia obter através de particulares. São, assim, os chamados direitos fundamentais sociais.

Voltando-se aos direitos fundamentais a prestação em sentido amplo, Sarlet ( 2006, p. 222) destaca os direitos à proteção, que seriam aqueles que outorgam ao indivíduo o direito de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências de terceiros em determinados bens pessoais.

 Há,  também,  a dimensão  dos direitos fundamentais de participação na organização e procedimento.  Tal dimensão, além de outorgar legitimidade ao Estado Democrático de Direito, ao tempo em que assegura uma democracia com elementos participativos.  Neste aspecto, Sarlet ( 2006, p. 226) afirma que importantes liberdades pessoais somente atingem um grau de efetiva realização no âmbito de uma cooperação  por parte de outros titulares de direitos fundamentais, implicando prestações estatais de cunho organizatório.

A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL CONCRETIZADORA DOS DIRIETOS FUNDAMENTAIS

Dado o caráter aberto e amplo da constituição, os problemas de interpretação surgem com maior freqüência do que em outros ramos do direito, em que as normas são mais detalhadas.

Nesse sentido, afirma Konrad Hesse (1992, p. 35) que o objetivo da interpretação constitucional é deduzir o resultado constitucionalmente correto através de um procedimento racional e controlável. Deve, ainda, fundamentar esse mesmo resultado, criando certeza e previsibilidade jurídicas e não apenas a solução de determinado caso concreto.

A teoria tradicional da interpretação procura revelar a vontade objetiva da norma ou a vontade subjetiva do legislador mediante a análise do texto, de seu processo de criação, além do sentido e finalidade da norma.  Porém, para Hesse (1992, p. 38) essa idéia tradicional apresenta uma série de dificuldades, em especial porque os métodos de interpretação tradicional não oferecem orientação suficiente, já que deixam em aberto que orientação seguir quando conduzem a resultados de interpretação diferentes.

Pode-se afirmar que a interpretação constitucional deve ser concretizadora. Procurando precisar esta última idéia, Canotilho (2003, p. 1201) esclarece que concretizar a constituição traduz-se no processo de densificação de regras e princípios constitucionais.  Densificar uma norma, por outro lado, significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional, especialmente necessitado de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos Segundo Hesse (1998, p. 61), interpretação constitucional é concretização de modo que “o conteúdo da norma interpretada concluiu-se primeiro na interpretação”.

Inicialmente, cumpre frisar que a concretização da constituição pressupõe um entendimento do conteúdo da norma. Esse pressuposto se relaciona à pré-compreensão e ao problema concreto a ser resolvido.  Para Hesse (1998, p. 61), o intérprete entende o conteúdo da norma a partir de uma pré-compreensão. Destaca, nesse sentido, a importância de tornar consciente e fundamentar essa pré-compreensão, com o objetivo de “proteger-se contra o arbítrio de idéias e a estreiteza de hábitos de pensar imperceptíveis e dirigir o olhar para as coisas mesmas”. O autor ressalta, ainda, a segunda condição da interpretação constitucional: o entendimento. Dessa forma, a concretização somente é possível a partir do método tópico do caso concreto (HESSE, 1998, p. 62).

Para Hesse (1998, p. 63), a vinculação da interpretação à norma concretizada, à (pré)compreensão do intérprete e ao problema a ser resolvido tem significado negativo e positivo.  Negativamente, significa que não pode haver método de interpretação autônomo, separado desses fatores.  Positivamente, significa que o procedimento de concretização deve ser determinado pelo objeto da interpretação, pela constituição e pelo problema respectivo.

O procedimento de concretização proposto por Hesse (1998, p. 63) prevê que no exame tópico, guiado e limitado normativamente, devem ser achados e demonstrados pontos de vista dirigentes, fundamentando-se a decisão final da maneira mais convincente possível.   Se esses pontos de vista contêm premissas materialmente apropriadas, elas possibilitam deduções que conduzem ou contribuem para a resolução de problemas.  O intérprete, então, deve escolher os pontos de vista (topoi) apropriados, excluindo os demais.

Hesse (1992, p. 45) esclarece que aos princípios de interpretação constitucional corresponde a missão de orientar o processo de interpretação.  Dentre esses princípios, ressalta, em primeiro lugar, o princípio da unidade da constituição, pelo qual a constituição deve ser sempre interpretada de tal maneira que se evitem contradições com as outras normas da mesma constituição. Em íntima relação com o primeiro, Hesse (1992, p. 46) relaciona o princípio da concordância prática, que estabelece os limites dentro da ponderação de valores, na hipótese de conflito entre os bens jurídicos protegidos pela norma constitucional.

Hesse (1992, p. 47) destaca, ainda, o princípio da correção funcional, segundo o qual, se a constituição regula de uma determinada maneira a repartição de atribuições dos agentes das funções estatais, o órgão de interpretação deve manter-se fiel às funções previamente estabelecidas.  Acrescenta que esse princípio é aplicável em particular às relações entre o legislador e o tribunal constitucional, limitando-se as atividades deste último. Afasta-se, assim, uma interpretação que conduza a uma restrição da liberdade conformadora do legislador além dos limites estabelecidos pela constituição.

Outro princípio destacado por Hesse (1992, p. 47) é o da eficácia integradora.  Com base nele, se a constituição se propõe a criação e manutenção da unidade política, tal fato exige que se dê preferência à interpretação que promova e mantenha a dita unidade.

O último princípio apontado por Hesse (1992, p. 47) é o da força normativa da constituição, segundo o qual se deve dar preferência à solução dos problemas jurídico-constitucionais que conduzam à máxima efetividade da norma constitucional.  De acordo com esse princípio, deve-se ter compromisso com a efetividade da constituição de forma que, entre interpretações possíveis, dever-se-á preferir aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando-se, ao máximo, soluções que “se refugiem no argumento da não auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador” (BARROSO; BARCELOS, 2006, p. 364).

 CONCLUSÃO - A NECESSIDADE DE PONDERAÇÃO DE INTERESSES EM CONCRETO PARA O CABIMENTO DA PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA

A abordagem empreendida nos itens anteriores é importante para demonstrar que, em primeiro lugar, como já foi dito, uma adequada leitura do disposto no art. 5º, inciso LXVII da Constituição Federal somente pode ser efetivada a partir de princípios da interpretação constitucional e não propriamente a partir de uma interpretação filológica ou semântica do dispositivo.

Outrossim, há que salientar que a interpretação dos direitos fundamentais deve ser efetivada em concreto, através da ponderação de valores e interesses, e ao a partir de uma hierarquização abstrata e absoluta de direitos. 

Assim, conquanto de suma importância, o direito fundamental de liberdade não pode ser protegido de forma absoluta, sem a adequada ponderação.  Como ressalta Didier Júnior, Braga e Oliveira ( 2007, p. 365)  O surgimento de novos direitos, sem conteúdo econômico, como, por exemplo, direito ao meio –ambiente, à não segregação racial, trouxe  novos problemas a serem resolvidos pela hermenêutica constitucional concretizadora dos direitos fundamentais.

Desta forma, pode-se afirmar que, de uma maneira geral, a prisão civil não deve ser admitida para as obrigações de conteúdo patrimonial.  Com efeito, por estas obrigações entende-se não apenas as de conteúdo pecuniário, mas todas aquelas que podem ser convertidas em tanto, como algumas obrigações de fazer, de entrega de coisa etc.

Porém,  em todos os casos em que a decisão judicial reconheça um direito não patrimonial, urge a análise de valores e interesses no caso concreto, para se decidir sobre a viabilidade da prisão civil, ante necessidade de ponderação a ser efetivada pelo julgador.

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Data de elaboração: maio/2008

 

Como citar o texto:

PESSOA, Flávia Moreira Guimarães..Prisão civil por dívida e hermenêutica constitucional concretizadora dos direitos fundamentais. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 5, nº 270. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/1916/prisao-civil-divida-hermeneutica-constitucional-concretizadora-direitos-fundamentais. Acesso em 29 jun. 2008.

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