RESUMO
A aplicação de sanções administrativas decorre sempre de atividade vinculada do aplicador. Nesse procedimento é necessário primeiramente que a conduta a ser reprimida esteja tipificada, no caso das penalidades previstas na Lei 8.666/93, no contrato administrativo ou edital de licitação, a fim de possibilitar a adequação dos fatos decorrentes da execução das obrigações contratuais. Assim, ante a ocorrência de execução irregular ou inexecução total ou parcial, a Administração irá destacar a penalidade aplicável, considerando a finalidade da sanção e os princípios do interesse público e da proporcionalidade. Ocorre que muitas vezes a fixação da penalidade não atende a legalidade ampla (campo onde se encontram incluídos os princípios), ocasiões em que o Administrador deverá relativizar a vinculação no ato de penalizar.
Palavras-Chave: contrato administrativo, sanção, vinculação, proporcionalidade, razoabilidade, supremacia do interesse público, legalidade ampla e estrita, finalidade.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é estudar a aplicação das penalidades da Lei 8.666/93 pela Administração Pública, em decorrência de falhas na execução dos contratos administrativos causadas pelos contratados. No assunto, será abordado especificamente a compatibilização da sanção com a conduta, considerando-se que a inadequação entre a sanção e a conduta pode ofender diversos princípios administrativos e constitucionais, configurando ilegalidade em sentido amplo, suscetível de correção.
Este estudo se justifica pelo fato de que, com o melhor aparelhamento legislativo referente às compras e contratações pela Administração Pública, tem se tornado cada vez mais ágil (Pregão Eletrônico) o processo de aquisição de bens e serviços, aumentando, consideravelmente, o número de contratações e de empresas interessadas em contratar com a Administração. Consequentemente, a quantidade de problemas e falhas na execução das contratações também vem aumentando, ao passo que a fiscalização dos contratos se faz mais presente.
Igualmente, o melhor investimento em pessoal e a atuação mais efetiva dos órgãos de controle administrativo, tanto interno quanto externo, sobretudo no âmbito da Administração Federal, contribuem para que as sanções previstas em instrumentos contratuais e/ou editalícios passem a ser aplicadas com mais freqüência, de acordo com o preceito legal. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, em seus acórdãos FERNANDES (2005 – p. 981), vem censurando firmemente o ente público que deixa de aplicar as penalidades nos casos de inexecução contratual pelas contratadas.
Assim, tratar dos limites que permeiam a prerrogativa de aplicação de penalidade ao particular é um assunto que interessa diretamente às empresas contratadas ou que têm intenção de contratar com a Administração Pública e à própria Administração. Também se reveste esse tema de interesse público, visto que há que se zelar pela legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência administrativa do aparelhamento estatal.
Desse modo, com o presente artigo propõem-se avaliar a questão da obrigatoriedade de aplicação de penalidades decorrentes de inexecução de contratos administrativos, e, mais especificamente, demonstrar que a penalidade deve guardar relação intima com os princípios administrativos e constitucionais a fim de se evitar ofensa legal e constitucional.
IMPOSIÇÃO DE SANÇÃO E ATUAÇÃO VINCULADA
Insta, inicialmente, adotarmos um parâmetro conceitual para o objeto de estudo do presente trabalho, a sanção administrativa. Nesse sentido, adotamos o ensinamento de CARVALHO FILHO (2007 – p. 347), segundo o qual:
“Sanções são atos de natureza punitiva praticados em decorrência de comportamento ofensivo a preceito legal. O pressuposto dos atos sancionatórios consiste na violação à norma legal. Se esta enuncia determinado preceito e o indivíduo o infringe, a conduta reveste-se de ilicitude, já que o parâmetro de licitude é o que a lei estabelece.”
E quanto à finalidade das sanções, temos que:
“Haverá atividade sancionatória, de direito, quando à conduta ilícita se vincula a imposição de uma privação de direitos com uma finalidade repressiva (de castigo) da infração, ou preventiva ou dissuasória de condutas similares.” (OLIVEIRA, 2006 - p. 472).
“Não deve o meio sancionatório ficar além nem aquém do grau requerido para cumprir a sua teleologia.” (OLIVEIRA, 2006 - p. 486).
Outro aspecto que deve ser levado em consideração no que concerne a sanções reside em que tais atos decorrem sempre de atividade vinculada do aplicador, vale dizer, ao aplicador não pode ser conferido poder discricionário para que, a seu critério, aplique ou não a punição. Ou terá que aplicá-la, se o infrator adota conduta que a lei ou contrato considera violadora ao direito, ou não poderá fazê-lo, se a conduta não estiver contemplada na lei ou contrato como ensejadora de sanção.
Segundo FIGUEIREDO (1998, p. 39 usque 40) a inadimplência do contratado consiste, entre outros motivos, “na mora excessiva para cumprimento do pactuado” e que “tal comportamento conduz - ou deve conduzir - a Administração à conduta sancionatória, quer seja aplicadora da penalidade, quer seja por meio da sanção máxima: a rescisão”. Prossegue afirmando que: “A sanção é, pois, obrigatória para a Administração. Deveras, não é um direito ou faculdade, mas sim um dever. E, como já afirmamos, não pode haver disponibilidade da competência.”
Desse modo, a aplicação de sanção é ato vinculado e, no caso em tela, decorrente de disposição contratual, com força obrigatória entre as partes, onde deverá haver a especificação das sanções e das condutas que ensejam as medidas corretivas, ocasião em que restará completa e objetiva a descrição do comportamento a ser adotado pelo administrador em caso de inadimplemento do particular.
HIERARQUIZAÇÃO DE NORMAS E PRINCÍPIOS
O caráter vinculado do ato administrativo decorre essencialmente do princípio da legalidade strito sensu, contudo, a legalidade somente experimenta significado apreciável na interação com os demais princípios. Pensar o Direito Administrativo exclusivamente como mero conjunto de regras legais seria subestimar, de forma danosa, a complexidade do fenômeno jurídico-administrativo.
Assim, a subordinação da Administração Pública não é apenas à lei. A legalidade deve ser respeitada, todavia de maneira qualificada a justificar sua interação com todo o sistema normativo vigente.
OLIVEIRA (2006 - p. 228) entende a legalidade e a finalidade como termos designativos, respectivamente, da ordem jurídica global que norteia a conduta administrativa e do conjunto de bens, valores, interesses jurídicos e direitos tutelados pelo mesmo ordenamento jurídico. O mesmo doutrinador afirma que, como princípio – e logo mandato de otimização –:
“a finalidade impõe o dever de otimização da realização do bem jurídico que configura e informa a competência administrativa e, com tal compostura, se perfaz nos limites das possibilidades fáticas e jurídicas de cada caso enfrentando pela Administração” (g.n)
Dessa construção, depreende-se novamente a necessidade da interpretação sistemática do ordenamento, uma vez que resta evidente que, por intermédio da regra da finalidade, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade se fundamentam na legalidade, portanto, ferir tais princípios significa desrespeitar a lei.
A observância do postulado da proporcionalidade, segundo a doutrina (CARVALHO FILHO, 2007 – p. 55), vem sendo indicada por três aspectos:
“1º) adequação, com o sentido de que o meio empregado é compatível com o fim a ser perseguido; 2º) exigibilidade (ou necessidade), significando que aquela conduta administrativa é indispensável, ou seja, não há, para atingir-se o fim desejado, meio menos gravoso para o indivíduo; e 3º) proporcionalidade em sentido estrito, apontando-se para a conclusão de que as vantagens oriundas da conduta administrativa superam as desvantagens.”
Aplicando o postulado na seara do regime jurídico-sancionatório, observa-se que, independente da categoria tipológica da sanção aplicada pela Administração (advertência, multa, suspensão de direitos etc), o regime está atrelado ao dever de ostentar, como inarredável condição de validade da cláusula que institui as sanções e infrações e do ato administrativo que as aplica, o necessário coeficiente de adequação, a necessidade e proporcionalidade, ao nível do controle de constitucionalidade ou legalidade da produção jurídica. (OLIVEIRA, 2006 - p. 473)
Resta evidenciado que não se pode atribuir à Administração o descomedimento sancionatório. Nem mesmo a lei pode estipular gravame incompatível com a falta que se pretende punir, é o que ensina Regis Fernandes de Oliveira, agregando que “o legislador não pode ultrapassar os limites do ‘razoável’ para estipular as sanções”. (OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Infrações e Sanções Administrativas. São Paulo: Ed. RT, 1993 Apud OLIVEIRA, 2006 – p. 482). E acrescente-se, se não pode o legislador ultrapassar tais limites, muito menos poderá o Administrador, na elaboração dos editais e minutas de contrato, bem como na aplicação desses instrumentos ao caso concreto.
Não se pode olvidar, igualmente, que a razoabilidade mantém estreita relação com a definição substancial do interesse público. “Elege-se o interesse público como primeiro vetor principiológico a cotejar com a razoabilidade, porque esta responde, juridicamente, pela sua legítima e validade, dimensão, fisionomia ou perfil, permitindo seu balizamento material em cada atuar administrativo.” (OLIVEIRA, 2006 - p. 239). O doutrinar ainda acrescenta acerca da supremacia do interesse público:
“Não há adequada persecução do interesse público sem o necessário coeficiente de razoabilidade. (...) Somente após o crivo do razoável, é possível aferir o grau válido de supremacia que o interesse público deve receber na norma legislativa e deve reproduzir concretamente em face dos demais interesses, bens, valores e direitos envolvidos do caso, a ser amplamente demonstrado na justificação dos atos administrativos. (p. 239)
A concretude de tais argumentos está refletida em decisão do Supremo Tribunal Federal, quando este Tribunal afirma: “há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, momento quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse.” (STF, RE 253.885-MG).
Conclui-se, portanto, que as assimetrias presentes nos contratos administrativos, referência desse trabalho, só experimentam amparo e guarida, no plano concreto, se reconhecida a legitimidade da ação administrativa em face dos princípios em seu todo: legalidade/finalidade, proporcionalidade, razoabilidade, eficiência, supremacia do interesse público. É, portanto, imperativa a hierarquização de regras e princípios de maneira razoável.
O CONTROLE DE LEGALIDADE PELA ADMINISTRAÇÃO
Importa relembrar que trata-se, por ora, das sanções previstas em instrumentos de contratações norteadas pela Lei de Licitações, nos quais, embora a Administração goze de prerrogativas especiais, vige o pacta sunt servanda, fixando, entre as partes, além de obrigações e outras disposições, o dever de evitar a todo custo a execução irregular ou insuficiente e inexecução parcial ou total, impondo as penalidades respectivas para cada descumprimento.
Não menos relevante é registrar que, no âmbito da Administração Pública, devido à fragilidade do sistema normativo aplicável à matéria e à falta de padronização, planejamento e aperfeiçoamento das compras e composição dos contratos administrativos, não raras vezes, em plena execução contratual, o gestor de contratos depara-se com cláusulas frágeis e insubsistentes.
Nessas circunstâncias, o legislador disponibilizou importante ferramenta de controle de atos administrativo: o princípio da autotutela, por intermédio do qual a Administração processa a revisão ex oficio dos seus atos quanto à legalidade e quanto ao mérito. Sobre esse assunto, pertine citar a observação abaixo, ipsis verbis, retirada da obra de Juarez Freitas:
“A Administração Pública não somente pode (a rigor, inexistem atos administrativos meramente facultativos), senão que deve alterar determinadas avaliações, ponderando melhor bens e valores. Imperativo, entretanto, subordinar qualquer mudança ao motivado auto-controle principiológico global, à semelhança do que deve ser encetado na seara do Judiciário, este último assumindo a função fiscalizadora derradeira. O importante é respeitar os efeitos constitutivos e mostrar a superveniência de fatos que determinam o eventual desfazimento de ato válido ou a mudança qualitativa da avaliação.” (FREITAS, 2004 – p. 228/229)
A aplicação desse mecanismo em sanções advindas de contratos administrativos pode ser observada na autorização do nosso ordenamento da conversão de penalidades em face do princípio da proporcionalidade, conforme defendido por Pimenta Oliveira:
“Com escopo nessa exigência de adequação axiológica ou justa medida sancionatória, a administração pública está autorizada, outrossim, a conversão da medida, quando se depreender da compostura do caso apreciado, fato formal e materialmente tipificado, de modo objetivamente induvidoso, como gerador de determinada sanção com carga desfavorável menor, inexistindo nesta a possibilidade de variação de seu conteúdo posto à eleição fundamentada a cargo da autoridade administrativa competente. O princípio da proporcionalidade serve como instrumento de proteção dos excessos, descomedimentos, arbitrariedades, efetivas ou potenciais, verificáveis na atividade sancionatória. É nesta linha que se deve visualizar a máxima efetividade da pauta como garantia fundamental, e admitir a hipótese de conversão com limitações.” (OLIVEIRA, 2006 - p. 512)
Referindo-se à hipótese de correção de atos administrativos consistentes na exclusão da penalidade em face da proporcionalidade, o doutrinador referido anteriormente posiciona-se da seguinte maneira:
“Entende-se que, verificada e confirmada a adequação e necessidade da sanção – o que implica o regular acertamento dos pressupostos de fato da medida, o mandado de proporcionalidade em sentido estrito não autoriza a exclusão sanção, ressalvado o caso excepcionalíssimo de que a sanção implique, observando-se as condições subjetivas do infrator, ofensa substancial e direta ao princípio da dignidade da pessoa humana. Esta é a matriz axiológica da ordem jurídica, e nenhum provimento jurídico-administrativo poderá, mesmo a título de cumprimento desta mesma ordem, anulá-la em todos os demais casos, a exclusão importará em ofensa ao princípio da legalidade vinculativo seja do exercício da função administrativa punitiva, seja do exercício da função jurisdicional. “(OLIVEIRA, 2006 - p. 512)
Desse modo, na lição do professor citado, considerando o princípio da proporcionalidade, admite-se a revisão de atos para converter penalidade mais grave em outra de menor impacto, quando for reconhecida a exasperação do ato gerador da primeira medida punitiva, considerando as situações em que à conduta falha estejam vinculadas as duas medidas repressivas. Já quanto à exclusão de penalidade, ele defende que somente pode ocorrer em casos excepcionalíssimos, como a afronta ao princípio da dignidade humana, sob pena de afronta à legalidade.
Constata-se que a proporcionalidade é a causa mais recorrente para a revisão dos atos referentes a imposição de sanções, contudo, não é menos verdade que outros princípios também cabem na motivação desse controle de legalidade. O importante é que o Administrador verifique a validade de seus atos no confronto sistemático com o ordenamento vigente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi exposto, podemos chegar as seguintes conclusões: 1). a conduta a ser combatida, assim como a sanção aplicável devem estar previamente previstas na lei, no edital ou no contrato administrativo; 2) por isso, especialmente, no que tange ao edital e contrato, a Administração deve planejar e preparar bons instrumentos se antecipando na previsão das possíveis falhas da contratada e determinando penalidades compatíveis; 3) a aplicação da sanção tem força vinculatória, ou seja, havendo a previsão de uma correção em face de determinada conduta, ao administrador resta cumprir o dispositivo; 4) tanto a fixação quanto a aplicação da penalidade devem obedecer os princípios e normas do ordenamento vigente; 5) os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade são instrumentos essenciais na validação das disposições referentes às sanções, nas regras e nos atos de aplicação; 6) os atos administrativos de aplicação de penalidades podem ser revistos em face da legalidade estrita e ampla; 7) a legalidade ampla é verificada mediante o confronto do caso concreto com o ordenamento jurídico vigente sistematizado; 8) verificado o excesso da repressão, o administrador deve rever seu ato, utilizando-se da autotutela, nos limites da legalidade, da finalidade, da supremacia do interesse público, da proporcionalidade e da razoabilidade; 9) na concretude das sanções previstas contratualmente, o Administrador poderá verificar assimetrias cuja correção implique, sim, a necessidade de conversão da sanção ou a sua exclusão, mesmo diante da literalidade da lei ou do contrato; 10) embora o procedimento administrativo punitivo no âmbito da lei de licitações, assim como em outros institutos, ostente feição vinculada, esta vinculação é relativa, uma vez que faz-se imprescindível verificar a harmonia dos atos e disposições contratuais e normativas com o ordenamento jurídico vigente.
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Data de elaboração: março/2008
Gabriella Gonçalves Barbosa
Pós-graduada em direito público e experiência profissional na área de contratos administrativos, no âmbito Federal.Código da publicação: 1937
Como citar o texto:
BARBOSA, Gabriella Gonçalves..Sanções nos contratos administrativos: vinculação mitigada. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 9, nº 505. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/1937/sancoes-contratos-administrativos-vinculacao-mitigada. Acesso em 12 jan. 2009.
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