Servidor público não-estável tem garantia de greve? A resposta a essa indagação não é óbvia como parece ser, pois, se fosse, muitos servidores nessa condição não teria dúvida, nem receios de aderir à greve de sua categoria profissional por melhores condições de trabalho e salário. É uma indagação que atormenta muitos servidores não-estáveis, que, na dúvida, prefere se abster de qualquer manifestação de apoio à greve por recear prejuízos em sua avaliação de desempenho para a aquisição de estabilidade.

 

O servidor público não-estável é o agente estatal submetido durante três anos à estágio probatório, consistente em avaliação de desempenho segundo os critérios de assiduidade, disciplina, capacidade de iniciativa, produtividade e responsabilidade, realizada por comissão especialmente instituída, com vistas a aferir sua aptidão e capacidade para o exercício de cargo público, e se aprovado pela autoridade administrativa competente, adquire a estabilidade (CF, art. 41, caput e §4º c/c Lei 8.112/1990, art. 20, I, II, III, IV, V e §1º).

A estabilidade é atributo do servidor ocupante de cargo público efetivo – preenchível através de concurso público de provas ou de provas e títulos – que, após três anos de estágio probatório, restou aprovado no desempenho das atribuições e responsabilidades inerentes ao cargo (CF, art. 41, caput c/c Lei 8.112/1990, art. 21).

Com a estabilidade, o servidor, independentemente das autoridades administrativas e políticas a que se subordina, dispõe da garantia de que apenas será retirado do serviço público mediante (I) decisão judicial transitada em julgado, (II) processo administrativo ao qual se assegure o devido processo legal, (III) procedimento de avaliação periódica segundo lei complementar no qual se garanta ampla defesa, ou ainda, excepcionalmente, (IV) por meio de ato normativo motivado pela necessidade de adequação da despesa com pessoal à legislação financeiro-orçamentária (CF, arts. 41, §1º, I, II, III, 169, caput, §4º), não se preocupando, desta forma, com eventuais pressões políticas e nem se sobressaltando com a alteração dos dirigentes políticos dos altos escalões da Administração quando do desempenho de suas funções, desempenhando-as com desinteresse pessoal em prol unicamente da consecução do interesse público e do bem comum.

A par disso, a garantia de greve é prevista constitucionalmente ao servidor público (CF, art. 37, VII), ressalvado o militar (cf. STF, Rcl 6568/SP, Rel. Min. Eros Grau, DJe 24/9/2009). Esta norma é de eficácia limitada, uma vez que necessita de lei regulamentadora para produzir os seus efeitos em plenitude, a qual, infelizmente, passados 23 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, ainda não foi editada pelo legislador ordinário. Mas, felizmente, o Supremo Tribunal Federal, após alguns vacilos, assumindo cum grano salis uma posição ativa de guardião da Lei Fundamental nos Mandados de Injunção ns. 670, 708 e 712, não se restringiu a reconhecer a inércia e omissão inconstitucionais do Legislativo, indo mais além, ao determinar a aplicação no que couber da Lei de Greve 7.783/1989 do trabalhador da iniciativa privada, porquanto “ao legislador não é dado escolher se concede ou não o direito de greve, podendo tão-somente dispor sobre a adequada configuração de sua disciplina” (MENDES, 2009, p. 1273).

Cumpre não olvidar que quando se utiliza o termo garantia ao invés de direito de greve, não se faz por acaso, porquanto, a meu juízo, utilizando-me da clássica distinção elaborada por Rui Barbosa (apud SARLET, 2008) entre garantia e direito, reputo que a greve é uma autêntica garantia, haja vista se constituir em disposição assecuratória do direito ao trabalho digno, seguro e com salário justo, constituindo-se em instrumento pacífico e eficaz de negociação e reivindicação em relação o patrão. Nesta senda, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da ONU, em seu art. XXIII enuncia que todo o ser humano tem direito a condições justas e favoráveis de trabalho, de maneira que se pode instrumentalizar pacificamente e eficazmente essa reivindicação por meio do exercício não abusivo da greve.

A greve é uma garantia fundamental de índole coletiva, pois diz respeito ao ser humano enquanto partícipe da categoria dos trabalhadores, a exigir do Estado, por um lado, uma intervenção no sentido da necessária regulamentação desse direito, e por outro, uma abstenção no sentido da regular organização e exercício pelos próprios trabalhadores (CF, art. 9º). Entretanto, não significa dizer que a greve se desenvolve ao bel-prazer dos trabalhadores, sob toda sorte de abusos contra a sociedade. Nestes casos legitima-se a intervenção estatal apenas para afastar os eventuais abusos, a exemplo da não-divulgação à população com antecedência mínima de 72 horas para o início da greve, de não se assegurar o funcionamento mínimo dos serviços considerados essenciais e inadiáveis e quando se descamba para a violência física ou moral (Lei 7.783/1989, arts. 6º, 10, 11 e 13).

Assim, a greve em si não é ilegal, ao revés, é garantia constitucionalmente assegurada ao trabalhador como instrumento pacífico e eficaz de negociação e reivindicação diante do patrão por melhores condições de trabalho e salário. O que é ilegal são os eventuais abusos e arbitrariedades cometidos no exercício desse direito a gerar repúdio e descrédito da população.

A Constituição Federal, art. 37, VII, ao preceituar a garantia de greve ao servidor, não exige estabilidade do mesmo, isto é, não faz distinção entre servidores estáveis e não-estáveis, em ordem a não ser permitido, a contrario sensu, ao legislador ordinário, ao administrador e ao magistrado usarem a condição de não-estável para negar ao servidor a garantia de greve ou para desaprová-lo em avaliação de estágio probatório quando participe de uma, porquanto o legislador constituinte originário, único que detém poder inicial, ilimitado e incondicionado em relação à ordem jurídico-constitucional, não faz nenhuma exigência ou ressalva nesse sentido.

Conjugado a isso, a garantia de greve não é apenas formalmente constitucional, por se achar albergada na Constituição Federal de 1988 (arts. 9º, caput e 37, VII), mas também materialmente, posto se tratar de garantia fundamental do homem-trabalhador, que pode lançar mão como instrumento de negociação e reivindicação perante o patrão por melhores condições de trabalho e salário. Portanto, é uma garantia decorrente do direito ao trabalho digno, seguro e com salário justo. Inclui-se, assim, no rol das cláusulas pétreas (CF, art. 60, §4º, IV), não se submetendo à emenda constitucional que vise vedá-lo aos servidores públicos não-estáveis.

Não se diga que pelo fato de ser uma garantia de índole coletiva não estaria abrangida pelo inciso IV, §4º, art. 60 da CF, quando enuncia literalmente “direitos e garantias individuais”, porque a melhor doutrina (por todos: SARLET, 2008) leciona que o legislador constituinte originário disse menos do que devia na redação do dispositivo constitucional, uma vez que, numa interpretação sistemática da Constituição, dessume-se que os direitos e garantias sociais, de nacionalidade, políticos e coletivos, ao lado dos individuais, são decisões e escolhas essenciais e nevrálgicas da ordem jurídico-constitucional a compor seu cerne fundamental.

Pois então, se não é possível nem emenda à Constituição, que dirá lei. Destarte, revela-se inconstitucional lei regulamentadora do direito de greve que busque vedá-lo aos servidores não-estáveis. Em matéria de norma jusfundamental, ensina Ingo Wolfgang SARLET (2008), não se admite retrocesso social, quer dizer, direitos e garantias fundamentais conquistados e incorporados ao longo do tempo ao patrimônio jurídico do ser humano não devem ser elididos, suprimidos ou reduzidos, ao revés, devem ser ampliados.

Demais disso, é regra comezinha de hermenêutica jurídica não caber ao intérprete/aplicador do direito fazer restrição a direito fundamental onde o legislador constituinte originário não a fez, até por conta do princípio da máxima efetividade que, segundo leciona Inocêncio Mártires COELHO (2009, p. 140),

orienta os aplicadores da Lei Maior para que interpretem as suas normas em ordem a otimizar-lhes a eficácia, sem alterar o seu conteúdo.

De igual modo, veicula um apelo aos realizadores da Constituição para que em toda situação hermenêutica, sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar os seus preceitos, sabidamente abertos e predispostos a interpretações expansivas.

 

A adesão à greve, legitimamente exercida, não deve ser utilizado contra o servidor não-estável no sentido de trazer-lhe prejuízos em avaliação de desempenho em estágio probatório, porque isto importa em desnaturar e desvirtuar esse direito fundamental do trabalhador e, com efeito, fraudar a Constituição da República, na medida em que se utiliza de ameaças de gravame visando dissuadir o trabalhador de legitimamente utilizar o movimento paredista como instrumento de negociação e reivindicação por melhores condições de trabalho e salário. Nesta perspectiva, lê-se a Lei 7.783/1989, art. 7º, parágrafo único, quando prevê vedação de rescisão contratual e de admissão de trabalhadores substitutos durante a greve, considerando-se expediente ilegítimo do patrão de pressionar e coagir os grevistas.

De acordo com o Supremo Tribunal Federal

DIREITOS CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO DE GREVE. SERVIDOR PÚBLICO EM ESTÁGIO PROBATÓRIO. FALTA POR MAIS DE TRINTA DIAS. DEMISSÃO. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. A simples circunstância de o servidor público estar em estágio probatório não é justificativa para demissão com fundamento na sua participação em movimento grevista por período superior a trinta dias. 2. A ausência de regulamentação do direito de greve não transforma os dias de paralização em movimento grevista em faltas injustificadas. 3. Recurso extraordinário a que se nega seguimento. (RE 226.966/RS, redator p/ acórdão Min. Cármen Lúcia, DJe 20/8/2009, grifei)

1. Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Parágrafo único do art. 1º do Decreto estadual n.° 1.807, publicado no Diário Oficial do Estado de Alagoas de 26 de março de 2004. 3. Determinação de imediata exoneração de servidor público em estágio probatório, caso seja confirmada sua participação em paralisação do serviço a título de greve. 4. Alegada ofensa do direito de greve dos servidores públicos (art. 37, VII) e das garantias do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV). 5. Inconstitucionalidade. 6. O Supremo Tribunal Federal, nos termos dos Mandados de Injunção n.ºs 670/ES, 708/DF e 712/PA, já manifestou o entendimento no sentido da eficácia imediata do direito constitucional de greve dos servidores públicos, a ser exercício por meio da aplicação da Lei n.º 7.783/89, até que sobrevenha lei específica para regulamentar a questão. 7. Decreto estadual que viola a Constituição Federal, por (a) considerar o exercício não abusivo do direito constitucional de greve como fato desabonador da conduta do servidor público e por (b) criar distinção de tratamento a servidores públicos estáveis e não estáveis em razão do exercício do direito de greve. 8. Ação julgada procedente. , redator p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 11/3/2010, grifei)

Por outro lado, a fração de salário e o tempo de estágio probatório correspondentes aos dias de paralisação podem, respectivamente, não ser paga e não computado pela autoridade administrativa, salvo avença em contrário, uma vez que a Lei 7.783/1989, art. 7º, caput, enuncia que durante a greve o contrato de trabalho é suspenso, ou seja, há paralisação simultânea da prestação de serviço pelo trabalhador e da correspondente contraprestação pecuniária e contagem de tempo de serviço pelo patrão.

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DIREITO DE GREVE. MI 708/DF. APLICAÇÃO DAS LEIS 7.701/88 e 7.783/89. JUSTIFICAÇÃO DE FALTAS. POSSIBILIDADE. 1. A decisão agravada nada mais fez do que observar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, no MI 708/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, DJe 31.10.2008, determinou a aplicação das Leis 7.701/88 e 7.783/89 aos conflitos e às ações judiciais que envolvam a interpretação do direito de greve dos servidores públicos civis. 2. A decisão que deu provimento ao recurso extraordinário concedeu a ordem nos termos do pedido inicial, o qual não pretendeu o pagamento dos dias de paralisação, mas apenas a justificação das faltas durante o período de greve. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, RE 551.549 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 13/06/2011, grifei).

AGRAVOS REGIMENTAIS NO AGRAVO DE INTRUMENTO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DIREITO DE GREVE. MI 708/DF. DESCONTO REMUNERATÓRIO DOS DIAS DE PARALISAÇÃO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I – Inexiste direito à restituição dos valores descontados decorrentes dos dias de paralisação. Precedente. MI 708/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes. II – Não merece reparos a parte dispositiva da decisão agravada a qual isentou o Estado do Rio de Janeiro de restituir os descontos relativos ao período de paralisação. III – Agravos regimentais improvidos (STF, AI 824.949 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 6/9/2011, grifei)

Ainda que no período de greve as faltas sejam justificadas, assim como não há direito ao pagamento da fração de salário dos dias não trabalhados, não há também razão para o cômputo desse tempo como estágio probatório, salvo estipulação em contrário entre as partes, porquanto esse período de avaliação de desempenho supõe o efetivo exercício das atribuições e responsabilidades de cargo público, o que, durante a greve, obviamente, não ocorre.

Em face do exposto, o servidor público não-estável tem garantia de greve, não devendo, com efeito, a sua adesão a movimento paredista não abusivo, quer dizer, regularmente exercido, ser usado como fundamentação para uma desaprovação ou como elemento desabonador em avaliação de desempenho a gerar sua exoneração de cargo público, caso contrário, significar-se-á violar garantia constitucionalmente prevista ao servidor público independentemente de estabilidade, ressalvado o militar. Contudo, a depender da autoridade administrativa, é legítimo e legal o desconto da fração de salário e não contagem de tempo para efeito de estágio probatório, prosseguindo essa contagem quando do término do movimento paredista.

Em arremate, caso o servidor não-estável seja prejudicado em sua avaliação de desempenho em virtude de simplesmente participar de greve não abusiva, caberá petição administrativa (CF, art. 5º, XXXIV, a c/c Lei 8.112/1990, arts. 104 a 115) em defesa de direito, contra ilegalidade ou abuso de poder; mandado de segurança (CF, art. 5º, LXIX e LXX c/c Lei 12.016/2009) em defesa de direito líquido e certo; ou ainda, reclamação constitucional ao STF (CF, art. 102, I, l c/c Lei 8.038/1990, arts. 13 a 18) para a garantia da autoridade de suas decisões, usando como paradigma a ADI 3235/AL e o RE 226.966/RS.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br.

_______. Lei 8.112/1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br.

_______. Lei 7.783/1989. Disponível em http://www.planalto.gov.br.

_______. Lei 12.016/2009. Disponível em http://www.planalto.gov.br.

_______. Lei 8.038/1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

ONUBR. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em http://www.onu.org.br.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Jurisprudência. Disponível em http://www.stf.jus.br.

 

Data de elaboração: outubro/2012

 

Como citar o texto:

PINHEIRO, Wecsley dos Santos..Servidor público não-estável tem garantia de greve?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1023. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/2633/servidor-publico-nao-estavel-tem-garantia-greve. Acesso em 29 out. 2012.

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