A Constituição da República de 1998 assegura, no rol dos direitos sociais, o direito à saúde, que subsume dentro da categoria do direito fundamental à vida. Em seu artigo 196, a Carta Magna aduz que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

No entanto, hoje são recorrentes as reclamações da população das recusas ou demora do Sistema Único de Saúde - SUS no fornecimento de medicamentos, na realização de exames e procedimentos, além da ausência de leitos disponíveis em hospitais da rede pública e até mesmo privada.

Em sua defesa, o Estado alega que a demanda à saúde é grande, enquanto a receita é limitada. Na impossibilidade de atender a todas as necessidades da sociedade, o Estado tem de eleger prioridades para que possa implementar uma política pública eficaz, garantindo o mínimo existencial e ao mesmo tempo atuando de acordo com as diretrizes orçamentárias.

O direito à saúde demanda prestações positivas do Estado o que implica alocação de recursos materiais e humanos para sua efetivação. Se é assim, o seu atendimento está submetido a uma reserva do possível que é o princípio segundo o qual o cumprimento de decisões que impliquem gastos públicos fica a depender da existência de meios materiais disponíveis para sua implementação.

Por outro lado a sociedade alega o descumprimento da garantia do mínimo existencial na área da saúde, que seria o menor padrão indispensável para uma vida digna e de qualidade, ressaltando a ineficácia do Estado na prestação do serviço. Diante desse cenário, a população busca uma tutela judicial imediata ao invés de enfrentar passivamente a burocracia administrativa, abarrotando o Poder Judiciário com pedidos de medicamentos, próteses ou internações.

Tem-se aí uma judicialização da saúde.

Embora a demanda da população, muitas vezes, seja legítima, os críticos alegam que o Poder Judiciário não poderia obrigar o Estado a fornecer todo e qualquer tipo de medicamento, tratamento e cirurgia à população. Haveria a necessidade de se exigir a comprovação, no caso concreto, das suas reais vantagens para efeito de deferimento de medidas judiciais.

Além disso, a escolha de medicamentos ou tratamentos para composição de política pública leva em conta uma ponderação de valores que deve, necessariamente, considerar sua eficácia e confiabilidade, de um lado, e preço e acessibilidade a um maior número possível de pacientes, do outro, sendo tal atribuição exclusiva do Poder Executivo.

Na mesma senda, os críticos alegam que o ativismo judicial causa lesão à ordem econômica e financeira do Estado, ao obrigá-lo a arcar com despesas não previstas em seu orçamento, sofrendo o Poder Executivo uma ingerência do Judiciário.

Defendem, ainda, que a concessão da tutela individual acarretaria em um dano coletivo, na medida em que a decisão prejudicaria terceiros precedentes na fila de atendimento ou que se encontram em situação mais emergencial ou gravosa.

Por fim, sustentam que, em virtude de se depararem com fatos que extrapolam o conhecimento jurídico, os magistrados não teriam informações técnicas necessárias para decidir sobre a necessidade ou eficácia de alguns medicamentos ou procedimentos, além de, ainda, possuírem uma cultura de impossibilidade de negativa da tutela frente à prescrição médica.

Os magistrados, em contrapartida, estão se mobilizando diante da complexidade do tema, tendo o Poder Judiciário organizado fóruns e audiências públicas com especialistas da saúde pública, para elucidação e esclarecimento de dúvidas recorrentes.

Na mesma senda, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ expediu a Recomendação nº 31, em 30 de março de 2010, para adoção de medidas para melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do Direito, visando assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde.

Além disso, o ex-Deputado Federal Flávio Dino de Castro e Costa apresentou perante o Conselho Nacional de Justiça pedido de providência para criação de varas especializadas em Direito à Saúde, com o intuito de possibilitar maior precisão e celeridade na apreciação dos atos que afetam o importante tema da saúde. Defendeu que a aludida especialização da estrutura organizativa do Judiciário possibilitaria o alinhamento de decisões com fóruns de debate à saúde, a formação de câmara técnica de apoio e uma maior capacitação dos magistrados para compreensão do sistema de saúde brasileiro.

Em análise ao aludido pedido de providência, o Conselho Nacional de Justiça expediu a Recomendação n° 43/2013 aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais para que promovam a criação de varas especializadas no julgamento de processos relacionados à saúde pública e para que priorizem o julgamento de ações relativas à saúde suplementar.

Os que defendem a necessidade de o judiciário decidir sobre a matéria em questão alegam que, ao ser verificado, no caso concreto, que o titular do direito à saúde se encontra em situação de uma imediata prestação do Estado, faz-necessário o deferimento de uma medida jurisdicional, sem que isso signifique uma ingerência entre os poderes. Na verdade, configura uma maximização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, é o entendimento da hoje Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha  em seu artigo “O juiz na nova ordem estatal” (in Perspectivas do direito público: estudos em homenagem a Miguel Seabra Fagundes (coord) Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p.256, apud, Por uma Teoria dos Princípios: O princípio Constitucional da Razoabilidade, OLIVEIRA, Fábio Côrrea Souza de. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2003, p.291). Ela afirma  que:

“o momento contemporâneo faz nascer o juiz-partícipe da sociedade; não o que lhe fica acima, não o seu espectador desinteressado e despreocupado (...) o juiz da sociedade pós-moderna é parte do processo sociopolítico e econômico da sociedade e, neste sentido, ele é governo do Estado, comprometido com políticas públicas, não as de um determinado governante, mas aquelas estabelecidas como objetivos e princípios constitucionais pelos quais ele se responsabiliza e se determina em sua conduta de prestador da Justiça material."

 

Sem a presunção de esgotar tema tão polêmico, verifica-se que o direito à saúde e à vida de muitas pessoas está sendo assegurado, atualmente, pelo Poder Judiciário, o que, longe de ser o ideal, parece ser um caminho sem volta frente às políticas públicas vigentes e a escassez de recursos na área de saúde. E, o pior, outras milhares de pessoas, que não serão beneficiadas pela tutela jurisdicional, ficarão sem atendimento adequado na rede pública de saúde. Com efeito, a judicialização atende ao interesse individual, mas não soluciona a demanda coletiva pelo direito à saúde no Brasil.

 

 

Elaborado em março/2014

 

Como citar o texto:

SILVA, Lorene De Marchi e. .A Judicialização da Saúde . Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 22, nº 1152. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/2960/a-judicializacao-saude-. Acesso em 26 mar. 2014.

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