Aplica-se o princípio da consunção (ou absorção), por demais propalado no direito penal, quando um fato definido como crime atua como fase de preparação, de execução ou de exaurimento de outro crime mais grave, ficando por este absorvido. Como exemplo, pode ser mencionado o delito de homicídio perpetrado mediante uso de arma de fogo. Sendo a arma de fogo o meio utilizado pelo agente para a prática do homicídio, o delito de porte de arma (menos grave) é absorvido pelo delito de homicídio (mais grave).

De maneira didática, o doutrinador Guilherme de Souza Nucci[1] bem definiu e exemplificou o princípio da absorção:

Quando o fato previsto por uma lei está, igualmente, contido em outra de maior amplitude, aplica-se somente esta última. Em outras palavras, quando a infração prevista na primeira norma constituir simples fase de realização da segunda infração, prevista em dispositivo diverso, deve-se aplicar apenas a última. Conforme esclarece Nicás, ocorre a consunção quando determinado tipo penal absorve o desvalor de outro, excluindo-se este de sua função punitiva. A consunção provoca o esvaziamento de uma das normas, que desaparece subsumida pela outra (El concurso de normas penales, p. 157).

 

Trata-se da hipótese do crime-meio e do crime-fim. É o que se dá, por exemplo, no tocante à violação de domicílio com a finalidade de praticar furto a uma residência. A violação é mera fase de execução do delito patrimonial. O crime de homicídio, por sua vez, absorve o porte ilegal de arma, pois esta infração penal constitui-se simples meio para a eliminação da vítima. O estelionato absorve o falso, fase de execução do primeiro (ver, nesse caso, o disposto na Súmula 17, do Superior Tribunal de Justiça: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”).

Pois bem.

A Lei n.º 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro – tipifica, dentre outros, os delitos de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (artigo 303) e embriaguez ao volante (artigo 306). Questão bastante debatida no processo penal brasileiro é se o delito de embriaguez é absorvido ou não pelo delito de lesão, quando o agente, conduzindo veículo automotor sob efeito de álcool, se envolve em acidente de trânsito e causa lesão corporal em terceiros.

Defendendo o princípio da absorção, o professor Marcellus Polastri Lima[2], Procurador de Justiça no Estado do Rio de Janeiro, assim se posiciona sobre o assunto:

No que tange ao concurso de crimes, entendemos que cometido um crime de dano, ou seja, no caso dos crimes culposos de trânsito de lesões corporais e homicídio, o delito do art. 306 restará absorvido. Para nós, a embriaguez no caso restaria inserida no contexto da conduta culposa, só podendo ser levada em consideração como circunstância desfavorável ao agente na aplicação da pena. (grifo nosso)

No entanto, em que pese o entendimento acima esposado, a regra do concurso material de crimes deve prevalecer, já que mais consentânea com a realidade e com os princípios jurídicos que norteiam a matéria.

Senão vejamos.

Como primeiro e principal argumento, deve-se ter em conta que os delitos de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor e embriaguez ao volante tutelam bens jurídicos distintos. O primeiro visa a proteção da integridade física do ser humano, ao passo que o segundo tem como objeto jurídico a segurança no trânsito.

Outro fator inolvidável na análise da questão posta é o momento de consumação dos delitos. O delito previsto no artigo 306 da Lei n.º 9.503/97 se consuma no exato momento em que o agente conduz o veículo com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool, independentemente de qualquer outro resultado e/ou finalidade específica – trata-se de crime de mera conduta, de perigo abstrato. Já o delito previsto no artigo 303 da Lei n.º 9.503/97 se consuma no momento em que ocorre lesão à vítima – trata-se de crime material.

Os tribunais brasileiros, em sua imensa e esmagadora maioria, vem adotando a tese do concurso material entre os crimes de embriaguez ao volante e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, valendo destacar nesse sentido os seguintes e recentes julgados, advindos do Rio Grande do Sul e do Distrito Federal:

EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. LESÃO CORPORAL CULPOSA NO TRÂNSITO. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. Estando-se diante de crimes autônomos que tutelam bens jurídicos distintos e se consumam em momentos diversos, não há cogitar da absorção do delito de embriaguez ao volante pelo de lesões corporais culposas decorrentes de acidente de trânsito. APELO DESPROVIDO.

(TJRS, Apelação Crime n.º 70059513267, 1ª Câmara Criminal, Relator: Honório Gonçalves da Silva Neto, Julgado em 02/07/2014, extraído do site www.tjrs.jus.br) (grifo nosso)

 

EMBRIAGUEZ AO VOLANTE E LESÃO CORPORAL. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. DELITOS AUTÔNOMOS. DOSIMETRIA. PENA BASE. MÍNIMO LEGAL. FUNDAMENTAÇÃO. PROVIMENTO PARCIAL.

I. Inexiste relação consuntiva entre os crimes de embriaguez ao volante e o de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, eis que o primeiro não é o meio necessário e tampouco constitui fase de preparação ou execução do segundo, tratando-se, na verdade, de delitos autônomos, que tutelam bens jurídicos diversos e possuem momentos consumativos distintos.

II. A pena-base deve ser estabelecida no mínimo legalmente cominado, quando todas as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal forem favoravelmente valoradas.

III. Recurso conhecido e parcialmente provido

(TJDFT, APR 20120310210790APR, Relator: NILSONI DE FREITAS, 3ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 07/08/2014, Publicado no DJE: 14/08/2014. Pág.: 152, extraído do site www.tjdft.jus.br) (grifo nosso)

 

 

 

Lado outro e agora tendo como norte o princípio da razoabilidade, não há mesmo que se falar em absorção. O delito de embriaguez tem pena de 06 (seis) meses a 03 (três) anos de detenção. O delito de lesão, em sua forma simples (caput), tem pena de 06 (seis) meses a 02 (dois) anos de detenção, portanto inferior ao delito de embriaguez. Ora, a se admitir a tese da absorção, o agente que fosse flagrado conduzindo veículo automotor sob influência de álcool seria apenado com mais rigor (até três anos de detenção) em relação àquele que, dirigindo embriagado, se envolvesse em acidente de trânsito e causasse lesão corporal em terceiros (até dois anos de detenção). Não faria sentido, portanto, que a infração de perigo (mais grave) fosse consumida pela infração de dano, apenada de forma mais branda.

Sob essa mesma perspectiva (quantum da pena), o motorista embriagado que causasse acidente de trânsito com vítima seria punido de maneira mais benéfica em relação àquele que, no acidente, provocasse somente danos materiais em terceiro. O primeiro responderia por lesão (pena até dois anos detenção) e o segundo por embriaguez ao volante (pena até três anos de detenção).

Nesse contexto, é um contrassenso admitir que o delito de lesão corporal no trânsito (artigo 303 da Lei n.º 9.503/97) absorve o delito de embriaguez ao volante (artigo 306 da Lei n.º 9.503/97). Assim, se, em estado de embriaguez na condução de veículo automotor, o agente se envolve em acidente e provoca lesão corporal culposa, a hipótese encerra situação de concurso material de crimes, nos termos do artigo 69 do Código Penal.

  

[1]              NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal, Parte Geral, Parte Especial, Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, 2007

[2]              LIMA, Marcellus Polastri Lima. Crimes de Trânsito, Aspectos Penas e Processuais, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005, pág. 200/201

 

 

Elaborado em janeiro/2015

 

Como citar o texto:

RUFATO, Pedro Evandro de Vicente..Embriaguez ao volante e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor – concurso material de crimes. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1237. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/3422/embriaguez-ao-volante-lesao-corporal-culposa-direcao-veiculo-automotor-concurso-material-crimes. Acesso em 3 mar. 2015.

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