1. Introdução: Crime de Quadrilha ou Associação Criminosa na Legislação Especial

1.1 Lei 6.368/76: Crime de Associação para o Tráfico e Causa Especial de Aumento

No Brasil, até 1976, a conduta de se associarem quatro ou mais pessoas para a prática de crimes estava descrita no art. 288, do Código Penal - CP, como crime de quadrilha ou bando. Não havia outra norma jurídica, no CP ou na legislação especial, fazendo referência a esta categoria tipológica, seja com utilização da mesma expressão jurídica ou de outras semelhantes, como associação criminosa ou organização criminosa.

No entanto, com o advento da Lei 6.368/76, nosso direito positivo conheceu uma segunda espécie deste tipo penal, aplicável especificamente aos crimes de tráfico de entorpecente. Bem mais severa, a lei repressiva especial criou um tipo penal assim descrito em seu art. 14: "Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 12 e 13 desta Lei". Verifica-se que, apesar de não se utilizar da expressão quadrilha ou bando, o tipo penal tem praticamente a mesma dicção daquela utilizada no art. 288, do CP, para definir essa forma de conduta criminosa contra a paz social.

Além disso, a Lei de Tóxicos criou uma causa de aumento de um a dois terços da pena, se qualquer dos crimes ali definidos decorrer de associação (art. 18, inciso III). Como o dispositivo não define o que seja associação, esta pode ser entendida como uma organização criminosa constituída de dois ou mais integrantes, conforme prevê o art. 14 da própria Lei 6.368/76 ou de quatro ou mais integrantes, conforme exige o art. 288, do CP. Poderia, ainda, ser entendida como concurso eventual de duas ou mais pessoas emprestado à prática de crime de tráfico de entorpecentes.

A doutrina diverge sobre a questão. Fernanda Velloso Teixeira, em trabalho monográfico sobre a questão, parte da premissa de que o "legislador, ao confeccionar a Lei de Entorpecentes usando nos arts. 14 e 18, inc. III, a mesma terminologia estava, certamente, se referindo em ambas as oportunidades à societas sceleris, ou seja, ao concurso permanente, organizado e habitual de pessoas".

Pensamos que inciso III, do art. 18, é dispositivo marcado por uma séria antinomia que o torna vazio de conteúdo normativo. A nosso ver, o termo "associação" não pode ser entendido como concurso eventual de duas ou mais pessoas, nem como quadrilha ou bando, porque não é isto que ali está escrito. Em matéria penal, a hermenêutica deve ser realizada de forma essencialmente restritiva.

No entanto, boa parte da doutrina e da jurisprudência têm admitido que a causa de aumento em tela tem incidência, na hipótese de crime de tráfico praticado mediante concurso eventual de pessoas ou "quando a associação criminosa não se reveste de habitualidade e visa a menor ou hipossuficiente".

1.2 Lei 8.072/90 e a Criação de um Tipo Penal Híbrido de Quadrilha

A segunda lei repressiva a fazer referência ao tipo penal de quadrilha ou bando, foi a Lei 8.0872/90. E o fez para criar uma espécie híbrida de associação criminosa e fixar pena mais severa (três a seis anos de reclusão), no caso de quadrilha formada com o fim especial de praticar crimes hediondos (art. 8º).

Essa mesma Lei alterou o § 1º, do art. 159, do CP, para considerar como qualificadora da extorsão mediante seqüestro a circunstância de ser o crime praticado por quadrilha ou bando. Aqui, a associação de quatro ou mais pessoas não configura crime autônomo de quadrilha ou bando porque, neste caso específico, a associação criminosa foi legalmente transformada em circunstância qualificadora do tipo básico descrito no art. 159, caput, do CP.

1.3 Outras Leis Especiais e Persistência de um Único Tipo Penal de Quadrilha ou Bando (art. 288, do CP)

Outras leis especiais também passaram a fazer referência ao crime cometido de forma coletiva: a Lei 9.034/95, que trata das ações praticadas por organizações criminosas; a Lei 9.080/95, que acrescentou um parágrafo 2º ao art. 25, da Lei 7.492/86 e um parágrafo único ao art. 16, da Lei 8.137/90, e a Lei 9.613/98, que dispõe os crimes de "lavagem" de bens, direitos ou valores. De forma desnecessária e inócua, foram inseridas, no direito positivo, diferentes expressões (quadrilha ou bando, associação criminosa e organização criminosa e, mesmo, trama delituosa) para denominar o que, a nosso ver, constitui uma única e mesma conduta típica.

Mesmo com a vigência dessas normas penais especiais, cremos que a situação jurídicopenal continua a mesma: por falta da indispensável descrição típica, que corresponda à imperiosa exigência decorrente da adoção do princípio da legalidade, inexiste em nosso direito positivo outra infração penal de associação criminosa que não seja a de quadrilha ou bando, descrita no art. 288, do CP (para a jurisprudência e parte da doutrina, conforme veremos a seguir, persiste também a modalidade de associação criminosa, prevista no art. 14, da Lei 6.368/76).

Estamos, portanto, convivendo com uma situação jurídica que tem dificultado a elaboração de um processo hermenêutico convergente a respeito do correto conceito e do sentido do direito relativo ao crime de forma coletiva.

No que diz respeito ao direito contido nos arts. 8º, caput, da LCH, 14 e 18, II, da Lei 6.368/76 e 288 do CP, existe uma fissura aberta entre a linha interpretativa doutrinária e o entendimento dos tribunais.

2. Crime de Associação Criminosa Previsto no Art. 14 da Lei 6.368/762: Dualismo de Tipos Penais para a Mesma Situação Fática

Conforme já vimos, o art. 14, da Lei 6.368/76 não faz remissão ao crime de quadrilha ou bando, mas lançou mão do mesmo verbo associar-se, utilizado pelo art. 288, do CP, para indicar o núcleo da ação típica ali incriminada. Portanto, é preciso reconhecer que estamos diante de infrações penais com a mesma estrutura típica. A diferença entre elas consiste apenas no número mínimo de participantes (dois ou mais, no caso de associação para o tráfico e quatro ou mais, no caso de quadrilha ou bando), no fim específico da associação (cometimento de crimes de tráfico) e na pena cominada em abstrato, bem mais grave na hipótese de associação para o tráfico ilícito de entorpecentes.

O maior rigor deste tipo penal, em comparação com a modalidade de associação criminosa prevista no CP, pode ser visto no requisito de se exigir apenas dois e não quatro ou mais agentes para a formação da quadrilha. Esta circunstância fática diferenciadora não é somente um indicador de maior severidade, como também - e isto é de maior relevância - um indicador do descompromisso ou do descaso do legislador com o sentido semântico da expressão associação criminosa.

A segunda diferença está na dispensabilidade de uma intenção criminosa voltada para a prática do crime de tráfico de entorpecentes de forma reiterada, como elemento normativo do tipo, bastando à configuração do crime a formação de uma dupla criminosa para cometer um única infração penal desta espécie.

O rigor do tipo penal especial em comparação com o descrito no art. 288, do CP, está expresso, também, na maior carga punitiva: três a dez anos de reclusão e multa de cinqüenta a trezentos e sessenta dias-multa.

Portanto, a partir da Lei 6.368/76, o direito positivo brasileiro passou a conviver com duas espécies de crimes de quadrilha ou bando: o descrito no art. 288, do CP, quando a associação criminosa visar a prática de crimes em geral e o previsto no art. 14, da Lei de Tóxicos. Apesar desta ambivalência e da assimetria punitiva então positivada (num caso, pena mínima de um ano; noutro caso, pena mínima de três anos), o tratamento punitivo diferenciado não chegou a ser objeto de crítica mais severa da parte da doutrina ou da jurisprudência.

3. Quadrilha ou Bando para o Fim de Cometimento de Crimes Hediondos: Dificuldade Hermenêutica para se Fixar o Sentido Jurídico do Comando Contido no Art. 8º da LCH

A situação ficou confusa com a vigência da LCH, que acrescentou ao tipo penal do art. 288, do CP, uma variante qualificada e que se configura quando o crime cometido for de natureza hedionda. Ou seja, se a quadrilha ou bando visar o cometimento "de crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo", o preceito primário continua o do art. 288, mas a pena será de três a seis anos de reclusão (art. 8º, caput, da Lei nº 8.072/90).

A redação deste dispositivo da LCH não tem compromisso com as regras da boa técnica legislativa. Realmente, criou-se uma situação de extrema confusão jurídica; tão confusa quanto inútil e desnecessária. Isto porque o art. 14 da Lei nº 6.368/76, conforme já vimos, tinha definição específica e mais rigorosa do tipo penal de associação criminosa para o fim de prática de tráfico de entorpecente.

Pela falta de clareza e objetividade do art. 8º, da LCH, tornou-se tarefa difícil encontrar a sua verdadeira ratio legis e, em conseqüência, estabelecer o contorno jurídico do comando normativo penal ali positivado, acerca da revogação ou não do art. 14 da Lei Antitóxicos. Em relação aos demais crimes hediondos, não há problema maior de interpretação: se a quadrilha tiver por objetivo a prática dessas infrações hediondas, configura-se o tipo penal do art. 288, do CP, com a pena cominada no art. 8º, caput, da LCH.

Um ponto parece pacífico: o art. 8º, da Lei nº 8.072/90, dispõe de forma contrária ao art. 14 da Lei nº 6.368/76 (ao menos no tocante à parte sancionatória), cabendo indagar se este último dispositivo foi revogado pelo primeiro.

A doutrina está dividida. A jurisprudência, majoritariamente, entende que o art. 14, da Lei de Tóxicos, não foi ab-rogado. Por isso, examinaremos, a seguir, os argumentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a matéria.

4. Doutrina Contrária à Revogação do Art. 14 da Lei 6.368/76

Argumenta Damásio de Jesus que o art. 14 da Lei nº 6.368/76 foi apenas derrogado, subsistindo o tipo descritivo ali definido, com a pena prevista no art. 8º da LCH. Para o autor, "tratando-se de quadrilha para o fim de tráfico de drogas (arts. 12 e 13 da Lei n.º 6.368/76), não se aplica o art. 288 do Código Penal, mas sim o art. 14 da Lei de Tóxicos, com a pena do art. 8º, caput, da Lei n.º 8.072/90". Conclui, de forma incisiva, afirmando que o art. 14 não foi revogado em sua redação típica pelo art. 8º da LCH.

Portanto, para autor, se a quadrilha ou bando visar, especificamente, a prática do crime de tráfico de entorpecentes, basta o mínimo de dois participantes para a configuração da infração contra a paz social e a pena será a cominada na LCH. Admite, no entanto, que em face da "grande dúvida" criada pela norma contida no art. 8º da Lei de Tóxicos, "três opções de interpretação são possíveis" e que fez sua opção por aquela que considera a "menos pior e mais razoável".

O mesmo entendimento foi adotado por Antônio Lopes Monteiro, Júlio Fabrini Mirabete, Isaac Sabbá Guimarães e Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Este último, em trabalho monográfico sobre o assunto, apresenta o seguinte argumento de hermenêutica jurídica: "no confronto entre as normas dos arts. 288 e 14, o primeiro do Código Penal e o segundo da Lei de Tóxicos, é perfeitamente aplicável o princípio da especialidade diante da antinomia aparente, porquanto a ordem jurídica é constituída de diversas disposições que se harmonizam e se complementam".

Em excelente artigo sobre o tema, Carlos Henrique Maciel também rejeita a tese da ab-rogação. Entende que são distintas as matérias de proibição das duas normas e que, por isso, não se pode aplicar ao caso a regra lex posterior derogat legi priori. Admite que a hipótese é de uma antinomia valorativa em face da qual deve "procurar o Árbitro conciliar os dois preceitos no que for razoavelmente possível". Conclui, afirmando que "às escâncaras, o Legislador consignou a permanência do art. 14 da Lei Antitóxicos no cenário jurídico-legal, não deixando margem à dúvida a respeito de sua higidez normativa".

5. Doutrina Favorável à Revogação do Art. 14 da Lei 6.368/76

Parte da doutrina, no entanto, defende a tese ab-rogadora do art. 14 da Lei nº 6.368/76. Assinala Alberto Silva Franco, que o legislador de 90, utilizando-se dos elementos do tipo penal previsto no art. 288, "efetuou a montagem oblíqua de uma outra figura criminosa, com igual denominação jurídica". Assinala que a norma contida no 8º é posterior e dispõe de forma contrária ao art. 14. Por isso, o crime de quadrilha, formado com a finalidade do tráfico ilícito de entorpecentes, para sua configuração típica, deve respeitar a redação do preceito primário do art. 288 do CP e tem, como preceito sancionatório, a pena prevista no art. 8º Lei 8.072/90.

Francisco de Assis Toledo, também, se posiciona no mesmo sentido, ao ressaltar que o tipo descrito no art. 14 da Lei de Tóxicos já se constituía num equívoco de técnica legislativa e de Política Criminal, pois considerava crime a associação de apenas duas ou mais pessoas.

Para Vicente Greco Filho, outro penalista a defender a ab-rogação do art. 14 da Lei de Tóxicos, o fundamento jurídico repousa na vedação de se combinar duas normas penais para criar uma terceira.

6. Jurisprudência: Art. 8º da LCH não Revogou o Art. 14, da Lei de Entorpecentes.

No entanto, a jurisprudência encaminhou-se para consolidar o entendimento de que a norma contida no art. 8º da LCH não revogou o disposto no art. 14 da Lei de Tóxicos. Em conseqüência, para as cortes superiores, se apenas dois indivíduos se associarem para a prática de crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, este número já será suficiente para configurar o crime de associação, cuja pena aplicável será a prevista no art. 8º, da LCH. Tanto que o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisões neste sentido e firmou tese com o seguinte teor:

"Entorpecentes: o art. 14 da Lei nº 6.368/76 não foi revogado pelo disposto no art. 8º da Lei n.º 8.072/90 (Crimes Hediondos), vez que este artigo de lei estabelece novas sanções para os delitos previstos no art. 288 do CP e 14 da Lei de Tóxicos, não criando novo tipo penal incriminador" (Tese nº 297 do STJ).

O STF tem a mesma orientação. Ambas as turmas firmaram entendimento de que, "quando se tratar de quadrilha para o fim de traficar drogas, prevalece o art. 14 da Lei 6.368/76, com a pena prevista no art. 8º da Lei 8.072/90". O argumento dos ministros da Suprema Corte apoia-se na idéia de que estamos diante de dois "textos legais da mesma hierarquia e vigentes ao mesmo tempo" e que, portanto, não se trata de uma questão de direito intertemporal. Em conseqüência, não havendo conflito temporal de normas, não se pode falar de revogação da lei antiga (art. 14 da Lei de Tóxicos) pela lei nova (art. 8º, da LCH).

Cabe ressaltar que o crime de quadrilha definido na Lei de Tóxicos não é considerado crime hediondo, pelo simples fato de não haver previsão legal neste sentido. O princípio da legalidade não admite que se possa conferir esse rótulo por simples semelhança ou analogia. Assim, quando a LCH refere-se ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes, a interpretação do dispositivo deve restringir-se somente e apenas aos tipos penais que portam essa denominação jurídica: ou seja, àqueles definidos nos arts. 12 e 13 da Lei 6.368/76. Sobre esta questão doutrina e jurisprudência pensam de forma convergente.

Em conseqüência, afirmando que o crime de quadrilha ou bando não é considerado como hediondo, a Suprema Corte já decidiu pela "inaplicabilidade da regra proibitiva da progressão ao condenado pelo delito de associação incriminado no art. 14 da Lei de Entorpecentes". Trata-se de posição que tem sido adotada, reiteradamente, pelo STJ.

7. Melhor Hermenêutica: Ab-rogação do Art. 14 da Lei 6.368/76

Cremos que a melhor interpretação está com a corrente doutrinária que defende a revogação do art. 14, da Lei Antitóxicos, pelo art. 8º, da LCH. Este último dispositivo legal, não instituiu um novo tipo penal, mas estabeleceu claramente que será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do CP, "quando se tratar de crimes hediondos, prática de tortura, trafico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo". O dispositivo refere-se e se encarna ao preceito do tipo penal do art. 288 do CP, cominando pena mais grave no caso de associação delitiva com o fim especial de praticar crimes hediondos, aí incluído expressamente o de tráfico de substância entorpecente.

Ora, se o legislador quisesse manter a vigência do art. 14, na condição de norma tipificadora de uma conduta distinta e autônoma e, assim, preservá-la da ab-rogação tácita, não teria feito referência expressa ao tipo penal ali descrito, ao criar, mediante lei posterior (art. 8º, da LCH), uma nova figura de associação. Ao contrário disto, o próprio legislador, no texto deste último dispositivo, refere-se expressamente ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes, igualando-o aos demais casos de associação para crimes hediondos. Aqui, o respeito ao princípio da isonomia não pode permitir que situações fáticas igualadas pela lei positiva, sejam tratadas de forma diferente e em desfavor do réu.

Um segundo argumento em favor da tese revogadora está no fato de que a expressão associação criminosa, como sinônimo de quadrilha ou bando, não pode ser considerada como reunião estável de apenas duas pessoas, como está positivado no art. 14 da Lei 6.368/76. A nosso ver, este é o ponto substancialmente mais relevante da questão, desde é claro, que se parta do pressuposto de que associação e quadrilha, na linguagem jurídicopenal, têm o mesmo sentido. E é uma questão que não tem sido objeto da necessária análise crítica de parte da doutrina e da própria jurisprudência.

Para a semântica, quadrilha é sinônimo de bando de criminosos. Em conseqüência, para a semântica do Direito Penal, quadrilha ou associação somente tem sentido como expressão de um grupo ou um bando estável constituído de diversos membros e não apenas de duas pessoas. Por isso, a doutrina e o próprio direito positivo consolidaram o entendimento de que, na linguagem jurídicopenal, o conceito de quadrilha, bando, associação ou organização criminosa, além de outros elementos jurídicos, pressupõe a ação participativa de quatro ou mais meliantes comprometidos com a prática de crimes.

Diante deste conceito material de quadrilha ou bando, que a nosso ver, é o único compatível com o direito positivo vigente, já não se poderia admitir a validade de uma norma repressiva que considera quadrilha a associação de apenas duas pessoas.

O argumento de que o art. 14 é norma especial e que, portanto, manteve sua eficácia para o caso específico de crime de tráfico de entorpecentes, não convence em face da própria particularidade da questão. Não bastasse o fato da impropriedade de uma norma que instituiu uma associação criminosa com apenas dois integrantes, é preciso salientar que o art. 8º da LCH é, também, norma especial e, o que é importante, norma especial posterior àquela da Lei de Entorpecentes. Por isso, na hipótese em exame, não se pode argumentar com a regra elementar de hermenêutica de que a norma especial derroga a geral, porque aqui estamos diante de duas normas especiais e uma delas (obviamente, a anterior, que é o art. 14, da Lei 6.368/76), foi revogada.

Também, não nos convence, data vênia, o argumento adotado pelo STF de que se trata - no caso - de mera interpretação corretiva e não de um processo hermenêutico de combinação de duas leis penais. Parece claro que o STF fez uma tortuosa montagem de leis para criar um tipo penal de associação para o tráfico assentado numa inadmissível combinação trinômica. E é sabido que a técnica de se combinar duas ou mais normas distintas para formar uma terceira, em regra, não tem sido admitida pela própria Suprema Corte. Da mesma forma, não nos parece aceitável a alegação de que, na hipótese, não ocorreu conflito intertemporal, mas sim vigência simultânea de normas. Ao decidir contrariamente à tese ab-rogadora, o STF não só aplicou uma técnica interpretativa rejeitada pela própria Corte, como o fez em detrimento do réu.

Por outro lado, o fato de que a Lei Anti-Seqüestro, em seu art. 10, refere-se expressamente ao art. 14, não nos parece constituir argumento suficiente para fundamentar a tese em favor da vigência deste último dispositivo. Em se tratando de revogação tácita, deve-se atribuir a contradição, embora não justificável, a um equívoco do legislador. Aliás, tantos foram os equívocos e contradições da LCH que este não parece tão grave.

8. Considerações Finais

Diante do exposto, pode-se afirmar que o art. 8º, da Lei nº 8.072/90, por ser norma posterior e dispor em sentido contrário, revogou o art. 14 da Lei Antitóxicos. Dispõe em sentido contrário porque, ao referir-se ao art. 288 do CP, exige o número mínimo de quatro participantes para constituição da quadrilha e comina nova quantidade de pena. Por isso, crime de quadrilha, a partir da vigência do art. 8º da LCH, a nosso ver, só com o concurso de quatro ou mais agentes.

Na verdade, com a nova lei foi criado um tipo penal híbrido, ou melhor, uma infração penal com apenas um corpo, mas com duas faces punitivas: uma, revela a carga repressiva mais severa, cominada aos quadrilheiros que pretendem praticar crimes hediondos e a outra, a carga punitiva menos severa, prevista para os autores do crime de quadrilha destinada à prática dos demais crimes.

Por rotular como quadrilha a reunião de duas ou mais pessoas, o art. 14 da Lei 6.368/76 constituía um equívoco jurídicopenal que precisava do necessário bisturi ab-rogatório de uma nova norma jurídica.

 

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Como citar o texto:

LEAL, João José..Crimes de quadrilha e de associação criminosa para o tráfico: análise da divergência entre a Hermenêutica Doutrinária e a Jurisprudencial. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 115. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/505/crimes-quadrilha-associacao-criminosa-trafico-analise-divergencia-entre-hermeneutica-doutrinaria-jurisprudencial. Acesso em 21 fev. 2005.

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