A argüição de descumprimento de preceito fundamental é um instrumento de fiscalização concentrada de constitucionalidade, que foi instituído pela Constituição Federal de 1988. Inicialmente expresso no art. 102, parágrafo único, passou com a Emenda Constitucional nº 03/93, que instituiu a ação declaratória de constitucionalidade, a ser tratada em seu art. 102 § 1º, verbis:

Art. 102, § 1º. “A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”.

De fato, trata-se de norma constitucional não auto-executável ou não auto aplicável. De uma norma de eficácia limitada ou reduzida, conforme classificação adotada por José Afonso da Silva[1], apresentando aplicabilidade indireta, mediata, e reduzida, porque somente incidem totalmente sobre esses interesses, após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a aplicabilidade.

Tanto é uma norma que necessita de lei que lhe dê operatividade que o Supremo Tribunal Federal rejeitava as argüições de descumprimento de preceito fundamental que lhe eram submetidas, por lhes faltar uma lei regulamentadora exigida pela própria Constituição Federal, conforme se pode inferir da ementa abaixo transcrita:

101157 – JCF.102.1 ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ART. 102, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – ARTS. 4º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CC E ART. 126 DO CPC – 1. Enquanto não houver lei, estabelecendo a forma pela qual será apreciada a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente da Constituição, o STF não pode apreciá-la. 2. Até porque sua função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, caput). E é esta que exige Lei para que sua missão seja exercida em casos como esse. Em outras palavras: trata-se de competência cujo exercício ainda depende de Lei. 3. Também não compete ao STF elaborar Lei a respeito, pois essa é missão do Poder Legislativo (arts. 48 e seguintes da CF). 4. Não incide, no caso, o disposto no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual "quando a lei for omissa, o Juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, para resolver lide "inter partes". Tal norma não se sobrepõe à constitucional, que, para a argüição de descumprimento de preceito fundamental dela decorrente, perante o STF, exige Lei formal, não autorizando, à sua falta, a aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito". (STF – AgRg em Petição 1.140-7 – TO – Plenário – Rel. Min. Sydney Sanches – DJU 31.05.1996’- in Juris Síntese Millennium – CD-ROM).

 Antes da regulamentação do art. 102, § 1º da Constituição Federal pela Lei nº 9.882/99, Clèmerson Merlin Clève, propôs um esboço de como poderia ser a norma que daria efetividade à argüição de descumprimento de preceito fundamental:

"Caberia, em princípio, à lei (i) definir os preceitos processuais protegidos pelo meio processual, (ii) caracterizá-los como mecanismo supletivo (cabimento no caso de inexistência ou insuficiência de outro meio processual – recurso ou ação) e, finalmente, (iii) exigir a exaustão das vias ordinárias (sob pena de "inflação de ações" e de "banalização" do instituto). Por outro lado, dotando-se de efeitos vinculantes todas as decisões de mérito da Excelsa Corte em processo objetivo, seria o caso de a lei exigir, ainda, como pressuposto, a inexistência de manifestação anterior do Supremo sobre a questão ".[2]

Em 04 de julho de 1997, o Ministro da Justiça Íris Resende editou a Portaria nº 572, publicada no D.O.U. de 07 de julho de 1997, instituindo a comissão destinada a elaborar estudos e anteprojeto de lei que disciplinasse a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Foram designados, para compor esta comissão: o Prof. Celso Ribeiro Bastos (presidente), o Prof. Gilmar Ferreira Mendes, o Prof. Ives Gandra Martins e o Prof. Oscar Dias Corrêa.

É necessário observar, todavia, que desde março de 1997 tramitava no Congresso o Projeto de Lei de no 2.872, de autoria da ilustre deputada Sandra Starling, objetivando, também, disciplinar o instituto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, sob o nomen juris de "reclamação". A reclamação restringia-se aos casos em que a contrariedade ao texto da Lei Maior fosse resultante de interpretação ou de aplicação dos Regimentos Internos das Casas do Congresso Nacional, ou do Regimento Comum, no processo legislativo de elaboração das normas previstas no art. 59 da Constituição Federal.

Sendo que em 04 de maio de 1998, o projeto de lei da deputada Sandra Starling recebeu parecer favorável do relator, o ilustre deputado Prisco Viana, pela aprovação do projeto na forma de substitutivo de sua autoria.

O Substitutivo Prisco Viana ofereceu disciplina que muito se aproximava daquela contida no Anteprojeto de Lei da Comissão Celso Bastos, podendo ser considerado praticamente uma reprodução com algumas modificações e acréscimos  normativos.

Este projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e Redação da Câmara dos Deputados, foi referendado pelo Plenário da Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, tendo sido submetido ao Presidente da República, que sancionou a Lei 9882 em 3 de dezembro de 1999 a Lei 9882, com veto ao inciso II do parágrafo único do art. 1o, ao inciso II do art. 2º, ao § 2º do art. 2º, ao § 4º do art. 5º, aos §§ 1º e 2º do art. 8º, e ao art. 9º.

2 - O objeto

A Lei 9882/99 possibilita a argüição de descumprimento de preceito fundamental em três hipóteses: para evitar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público, para reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público e quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal incluídos os anteriores à Constituição.

A argüição de descumprimento de preceito fundamental por equiparação está prevista no parágrafo único do art. 1º da Lei 9882/99, suscitando questionamentos concernentes à sua constitucionalidade ou não, sendo inclusive, objeto de impugnação via Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2231, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, impetrada perante o Supremo Tribunal Federal.

Para aqueles que sustentam a inconstitucionalidade deste dispositivo, um dos seus principais argumentos é o de que somente a Constituição Federal poderia instituir hipóteses de controle abstrato de constitucionalidade. A lei ordinária não deteria esse poder. Restando caracterizado o vício formal de constitucionalidade, por alargamento da competência da Corte Suprema.

Em sentido contrário, alguns autores entendem que o disposto no parágrafo único do art. 1º da Lei 9882/99, regulamenta as hipóteses de cabimento da argüição no combate a situações em que lei ou ato normativo representem uma ameaça à proteção de direitos fundamentais e a Supremacia constitucional.

Nesta concepção não há propriamente uma ampliação da competência do STF ocasionada por uma lei ordinária. O art. 102 §1º da CF, norma de eficácia limitada, conforme já visto, não estabelece o objeto da argüição, e sim incumbi a lei ordinária à forma de apreciação da argüição de descumprimento de preceito fundamental pelo Supremo Tribunal Federal. A lei 9882/99 não amplia a competência do Supremo a casos que não tem relação com sua função precípua de guardião da Constituição, apenas dá operatividade a uma norma não auto-executável.

3 - CONCEITO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

O art. 102, § 1º da Constituição Federal ao definir o objeto da argüição como desrespeito a preceito fundamental decorrente da Constituição Federal, não especificou quais seriam estes preceitos.

 A delimitação do conceito de preceito fundamental encontra posições díspares na doutrina, que não possui uniformidade no entendimento do que seriam os preceitos fundamentais e quais preceitos justificariam uma ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental.

Alguns autores sustentam que o artigo 102, § 1º da Constituição ao preceituar "descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição", abriu a possibilidade de encontrarmos preceitos fundamentais fora da Constituição, pois se é decorrente da Constituição, não necessariamente deverá estar contido nela. E remetem ao disposto no § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, que admite a existência de outros direitos e garantias além daqueles expressos na Constituição "decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (ou dos tratados internacionais firmados)".

O Prof. José Afonso da Silva assevera que:

“Preceitos fundamentais não é expressão sinônima de princípios fundamentais. É mais ampla, abrange a essas e todas prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como são, por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e especificamente as designativas de direitos e garantias fundamentais (Título II)”[3].

Pondera o Prof. André Ramos Tavares que há de se considerar fundamental o preceito quando o mesmo apresentar-se como imprescindível, basilar ou inafastável.

Nesta esteira, Alexandre de Moraes escreve que:

"Os preceitos fundamentais englobam os direitos e garantias fundamentais da Constituição, bem como os fundamentos e objetivos fundamentais da República, de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais"[4].

Para a determinação de um conceito, já de início, não se deve restringir a idéia de preceito ao que costumamos denominar princípios. Nem, muito menos, abrangermos os preceitos fundamentais a todas as regras e princípios constitucionais.

É exatamente o caráter da fundamentalidade do preceito que determinará sua inclusão nas hipóteses de abrangência de proteção por meio da argüição. Com efeito configura preceito fundamental: as clausulas pétreas, os princípios fundamentais, os princípios sensíveis e os direitos e garantias fundamentais.

4 - SUBSIDIARIEDADE DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

A lei expressamente veda a possibilidade de argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.

Uma leitura literal do disposto no art. 4º, § 1º da Lei 9882/99 tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade (ou do exaurimento das instâncias) vigente no direito alemão e no direito espanhol para, respectivamente, o recurso constitucional e o recurso de amparo, acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático.

De uma concepção estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial.

Não obstante, numa leitura escorreita verifica-se a necessidade de uma analise objetiva, ou seja, da proteção da ordem constitucional objetiva. Nesse sentido, se considera o caráter enfaticamente objetivo do instituto sendo apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata.

O princípio da subsidiariedade contido no art. 4º, § 1º, da Lei 9882 de 1999, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global. Destarte, o ajuizamento da ação e a sua admissão estarão vinculados ao significado da solução da controvérsia para o ordenamento constitucional objetivo e não para a proteção judicial efetiva de uma situação singular.

Assim nos casos relativos ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Em face do não-cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da argüição de descumprimento.

Afigura-se igualmente legítimo cogitar de utilização da argüição de descumprimento nas controvérsias relacionadas com o princípio da legalidade (lei e regulamento), uma vez que, assim como assente na jurisprudência, tal hipótese não pode ser veiculada em sede de controle direto de constitucionalidade.

O quê não se pode admitir é que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários deva excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Até porque, tal como assinalado, o instituto assume, entre nós, feição marcadamente objetiva.

5 - O ART. 10 DA LEI nº 9882/99

O art. 10 da Lei 9882 de 1999 prevê a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal fixar “as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental”.

De certo que, o que seria correto era que o Supremo fixasse as condições e o modo para que cesse o descumprimento do preceito fundamental.

Dispositivo este que revela um certo conteúdo fascista, eis que incide num monopólio total, anuviando o livre convencimento do juiz.

Não pode o supremo Tribunal Federal fixar uma matriz interpretativa do preceito fundamental, porque nada é mais variável do que a interpretação do preceito fundamental que vai se aplicar a uma série de casos dado sua abertura normativa. O Supremo deve apenas sanar a violação do preceito fundamental, aí sim estabelecendo condições, modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental, eis que essa tem nítida relevância com o dispositivo do acórdão. A decisão apenas deve ser suficiente para que o preceito deixe de ser descumprido por aqueles atos determinados do poder público.

6 - EFEITOS DA DECISAO PROFERIDA NA ARGUIÇAO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

A decisão na argüição de descumprimento de preceito fundamental poderá ter, segundo previsão do art. 10, § 3º da Lei 9882/99, eficácia contra todos e efeitos vinculantes relativamente aos demais órgãos do Poder Público.

A Lei 9882/99 seguiu o rastro da lei que disciplina a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade conferindo os mesmos efeitos decorrentes da declaração de inconstitucionalidade.

Apresenta a argüição de descumprimento de preceito fundamental, efeitos erga omnes, efeito vinculante, efeito ex tunc ou ex nunc, e efeito repristinatório. Destarte considerando a particularidade de cada efeito faz-se, abaixo, uma digressão a cada um deles.

A declaração de inconstitucionalidade torna aplicável a legislção anterior, que havia sido revogada pela norma impugnada, daí o efeito repristinatório.

Quanto ao efeito ex tunc ou ex nunc, a regra é da eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade.

O efeito ex tunc tem o condão de desfazer, desde a sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as conseqüências dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica.

Assim, a inconstitucionalidade, conforme entendimento da Corte Suprema “decreta a total nulidade dos atos emanados do poder público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito”.

Seguindo a orientação da EC nº 03 de 17-03-19993, que instituiu efeitos vinculante à ação declaratória de constitucionalidade, a Lei 9882/99, assim com fez a Lei 9868/99, previu o obrigatório respeito das decisões do STF, em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental, terão força geral e obrigatória, nos mesmos moldes do direito austríaco, alemão e português, pois, enquanto intérprete maior da compatibilidade abstrata do ordenamento jurídico com as normas constitucionais, vinculam o legislador, todos os tribunais e todas as autoridades administrativas.

Em relação ao legislador, os efeitos vinculantes atuam no sentido de impedir que editem novas normas com idêntico conteúdo ao daquela anteriormente declarada inconstitucional, ou ainda, normas que convalidem os efeitos da norma declarada inconstitucional ou anulam os efeitos da decisão da Corte Suprema.

Em relação a todos os juízos e tribunais, restará afastado o controle difuso de constitucionalidade, uma vez que estarão vinculados não só à decisão do Supremo Tribunal Federal, mas também à interpretação constitucional que lhe foi dada à norma.

O próprio Supremo Tribunal considera-se vinculado aos efeitos de sua decisão abstrata de constitucionalidade, pois não há a possibilidade de nova análise contestatória da matéria, sob a alegação da existência de novos argumentos que ensejariam uma nova interpretação constitucional. Esse entendimento é pacificado no Supremo Tribunal Federal, por entender que, na análise concentrada da constitucionalidade das leis e atos normativos, não está vinculado a causa de pedir, tendo, pois, cognição plena da matéria, examinando e esgotando todos os seus aspectos constitucionais.

A autoridade administrativa também não poderá aplicar a norma dita inconstitucional, e deverão pautar suas condutas pela interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal.

Mas o efeito vinculante, da decisão proferida na argüição de descumprimento de preceito fundamental, poderia validamente ser previsto pelo legislador sem violação ao Texto Supremo?

Há uma certa divergência doutrinária quanto a este questionamento.

Alguns juristas de escol entendem que as previsões legais em estudo são compatíveis com a Constituição.

Assim Gilmar Ferreira Mendes:

"Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais"[5].

Outros salientam ainda que as decisões do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, adquiriram status de fontes do direito. A norma cuja inconstitucionalidade foi declarada não pode ser mais aplicada. Nem se pode questionar a validade da que teve reconhecida sua constitucionalidade.

Em sentido contrário, há outro posicionamento que defende a irremissível inconstitucionalidade por violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, do juiz natural, das normas constitucionais que prevêem a possibilidade de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos incidentalmente, do princípio da separação de poderes.

Há violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto no art. 5º, inciso XXXV da CF, porque "embora o particular possa dirigir ao Judiciário pretensão de reparação de ofensa a direito seu, na prática isto não ocorre, porque o Judiciário só pode aplicar ao caso concreto o que restou decidido pelo STF" [6]. Não há possibilidade de adoção da tese suscitada pelo particular, já que há o efeito vinculante da decisão do Pretório Excelso, restando abolida por via oblíqua ou indireta o próprio direito de ação.

O princípio do juiz natural foi violado, eis que foi subtraída da competência dos juízes e Tribunais o exercício do controle difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos, cuja compatibilidade já foi apreciada pelo Pretório Excelso em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

A independência dos magistrados restou violada com a previsão do efeito vinculante da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Todos os juízes e Tribunais estarão compelidos, em face do citado efeito, a emprestar, com automaticidade imprópria ao ofício judicante, ou seja, sem a realização de um julgamento livre.

A previsão legal do efeito vinculante viola o princípio da separação de poderes, já que impossibilita qualquer controle, mesmo o interno, pelo próprio Tribunal Constitucional que não terá possibilidade de rever seu entendimento já externado em qualquer das ações acima citadas. Ademais, nem o legislativo, nem o executivo poderão editar, no futuro, lei ou ato normativo com fundamentos ou motivos determinantes idênticos ou semelhantes ao ato que foi anteriormente declarado inconstitucional em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

Somente o poder constituinte originário é que poderia prever o efeito vinculante no controle concentrado, já que há incompatibilidade com as cláusulas pétreas, inclusive com a garantia do controle concentrado de constitucionalidade, verdadeira garantia individual.

Argumentos estes utilizados também na defesa da inconstitucionalidade do efeito vinculante na ação declaratória de constitucionalidade e na ação direta de inconstitucionalidade, instituído pela EC nº 03/93, o que torna ainda mais intrigante na argüição de descumprimento de preceito fundamental, pois este efeito foi estabelecido por uma lei ordinária. 

7 - A MANIPULAÇAO DOS EFEITOS DA DECISAO PROFERIDA NA ARGUIÇAO

A Lei 9882/99, assim como a Lei 9868/99, permitiu ao Supremo Tribunal Federal a limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

Assim, o art. 11 prevê que,

“Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

Verifica-se que em casos excepcionais, extraordinários, por razões de segurança jurídica ou em caso de excepcional interesse social, o Supremo Tribunal Federal, mediante decisão da maioria qualificada, poderá:

"estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostra inadequada (v.g., lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional"[7].

Desta forma a lei permitiu ao Supremo Tribunal Federal a manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, seja em relação aos seus efeitos temporais, desde que presentes os requisitos constitucionais: requisito formal e requisito material.

Pelo requisito formal, a lei exige que o Supremo Tribunal Federal tome sua decisão de alteração dos efeitos por maioria de dois terços dos membros do Tribunal; enquanto, pelo requisito material exige-se a presença de razoes de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Logicamente, a restrição dos efeitos da declaração da inconstitucionalidade deve ser decidida juntamente com a própria ação direta, jamais posteriormente.

Em relação à amplitude dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a regra geral consiste me que a decisão tenha efeito erga omnes, decretando-se, conforme já analisado, a nulidade total de todos os atos emanados do Poder Público com base na lei ou atos normativo inconstitucional. Além disso, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma acarreta a repristinação da norma anterior que por ela havia sido revogada, uma vez que norma inconstitucional é norma nula, não subsistindo nenhum de seus efeitos.

Excepcionalmente, poderá o Supremo Tribunal Federal, presentes os requisitos já analisados, limitar esses efeitos, seja para afastar a nulidade de alguns atos praticados pelo Poder Público com base na norma declarada constitucional, seja para afastar a incidência dessa decisão em relação a algumas situações, seja, ainda, para eliminar, total ou parcialmente, os efeitos repristinatórios da decisão.

Alexandre de Moraes entende que há uma restrição lógica à fixação do momento inicial para a incidência dos efeitos, que não fica inteiramente ao alvitre do guardião da Constituição.

"Assim, se o STF entender pela aplicação dessa hipótese excepcional, deverá escolher como termo inicial da produção dos efeitos qualquer momento entre a edição da norma e a publicação oficial da decisão. Dessa forma, não poderá o STF estipular como termo inicial para produção dos efeitos da decisão, data posterior à publicação da decisão no Diário Oficial, uma vez que a norma inconstitucional não mais pertence ao ordenamento jurídico, não podendo permanecer produzindo efeitos"[8].

7.1 – Análise da compatibilidade da manipulação dos efeitos da decisão na argüição com a Constituição Federal

Questão que deve ser tratada é a da compatibilidade ou não do dispositivo da Lei 9882/99 [9], que versa sobre a manipulação dos efeitos da decisão prolatada na argüição com a Constituição Federal.

Embora não conste expressamente na Lei Maior, predomina o entendimento que consagra a nulidade do ato inconstitucional, retroagindo a sua declaração, já que tais atos não possuem aptidão para surtir efeitos jurídicos válidos.

Convém repetir as palavras de Gilmar Ferreira Mendes:

"O princípio da nulidade da lei inconstitucional tem hierarquia constitucional"[10]. Concluindo que foi preservada "a orientação que considera nula ipso jure e ex tunc a lei inconstitucional" [11].

No entanto o citado autor mudou de entendimento, concluindo que a "lei inconstitucional não seria, portanto, nula ipso iure, mas apenas anulável" [12].

Há respeitáveis opiniões no sentido da possibilidade de aplicação do efeito ex nunc.

Ives Gandra da Silva Martins já externou seu entendimento:

"No Brasil, uma vez declarada, via controle concentrado, a inconstitucionalidade, esse reconhecimento atinge a norma desde sua origem e, por força do princípio da segurança jurídica, a decisão tem efeito vinculante e erga omnes. Porém, diante da impossibilidade material de reconduzir as situações definitivamente constituídas, sob a égide da norma inválida, à situação pretérita, eliminando todos os efeitos do ato legislativo inválido, pode o tribunal reconhecer à decisão de mérito, eficácia ex nunc"[13].

Em outra linha de raciocínio, sustenta-se a inconstitucionalidade do artigo 11 da Lei 9.882/99 por violar o princípio constitucional da nulidade da lei inconstitucional, o princípio da supremacia da Constituição, os artigos 97 e 102, III, a, b e c, da Constituição Federal, a separação de poderes, e o princípio da segurança jurídica.

Não se podendo admitir que a lei restrinja o princípio constitucional da nulidade, viabilizando, desta forma, a possibilidade de que um ato inconstitucional produza efeitos. Sendo defeso à lei alterar um princípio constitucional, possibilitando, até que por louváveis razões, que o ato inconstitucional produza efeitos.

A separação dos poderes, para alguns doutrinadores, também restou violada, pois permite-se que o Supremo Tribunal Federal, com uma margem de discricionariedade muita ampla, legisle, ao determinar que os efeitos da nulidade da lei inconstitucional somente ocorram no futuro, caracterizando-se como verdadeira revogação futura da validade das normas vigentes. Ainda esta margem de liberdade conferida ao Pretório Excelso para deliberar sobre a retroatividade ou não dos efeitos de sua decisão foi tão ampla que fulmina a possibilidade de previsão se os efeitos serão ex tunc ou não, o que prejudica a certeza do direito e estabilidade das relações jurídicas, afrontando o princípio da segurança jurídica.

8 - CONCLUSÃO

 Nota-se existir uma tendência de incremento do método de jurisdição concentrada, sem prejuízo do controle difuso, mediante as sucessivas previsões legislativas em prol do controle centralizado.

De certo que, dentro do sistema brasileiro de fiscalização da constitucionalidade que é, já, um dos mais completos (e complexo) do mundo, que a argüição de descumprimento de preceito fundamental vem a somar-se aos mecanismos assecuratórios do princípio da supremacia constitucional. Um instituto que, sem dúvida, introduziu profundas alterações no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. No entanto, a lei que o prevê, lamentavelmente, viola algumas normas estabelecidas pela na nossa Constituição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  • CLÉVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de inconstitucionalidade no direito brasileiro, 2ª edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000.
  • MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99, p. 142.
  • MÉLEGA, Luiz Henrique Cavalcanti. Argüição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF – Art. 102, § 1o da C.F. Repertório IOB de Jurisprudência, 1a quinzena de março de 2001, n.º 05/2001, Caderno 1, p. 142.
  • MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e legislação Constitucional, Ed. Jurídico Atlas, 2002.
  • MORAES Alexandre de, Direito Constitucional, Jurídico Atlas, 8a edição, 2000.
  • MOTTA, Sylvio; DOUGLAS, William. Controle de Constitucionalidade, Impetus Editora, 2002.
  • SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo.19º. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
  • SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 3ª edição, São Paulo, Malheiros, 1998.
  • SARMENTO, Daniel. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99.
  • TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 15ª edição, Malheiros, 1999, São Paulo.

 

Notas:

[1] SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982. p. 89- 91.

[2] CLÉVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, 2ª edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 409.

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 12º Ediçao, editora Malheiros, p. 530

[4] MORAES, Alexandre de. Argüição de descumprimento de Preceito Fundamental: Análise à Luz da Lei nº 9882/99, p. 17.

[5]  Gilmar Ferreira Mendes, Diretos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 457; André Ramos Tavares, sobre o efeito vinculante, afirma que:"A súmula vinculante poderá cumprir importante papel no Direito brasileiro, e não irá muito além do efeito vinculante já existente para a ação declaratória de constitucionalidade. Ademais, sempre restará uma certa abertura para o magistrado, na medida em que é só a análise do caso concreto que poderá determinar se a súmula incide ou não. Nesse ‘vazio’, portanto, atua a compreensão do magistrado e do próprio administrador, Op. cit., p. 150.

[6] Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Nery, op. cit., p. 179.

[7] MENDES, Gilmar Ferreira. Anteprojeto de lei sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, p. 31.

[8]  MORAES Alexandre de, Direito Constitucional, Jurídico Atlas, 8a edição, 2000.

[9] Assim como o artigo 27, da Lei 9868/99.

[10] MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99, p. 255. O citado autor em nota de rodapé menciona julgado do Supremo Tribunal Federal, no RE 103.619, Rel. Min. Oscar Corrêa, publicado na RDA n. 160/80.

[11] Op. cit., p. 256.Acrescenta o citado autor que tal posição tem base constitucional: "O princípio do Estado de Direito, fixado no artigo 1º, a aplicação imediata dos direitos fundamentais, consagrada no § 1 º, do artigo 5º, a vinculação dos órgão estatais aos princípios constitucionais, que daí resulta, a imutabilidade dos princípios constitucionais, no que concerne aos direitos fundamentais e ao processo especial de reforma constitucional, reforçam a supremacia da Constituição", op. cit., mesma página.

[12] Mendes Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade: comentários à Lei nº 9868, de 10-11-1999, p. 314.

[13] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Eficácia das decisões do Supremo Tribunal Federal, RP 97/248, p. 03.

(Elaborado em 06/2005)

 

Como citar o texto:

MOREIRA, Conrado Rangel..A argüição de descumprimento de preceito fundamental e suas peculiaridades. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 142. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/775/a-arguicao-descumprimento-preceito-fundamental-peculiaridades. Acesso em 8 set. 2005.

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