Há muito venho me interessando pelo estudo do fenômeno da coisa julgada e sua intangibilidade. Deparei-me que a preocupação não é nova e a doutrina e jurisprudência nacional e estrangeira vêm alentando cada vez mais o tema, migrando para um critério de justiça, não só filosófica como de lógica e da boa-razão, ou seja de praticidade efetiva.

É curioso quando de lege lata surge uma nova situação de abalo na intangibilidade da coisa julgada. Mas, de ordem estritamente técnica com espeque na Emenda constitucional 45.

Entendam os Senhores que quando falo em coisa julgada aponto a sentença da qual não caiba mais recurso e quando falo em coisa julgada soberana é por ter ultrapassado o prazo decadencial da rescisória. Cuidem que tal distinção demonstrar-se-á primordial ao desfecho do texto.

Pois bem.

A emenda 45 traz em sua redação o aparecimento da súmula vinculante nos seguintes termos:

 

"Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso."

Tal dispositivo traz inúmeros aspectos e matizes a serem estudados sistematicamente de acordo com o ramo do direito. Por ora é no campo processual que veremos suas conseqüências.

Sabemos que ao Supremo Tribunal Federal foi-lhe atribuída a função precípua da leitura de nossa Lei Maior, eis que preenchida com termos, muitas vezes, vagos e imprecisos. Carecem tais termos de uma delimitação, a qual se disse é ao Excelso Pretório tal competência. Uma competência que se alia à legiferante, visto o respeito que muitos Tribunais outorgam às súmulas do STF. Demonstra-se que mesmo a lei clara merece e pode ser dada uma interpretação restritiva ou ampliativa em seus termos.

Posto esses termos, vamos estudar a questão da súmula vinculante.

Mesmos existindo a súmula vinculante, e, o atendimento costumeiro afeito por alguns Juízes, não estará o Julgador preso a esta, podendo proferir sentença diversa da interpretação dada pelo Supremo, preocupado com isso o próprio legislador tratou de repetir o lenitivo processual da reclamação.

Sendo proferida sentença com conteúdo diverso da súmula e a parte não reclamando estaremos diante de uma sentença existente, válida e aparentemente eficaz (para não dizermos ineficaz, estando futuramente à mercê de uma análise pelo STF do cabimento ou não da aplicação da súmula por outras vias, afora a reclamação).

Nesse naipe de idéias é que surge na lei processual que:

Art. 741. Na execução fundada em título judicial, os embargos só poderão versar sobre:

Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal. (NR) (Parágrafo acrescentado pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 24.08.2001, DOU 27.08.2001, em vigor conforme o art. 2º da EC nº 32/2001)

Entenda-se agora que “aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal” serão as decisões que violem as súmulas vinculantes. Mesmo não havendo a respectiva reclamação poderá a parte alegar tal matéria em embargos. Vejam a precariedade da segurança jurídica dos jurisdicionados, os quais poderão ter por extinta sua execução mediante a alegação de violação de uma súmula.

Entretanto o problema não fica só aí.

Icti oculi é que poderá estar ocorrendo uma violação. Visto que ao STF foi dada outra atribuição: análise do caso concreto pelo seguinte motivo na redação do parágrafo 3ª do artigo 103-A:

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso."

Esse erro de lógica nos faz inferir que o STF poderá declarar que uma decisão que contrarie a sua súmula, mas determina que outra seja proferida o que faz uma aporia insustentável nas atribuições do STF, pois reconhecendo a contrariedade e determinando que outra sentença seja proferida sem aplicação da súmula é dado ao Juiz o direito de repetir a sentença atacada! Ao verificar de plano tal redação haveria necessidade de uma fantasiosa “homologação” da sentença dita destoante da súmula, reiniciando o processo visto que para evitar supressão de instância a esfera imediatamente inferior deverá proferir outra sentença, podendo repetir a anterior que foi “chancelada” pelo STF.

Há outro porém.

O Supremo sumulou:

“279 - Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário. (D. Proc. Civ.; STF.)”

Caberia tal súmula à reclamação nos moldes da redação do parágrafo 3º, artigo 103-A da Constituição da República?

Diz o regimento interno do Supremo em seus artigo 119 e 120:

Art. 119. No processo em que se fizer necessária a presença da parte ou de terceiro, o Plenário, a Turma ou o Relator poderá, independente de outras sanções legais, expedir ordem de condução da pessoa que, intimada, deixar de comparecer sem motivo justificado.

Art. 120. Observar-se-ão as formalidades da lei na realização de exames periciais, arbitramentos, buscas e apreensões, na exibição e conferência de documentos e em quaisquer outras diligências determinadas ou deferidas pelo Plenário, pela Turma ou pelo Relator.

Vê-se que a Súmula 279 é de certa maneira relativizada por tais artigos, já que matéria de interesse do julgamento do Ministro-relator poderá objeto de prova e observando com cuidado não vemos escrito que será em caso de dúvida, mas poderá ser motivada por qualquer razão, já que onde não há restrição na lei não cabe ao intérprete fazê-lo (No âmbito do Poder Judiciário, não há como se proceder a uma restrição em prejuízo ao beneficiário que não existe na Lei. - STJ – RESP 496030 – PB – 5ª T. – Rel. p/o Ac. Min. Gilson Dipp – DJU 19.04.2004 – p. 00229).

Então, no caso de reclamação ou outro meio que seja, não se está a perquerir puro reexame de prova. Haverá o exame da violação da súmula ou não, o que faz com que o Supremo tenha de compulsar os autos para verificar a fidedignidade do caso apreciado com a súmula. Mesmo que seja matéria exclusivamente de direito (o que entendemos que a similitude de um caso a outro é, sobremaneira, especial) deverá o Ministro-relator apreciar a questão sob pena do aparecimento de embargos declaratórios com efeito infringente.

Aflora o tópico de aplicação intertemporal da norma aos processos em andamento.

Falamos que coisa julgada soberana seria aquela sobre a qual já teria ultrapassado o tempo para interposição da ação rescisória.

Bom.

Caberia aplicação da súmula vinculante em relação à sentença sobre a qual a coisa julgada ainda pende no decênio?

Se os embargos poderão versar sobre matéria “ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal” (artigo 741, único in fine do CPC), nenhum impedimento retroativo na aplicação da Emenda 45 em relação à súmula vinculante.

A razão dessa afirmativa é que o sistema desestabilizou a coisa julgada tornando-a uma expectativa de direito, um direito subjetivo da parte que lhe daria certa perenidade após o prazo da ação rescisória, o que denota que a coisa julgada soberana é um ato jurídico perfeito, já que a CF/88 remete à legislação inferior o regramento da coisa julgada, evidentemente ao Código de Processo Civil.

Conquanto, faria coisa julgada soberana aquela proferida anteriormente à Emenda 45 a qual destoaria da súmula vinculante?

Evidentemente que sim, pela razão de se tratar de um ato jurídico perfeito a lei não retroagiria por impedimento constitucional (art. 5º, inciso XXXVI). Mesmo que este inciso impeça a retroação da lei em relação ao direito subjetivo e à coisa julgada, esta está regrada pelo CPC que faz exceção no parágrafo único do 741 e àquela está subentendida nesta pelo motivo do regramento processual que é especial e enquanto não questionada a própria constitucionalidade da MP 2180, a qual deu a redação ao parágrafo único do 741, essa vale por força de outra Emenda Constitucional (Emenda 32).

Outro assunto é que renasce em nossos tempos a questão de relevância do recurso extraordinário nos termos do artigo 102 em seu parágrafo 3º:

“ § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros." (NR)”

“Nos termos da lei” faz que haja presente uma presunção de materialidade do encimado parágrafo, tendo, ao nosso ver, aplicação imediata. Claro que ficará condicionada a apreciação do Rext a 2/3 dos Ministros do Supremo sobre a existência repercussão geral. Surge, guardadas as devidas proporções, a antiga questão do que seja relevância ou repercussão geral, ficando estes termos ao alvedrio da Suprema Corte, a qual não poderá o Ministro-relator fulminar o Rext de plano, devendo levar à apreciação de todos os Ministros!

Assim nasce nosso entendimento que as alterações não melhorarão em nada a função precípua do STF, ou alcançou seu objetivo de reter o acúmulo de recursos extraordinários exatamente pela falha de redação do legislador. Enxovalhou o sistema do devido processo legal violando a celeridade na criação teratológica da malfadada Emenda 45.

 

Como citar o texto:

SANTOS, Cláudio Sinoé Ardenghy dos..A Emenda 45: Uma breve análise da coisa julgada e outros aspectos. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 145. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/801/a-emenda-45-breve-analise-coisa-julgada-outros-aspectos. Acesso em 26 set. 2005.

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