Depois da descoberta do composto químico que ficou conhecido como LSD (Dietilamida do Ácido Lisérgico), parecia que havia sido atingido o limite do suportável para a natureza humana. Entretanto, no planeta onde os métodos de autodestruição se aprimoram a cada dia, tivemos que nos deparar com entorpecentes ainda mais nocivos, como o crack e o oxi, possuindo esse último a capacidade de levar o usuário a óbito em duas semanas de uso contínuo.
Atualmente, há uma droga muito mais nociva do que todas as concorrentes, mesmo quando misturadas em um só coquetel. Apesar de demonstrar maior poderio, o processo de sedução que leva alguém ao desejo de experimentá-la, até tornar-se um dependente inveterado, é idêntico ao que ocorre em relação às outras, havendo apenas certas diferenças quanto ao tratamento dado ao paciente para livrar-se do vício.
No início, apesar das advertências de amigos, o indivíduo pensa em consumi-la ao menos uma vez, em função da curiosidade a respeito dos efeitos que a substância possa produzir em seu organismo. Sabendo da remota chance de tornar-se refém de seu novo júbilo em curto espaço de tempo, a atração pelo desconhecido supera o medo e o fato se consuma. Na mesma linha do que ocorre com as mais variadas espécies de narcóticos, a sensação de prazer e bem estar é avassaladora. O usuário adquire uma nova visão de mundo, imune a qualquer ataque repentino por algo que não tenha sido totalmente resolvido no passado. Sente-se belo, notável, imprescindível, poderoso e, acima de tudo, inatingível. A linha do tempo é redesenhada e o ano zero desloca-se para o presente.
Com o passar do tempo, a vítima desse novo experimento começa a sentir uma estranha vontade de reviver os momentos de satisfação plena, ao ponto de se deixar abater nos dias em que, por algum motivo, não puder renová-los. Inevitavelmente, a subestimada escravidão mental chega sorrateiramente, embora o seu enraizamento somente venha a ser admitido muito tempo depois, quando as manifestações de euforia cederem lugar à depressão, considerada menos perversa do que a privação. Não é por acaso que a maioria não ousa se sujeitar à catarse, preferindo se render ao círculo vicioso do velho hábito.
O único meio de livrar-se do processo de autoflagelação começa pelo reconhecimento de que a fonte de vida escolhida é a mesma que leva ao caminho da morte, como narram as lendas sobre os navegantes que prumavam as velas de acordo com o cântico das sereias. A partir daí, inicia-se um longo processo de guerra interior, na qual a derrota e a vitória se confundirão a todo tempo, em razão de não haver variantes em relação às consequências. Qualquer que seja a sorte, o que se aperfeiçoa é o sofrimento. Essa droga, considerada a mais poderosa do mundo, chama-se casamento.
Não obstante as advertências daqueles que sobreviveram ao divórcio, o número de nubentes ainda é considerável. Aventuram-se ao aos clichês do jogo de sedução, como os elogios exagerados, abraços demorados, toques quase inocentes, tudo regado de conversas vazias e, ao mesmo tempo, lotadas de frases feitas. Sentem-se agindo como tolos, do tipo que tiram uma selfie de rosto colado defronte ao Coliseu, mas somente merecerão esse rótulo quando pensarem ter feito falso juízo de si mesmo. Um baile para apenas dois convidados (sem contar os penetras), onde infinitas máscaras poderão ser usadas, reutilizadas, sobrepostas, mas nunca arrancadas. A verdadeira face jamais passará de pura especulação, simples miragem.
Tarde demais quando as noites passarem a ser mais longas do que os dias e os travesseiros abandonarem as prateleiras. Nessa ocasião, as escovas de dente já estarão combinando os mais belos tons de gênero, enquanto os perfumes de pequenos frascos poderão exalar das paredes. A união estável estará consolidada para que a instabilidade germine e floresça em um jardim de Erythroxylon coca na mais suave harmonia.
É inevitável que pelo menos um dos cônjuges, mais cedo ou mais tarde, perceba os sintomas do malogro. A falsa felicidade que embriagava não servirá mais para colorir alguma cena comum do cotidiano. Antes, o que gerava lisonja, pragueja; o que fazia contemplar a lua cheia, prostra-se em sono profundo; o que punha a dançar, marcha ao passo de ganso com olhar duro e nariz em riste; o que era mistério, torna-se mundano; o que era gozo, mal lubrifica; o que regia Mozart, agora grita Anita. Anita!!! Anita!!!
O desejo de retroceder é tão desesperador quanto inútil, pois se acredita que a solidão acompanhada seja menos aterrorizante do que aquela em que o homem precisa dialogar em primeira pessoa mirando-se no espelho. Apenas os mais fortes conseguem sair e resistir à síndrome de abstinência, caracterizada por eventuais crises de ansiedade, perturbações do sono, múltiplas alergias, choro compulsivo, falta de apetite, angústia e recorrentes pensamentos suicidas. Nada tem a ver com Lucy in The Sky With Diamonds, mas sim com uma composição muito mais cruel, na qual se misturam loucura (L), saudade (S) e desespero (D).
O aspecto jurídico é o mais pragmático de todo o processo, até porque, como disse um magistrado em conversa reservada, não se pode levar tão a sério alguém que aceite integrar uma sociedade cuja chance de falir é de cinquenta por cento. A separação é formalizada mediante duas assinaturas com firma reconhecida. O valor é muito baixo, considerando que a medida representa o aniquilamento de milhares de sonhos e morte dos que nem chegaram a nascer, sem contar a quantidade de videntes, bruxos, astrólogos, cartomantes e babalorixás que perderão sua clientela por terem visto uma série de mentiras chamada destino. Quem tirou a carta da chave, que carrega o número trinta e três?
Respeitadas as particularidades físicas e psíquicas de cada ser humano, comumente, o indivíduo procura usar o tempo em seu favor. Assim como ocorre com os demais venenos, os espasmos de saudade vão diminuindo gradativamente. Se alguns bons momentos foram vividos, paulatinamente vão sendo etiquetados e guardados em gavetas, até que não lembremos mais aonde os colocamos. No futuro, certas fotografias poderão ser revistas sem que a respiração encurte, nem encha a garganta de pedregulhos. E assim, sobrevive o veterano das núpcias com a sabedoria dos membros das associações de alcoólicos anônimos: todo o problema está no primeiro gole.
Data da conclusão/última revisão: 13/12/2018
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel
Sócio em AMARAL GURGEL Advogados; autor da Editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.
Código da publicação: 4279
Como citar o texto:
GURGEL, Sergio Ricardo do Amaral..A droga mais pesada do mundo.. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 30, nº 1583. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/4279/a-droga-mais-pesada-mundo. Acesso em 14 dez. 2018.
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