O Brasil está submetido a julgamentos farsescos como que em um teatro de impositivas simulações. Um tempo em que nossa máxima corte aderiu à “escola do não-fundamento”.
1. Uma proposição sobre os bloqueios da verdade
A mais recente reflexão socrática nos chega bem difundida pelo serviço de streaming.
Ela não foi suficientemente valorizada nas apreciações críticas publicadas sobre a já célebre série “Chernobyl”, da HBO, uma dramatização que guarda um pouco do estilo de documentário sobre o primeiro grande acidente atômico no mundo.
Porém, a reflexão já está contida nas palavras que apresentam o episódio inicial e introduzem o tema da narrativa, de modo que não são um adorno que se possa considerar ou não.
Como seria de esperar, nos comentários na Internet e em vídeos, feitos em geral por observadores que colecionam dados sobre a vida pessoal de atores, curiosidades das filmagens ou referências insignificativas a respeito de custos, da renda, da trajetória dos realizadores, do fascínio pelo horror e todas as outras variantes amadoras da metalinguagem, as frases iniciais do filme, escritas como uma ‘proposição grega’ pelo roteirista americano Craig Mazin, passaram inteiramente despercebidas.
No entanto, é essa introdução que nos transporta para as ruas, os jardins e a ágora de Atenas, na Antiguidade, por onde passaram Sócrates, Platão, Diógenes, Protágoras e Epicuro, até cruzarem o pórtico dos estoicos e difundirem pelo globo o sentido da reflexão – tal como reconhecemos hoje através da Filosofia - livre da inspiração religiosa, da disputa pelo poder político ou da afirmação de predominância etnocêntrica de algum povo, mas sim voltada para o entendimento da condição humana no mundo e para a tentativa de encontrar “a medida de todas as coisas”.
Eis a proposição maiêutica que abre o relato filmado “Chernobyl”:
“Qual é o preço da mentira?
Não é que possamos confundi-la com a verdade.
O perigo real é que, se ouvirmos mentiras o bastante, não reconheceremos mais a verdade.
E o que poderemos fazer?
O que restará, além de esquecer até a esperança da verdade, é nos contentarmos em vez disso com histórias. Nessas histórias não importa quem são os heróis.
Só queremos saber quem é o culpado.”
O que mais impressiona nessas palavras é a tensão moral que elas estabelecem antes mesmo de iniciar a narrativa, de uma forma que obriga a concluir que o registro histórico, apresentado a seguir, serve tanto para revelar como para esconder, e que a verdade - quando se trata de uma questão de reconhecimento -, não é mais algo concreto que possamos acessar, cercada que ela está por versões inverossímeis, pela mentira e pelo desejo oculto de aplacar essa tensão moral com um ato expiatório.
2. A compreensão que só o mundo ficcional induz
Apesar do descaso para com o prólogo de “Chernobyl”, há quem cultive, no meio literário, o estudo das frases que introduzem temas em romances, ensaios ou poemas.
Existe, de fato, uma relevância nisso.
Rubem Fonseca, no livro de contos “Os Prisioneiros”, transcreveu o aforismo de Lao Tzé:
“Somos todos prisioneiros de nós mesmos. Nunca te esqueças disso e também de que não há fuga possível.”
A lembrança de tal ‘aprisionamento’, na própria identificação que cada um faz de si mesmo, é renovada em todas as histórias contadas naquele livro, de modo que, ao fim de cada uma delas, nos perguntamos se o desfecho poderia ser diferente. E somos levados a concluir que não.
Já Ernest Hemingway escolheu citar o poeta inglês do Século XVII John Donne no título e no prólogo de seu romance famoso de 1940, após viver a experiência terrível de acompanhar a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) como correspondente de imprensa:
“Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo mar deixa menor a Europa, como se todo um promontório fosse, ou a herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”
Assim aceitamos, por essa referência, que nosso lamento e até o nosso pranto pelo destino dos outros, todos os outros, é também um pranto e lamento por tudo o que nos é próprio e nos diga respeito.
Lembrará alguém, a respeito disso, que também aqui não há nada de novo sob o sol, pois Terêncio já havia dito na Antiguidade romana “humano sou, nada do que é humano me pode ser indiferente”, frase da qual Machado de Assis gostava, tanto que a citou repetidamente. Mas há, sim, diferença: o prólogo transcrito por Hemingway trata do resgate pela memória do que já foi e não é mais, e ainda da perda irremediável, situações que Terêncio não incluiu em seu pensamento, mesmo porque não havia sido ainda construída a imagem medieval de que o toque dos sinos em um campanário seria o sinal mais expressivo de que algo importante deve ser anunciado, ou porque surgiu ou porque acabou, deixando uma lembrança cristalizada no tempo.
A despeito da felicidade na escolha dessas citações, talvez a advertência que melhor antecipe uma obra literária seja aquela que começa o romance mais conhecido de Gabriel García Márquez:
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendia havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas às margens de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las precisava-se apontar com o dedo.”
Já foi bem analisado por muitos que essa introdução temática de “Cem Anos de Solidão” é reveladora dos três tempos em que se passa a ação, como das suas alegorias e ancestralidades, de tal modo que, se a iminência da morte lembra ao personagem principal o remoto dia do conhecimento do gelo (e do frio nele aprisionado), o sentimento do fim pelo fuzilamento evoca também o início de todas as coisas, não só no passado, mas na pré-história do tempo, quando tudo começou, e a civilização precária que hoje temos – feita de taquara e barro – nem mesmo tinha então o reconhecimento pleno das palavras, de modo que a realidade, quando se apresentava – diáfana como as águas ou enorme como ovos de animais extintos -, não podia ser descrita e precisava ser indicada pelo aceno de um gesto, apontando-lhe o dedo.
Assim o sentimento mágico que habita o subcontinente latino-americano foi apresentado ao mundo, que a ele fez duradoura reverência, pois se o homem inventou a razão não foi para ser dominado por ela, mas para libertar-se de seus limites, sem se perder nas névoas da mitologia extática.
Quando ressurgiu a literatura na América Latina sob os auspícios desse realismo mágico, os grandes países do Norte já tinham conhecido o êxtase com seus heróis, santos, titãs e guerreiros, bem como seus deuses aquilinos, monstruosos ou senhoriais, de modo que grande foi a curiosidade em saber que, numa vasta parte do Novo Mundo, surgia uma nova mitologia reveladora de uma realidade que só poderia ser apresentada pela narrativa em forma distorcida, caso contrário jamais seria entendida.
3. Quando a devastação atômica se apresenta como simbologia de uma ordem institucional, cujo domínio pretendíamos ter e que se desfaz como diante uma usina em colapso, abandonada ou desativada por ser perigosa
O que a proposição socrática que apresenta a série filmada Chernobyl tem a ver com as sínteses extremas – contudo muito reveladoras -, contidas nos prólogos das obras literárias referenciais citadas?
Tem a ver com a comum advertência que fazem, de que estamos invadindo um mundo ainda mal descrito que pode não corresponder à presunçosa noção de ordem que pretendíamos ter antes de desafiá-lo.
No caso histórico e real da explosão de um reator nuclear na usina de Chernobyl, ocorrida em 25.04.1986, é preciso considerar que as medidas reformadoras da ordem soviética recém estavam sendo anunciadas por Mikhail Gorbachev, que ainda não tivera tempo de implementá-las, pois havia assumido como dirigente do PCUS cerca de um ano antes, em 11.03.1985.
A confiança então existente na URSS em seu desenvolvimento industrial, especialmente tendo em vista seus êxitos na exploração espacial a partir do primeiro satélite, Sputinik 1, lançado em 1957, na formação de um imenso arsenal atômico e nos resultados inegáveis de um dos processos de industrialização autônoma mais notáveis e acelerados na história humana, especialmente no que diz respeito à infraestrutura e indústria pesada, tudo isso recomendava que de fato havia razões para o Estado soviético confiar no seu desenvolvimento científico, particularmente no domínio da Física.
Tanto era assim que, em 1982, a URSS havia iniciado na localidade de Juraguá, Cuba, a construção de outra usina atômica que daria grande autonomia energética à ilha do Caribe, notoriamente dependente e sem outras fontes nessa área, exatamente com a mesma planta executada na Ucrânia.
A Chernobyl caribenha era um dos sonhos do governo de Fidel Castro, que se expressava bem com a nomeação de seu filho primogênito, Fidel Castro Días-Balart, conhecido como Fidelito, que se havia titulado em Física na Rússia, como secretário-executivo do projeto.
Em 1989, com o fim da União Soviética, cessaram os subsídios que de lá vinham para sustentar a economia cubana e o projeto da usina parou.
Fidel Castrou tentou outras participações internacionais, mas não obteve êxito. Demitiu Fidelito acusando-o de “ineficiência” (Fonte: BBC News Brasil, 1º.02.2018 e 16.06.19). Também de acordo com a mesma base informativa, Fidelito suicidou-se após longa crise depressiva, já sob o governo de seu tio Raúl Castro, no início de 2018.
A obra abandonada em Cuba no ano de 1992 apresenta hoje o mesmo aspecto dos escombros, enquanto Chernobyl foi reencapsulada, na área do reator que explodiu, pela maior estrutura móvel para uso em terra já construída pelo homem, providenciada pelo governo da Ucrânia, com ampla cooperação internacional de cerca de quarenta países e financiada pelo Banco Europeu (Fonte: Agência Russa Sputnik News/Europa, 11.06.2019).
Essa estrutura, chamada sarcófago, projetada para impedir a radiação por cem anos, foi instalada em 29.11.2018, pois a proteção anterior montada ainda pela antiga URSS, logo depois do acidente de 1986, construída com chumbo e concreto, já ameaçava entrar em colapso. Contudo, o magma formado por urânio e grafite ainda está infiltrado no subsolo e por ele espalhará radiação em um raio e por um tempo ainda imprevistos, não permitindo novas contenções pela tecnologia hoje disponível.
Há um documentário do canal televisivo Discovery sobre Chernobyl, disponível na Internet, que colheu longo depoimento de Gorbachev, no qual ele aponta detalhes dos imensos sacrifícios que foram cobrados aos soviéticos para fazer o controle imediato da radiação, que se espalhou por partes da Europa, para o que concorreram diretamente mais de quinhentos mil homens, sob grandes riscos, com a articulação direta de um general designado para esse fim.
Os recursos alocados também foram muito grandes, já que a antiga URSS praticava uma equiparação artificial com o dólar e os gastos afetaram a economia da federação, deixando as reformas de Gorbachev expostas aos riscos de uma crise econômica, que em seguida veio, desequilibrando o orçamento estatal, pois ele era feito em bases pouco dinâmicas por um planejamento controlador de toda a economia.
4. Grandes desastres, grandes erros, e a dificuldade quase intransponível de impedi-los
Grandes desastres; grandes cismas; grandes sonhos emancipadores que soçobram ou se concretizam como tenazes de pesadelos; grandes abandonos de projetos sociais ou de destinos individuais que ficam aprisionados no tempo real ou imaginário, como restos de desgraças ; grandes desilusões (que nunca deveriam ter sido alimentadas antes com grandes ilusões, quando estas já podiam ser percebidas); grandes revoluções previamente perdidas e grandes guerras de secessão que vieram para destruir muito, mas nunca iriam destruir as causas da própria secessão ... tudo isso é o que a inevitável errância humana deixa como o seu grande legado, geração por geração, apenas para que se repitam pelas mãos dos incrédulos de todos os tempos, uma vez que eles, obstinadamente, pensam dirigir o vento com o sopro da sua boca.
O acidente de Fukushima, em 2011, menor em seu efeito desastroso do que Chernobyl, mas igualmente preocupante, pois o controle tecnológico japonês parecia mais confiável e ficou irremediavelmente abalado, fez com que Alemanha, Itália, Suíça, Finlândia e Suécia abandonassem seus programas nucleares, hoje reprogramados para a extinção.
O parlamento alemão, no entanto, recusou proposição de seu Partido Verde no sentido de que fosse rompido o acordo nuclear com o Brasil, que sustenta a transferência de tecnologia para as usinas nacionais de Angra dos Reis (Fonte: Deutsche Welle, 14.11.2019).
Quanto ao próprio Japão, após contabilizar muitas mortes e lidar com remoções populacionais em áreas extensas, sabe-se que a radiação de Fukushima se estendeu pelo Oceano Pacífico até a costa do Canadá, EUA e México, conforme já ficou comprovado por mapeamento, e o país ainda não tem solução para a água contaminada que foi bombeada de navios para esfriar os reatores.
O Japão é um país conhecido por ser predador dos mares, tanto causando desequilíbrios na preservação da baleias pela sua caça disfarçada ou ostensiva, como provocando a proliferação de medusas gigantes pelo manejo destrutivo da pesca, tendo também produzido o desastre ambiental na Baía de Minamata com o derrame de mercúrio (descoberto em 1956), que provocou mortes e doenças em massa depois do metal pesado entrar na cadeia alimentar dos peixes. Assim, é provável que a água radiativa de Fukushima esteja sendo descartada aos poucos no oceano, pois só isso justificaria o mapeamento por imagens ultrassensíveis captadas até na costa oeste americana (Fonte: site Estadão-Conteúdo e site marsemfim.com.br, “Desastre de Fukushima não contaminou só o Pacífico”, 21.12.2019).
Já o projeto brasileiro está completamente paralisado desde 2015, quando a Operação Lava Jato descobriu desvio gigantesco de verbas na construção da Usina Angra 3, em um esquema criminoso comandado pelo seu principal gestor, vice-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, já condenado, de tal modo que a Eletrobrás gasta hoje 30 milhões de reais por mês (pois as duas outras usinas de Angra dos Reis não geram receita suficiente para a empresa estatal Termonuclear, que as administra, pagar tais parcelas), destinados a ressarcir o BNDES de um financiamento bilionário, e ainda será necessário o aporte de mais 25 bilhões de reais para concluir a obra (Fontes: (1) Portal TCU.gov.br, 29.08.1917 e (2) jornal Folha de S. Paulo, 14.11.1917).
Com o “efeito Fukushima”, a Alemanha rendeu-se a uma dependência energética quase completa da Rússia, havendo construído um custoso e tecnicamente desafiador gasoduto que passa sob o Mar Báltico, para que, em seu trajeto, não ficasse exposto no território de outros países da região, que já foram invadidos no passado pelos russos e se livraram do seu jugo.
Porém, o povo alemão, cuja história de confrontos é milenar, e cuja capacidade de reconstruir-se é inegável, aposta em novas tecnologias e pretende que, através delas, num tempo indeterminado, voltará a obter sua emancipação energética.
Essa emancipação não virá, por ora, para a América Latina, que sempre recomeçou – e agora ainda o faz – suas revoluções perdidas, tal como o coronel Buendia.
Não virá, certamente, para Cuba, que não tem nenhum modelo de desenvolvimento que aponte para um futuro próspero.
Assim também não virá para todos aqueles países que são compelidos por estruturas de poder a serem cativos de si mesmos, pois nem as grandes ilusões, nem os grandes cismas, nem os grandes desastres permitirão que apostem em uma tecnologia que não dominam, ou num sonho de convivência que não acalentam.
Da mesma forma como não acreditam que, nas suas incertezas, o status libertatis possa ser criativo e realizador, enquanto as certezas do status subjectionis oferece o único – mas irremediável - consolo dos sinos que dobram.
Muitas pessoas que culpam a planificação e o planejamento por erros pelos quais todos pagam, pois resultam de sonhos errados, não examinam que o irracionalismo e o sentido de aposta podem também resultar da atitude contrária, expressa na competição econômica, no estímulo ao consumo direcionado só para o desfrute e na iniciativa interminável de criar coisas inúteis.
As mitologias que asseguram a regência de um espírito liberal, que cercam de garantias a iniciativa de cada um em forjar o seu mundo, todos sabem que duram até a próxima crise. Quando ocorre o colapso, essas crenças perdem a sua justificação e as políticas nelas baseadas têm de ser socorridas e alimentadas de novo por um regime regulatório, ainda que transitoriamente.
A superação das crises mundiais em 1939 e em 2008, ambas desencadeadas nos EUA, mostram isso. Nessas ocasiões houve intervenção no sistema bancário, controle na comercialização de títulos financeiros, socorro a empresas privadas inadimplentes e investimento público em atividades econômicas. Em ’39 chegou a haver também um longo controle de preços, que esteve a cargo do famoso economista John Kenneth Galbraith.
Também é inegável que há uma sucessão de fatos que desmentem generalizações simplistas, como na justificativa para o acidente de Chernobyl, quando a URSS se encontrava em uma crise de obsolescência, mas que se mostra em contraste com o de Fukushima, pois o Japão se situa na ponta do desenvolvimento tecnológico.
Em ambos os casos, pelo que hoje se sabe, foram cometidos erros de projeto, no caso russo por falta de recursos eficientes para o resfriamento do reator, na hipótese de excesso de carga (sendo esse o motivo provável do acidente), e no caso japonês porque foi subestimada a possibilidade de estragos causados por tsunami, na crença de que havia segurança suficiente pelo fato dos reatores estarem encaixados em escavações na pedra, cercadas por uma barreira marinha, que afinal se mostrou baixa.
Quando houve a crise do petróleo em 1973, em razão da política adotada pela OPEP, o Brasil começou a reorganizar sua matriz energética, que resultou pouco depois na Política Nacional do Álcool, o Proálcool, visando a produção de etanol.
Jornalistas que simpatizavam com o regime cubano, e então eram muitos, perguntaram a Fidel Castro se não iria iniciar programa semelhante, já que Cuba era grande produtora de cana. Ele respondeu que absolutamente não, pois seu país também era tradicional exportador de rum, cujo preço era muito superior ao do álcool (em que pese a multicentenária produção do Rum Bacardi ter sido transferida para o exterior, pela família cubana proprietária da marca, depois de ter sido expropriada pela revolução).
Em outra ocasião sustentou que a produção do etanol era prejudicial ao meio ambiente e à saúde dos trabalhadores, pois utilizava mudas transgênicas, acrescentando a esses temas mais alguns como o da produção latifundiária, o domínio de grandes interesses internacionais e outros mais, como era comum em seus longos pronunciamentos.
Não deve ser esquecido que, ainda quando estudante, antes da ditadura de Fulgêncio Batista, Fidel Castro ganhou um concurso nacional de oratória. A verve discursiva daquele que veio a se El Comandante sempre teve elementos de figuração e de humor em seus gestos e palavras grandiloquentes, assim como na indumentária e em um certo espírito de encenação que ele personificava.
Quando a campanha antitabagismo se impôs como questão de saúde pública e ele teve que respaldá-la, justificou que antes sempre fumava charutos porque os russos, que já se tornavam onipresentes nas relações com Cuba, tinham o desagradável hábito de beijar na boca.
Quando foi surpreendido (e fotografado) sorvendo uma Coca-Cola sofregamente pelo gargalo, em uma visita ao Chile de Salvador Allende, respondeu aos que se surpreenderam dizendo que era contra o imperialismo e não contra a Coca-Cola...
As explicações de Fidel superavam todas as medidas, tanto que proferiu o mais duradouro discurso na história das Nações Unidas, de 4 horas e 26 minutos (Fonte: El País, 27.11.2016, “Fidel em Cifras...”).
Até hoje não apareceu um voluntário para sintetizar essa longa peroração ou para traduzir seus significados para a História.
Só o que ficou foi o record da duração.
Fidel também chegou a desmaiar na tribuna em um comício em Cuba, depois de falar várias horas (alguns anotaram que foi cinco, outros que foi sete), pouco antes de iniciar seu afastamento do governo. Nunca se saberá se isso seria uma técnica de autoconvencimento, já que parece difícil que seja de altero convencimento.
O relato do malogro da usina nuclear da Vila de Juraguá, Província de Cienfuegos, que está bastante documentado, mostra bem o cerne da questão: o dirigente cubano menosprezou a oportunidade de dar início a uma política energética independente em Cuba, baseada em recursos naturais que seu país tinha, pois acreditou que a URSS era um sustentáculo eterno.
Hoje Cuba tem como única matriz o abastecimento do petróleo venezuelano, mas a ilha não tem capacidade de refino e o óleo bruto é transportado para a Rússia, que é paga in natura pelos seus serviços e depois entrega o saldo do combustível refinado para a ilha caribenha.
No governo de Hugo Chaves chegou a ser iniciada, em parceria de Cuba com a Venezuela, a construção de uma refinaria, também na Província de Cienfuegos, mas ela igualmente foi abandonada, deixando mais escombros que até hoje lá estão como testemunho do descalabro.
Cuba atualmente não tem nenhuma outra alternativa - já que sua “Chernobyl tropical” malogrou e o país não se capacitou para produzir o etanol, como também não domina a tecnologia da captação eólica ou das placas solares -, a não ser interferir e controlar a ditadura venezuelana, “pagando” pelo petróleo que recebe através dos serviços de assistência militar e do programa ‘mais médicos’.
Esse monumental escambo praticado como política de Estado mostra que “a invenção da ordem”, para usar uma expressão criada pelo historiador José Murilo de Carvalho, responde pelas causas que comumente são atribuídas a regimes ou sistemas, diluídas em defeitos intrínsecos ou ocasionais de determinadas políticas, quando está claro que é a forma de imposição da ordem criada que acentua ou dilui os efeitos dessa mesma imposição.
Mostra ainda que é a intencionalidade o principal fator determinante e que nenhuma ordem pode ser mantida se não se impõe e justifica nas ações afirmativas que desencadeia, seja empolgando o apoio popular, seja impondo a repressão e o medo, sendo ainda negociando os interesses que, afinal, serão afetados ou beneficiados.
Outros malogros perseguem até hoje os cubanos. Seu país veicula pela Internet uma intensa campanha de turismo, provavelmente feito por uma agência internacional de marketing, apresentando resorts paradisíacos como aptos a competir com outros destinos caribenhos, tipicamente capitalistas e que atraem jogadores, milionários e escroques internacionais, bem como explora “marcas” que se tornaram famosas quando o país era um protetorado americano, como Cubanacan e Bodeguita; Mojito ou Daikiri.
Mesmo o “Buena Vista Social Club”, que havia feito sucesso como uma casa musical e de dança nos anos 1940, só foi ressuscitado por iniciativa do guitarrista americano Ry Cooder e do cineasta alemão Wim Wenders, voltando a ter reconhecimento como uma orquestra, em excursões no exterior, formada por seus velhos músicos Ou seja: o que se oferece pelos métodos capitalistas serve parra arrecadar divisas. E só assim se faz o resgate.
Cuba necessita desesperadamente de moedas com circulação mundial e faz tudo para obtê-las, pois não gera exportações que as introduzam no país pela circulação de mercadorias.
Como essa não chega a ser uma política econômica, a ajuda de outros países ganha uma importância vital. A simples restrição de voos charter turísticos, por Trump, abala a combalida economia cubana. Outra ironia se mostra no fato de que uma fonte importante da obtenção de dólares está na remessa dessa moeda aos parentes que ficaram na ilha, pelos que conseguiram emigrar para os EUA. Isto monta uma equação que foge à ortodoxia interpretativa: os que fugiram do regime ajudam, substancialmente, a mantê-lo, ainda que sua intenção seja a de favorecer os familiares.
A Rússia de Putin perdoou o débito astronômico contraído com a URSS, pois era impagável.
O Brasil recebeu um monumental calote (estimado em mais de 2,5 bilhões de reais) por haver reformado todos os aeroportos cubanos importantes e por ter construído o Porto de Mariel (com recursos brasileiros e financiamento do BNDES, que também serviram para pagar propinas de corrupção no Brasil, por empreiteiras nacionais, notadamente a Odebrecht).
O porto, afinal, não pode ser operado, uma vez que o regime cubano teme que o movimento de barcos sob outras bandeiras acabe com seu rígido controle na ilha. Entidades internacionais de apoio a Cuba, inclusive americanas, foram sondadas para gerir esse grande atracadouro mas não quiseram ou não tinham capacidade para fazê-lo.
O país não dispõe ainda de uma frota pesqueira com autonomia para alto mar, como seria próprio pela geografia insular.
Como não desenvolveu indústria petroquímica, Cuba não produz sequer tintas e revestimentos que seriam necessários para a manutenção de seus belos prédios históricos. Até preservativos têm de ser importados da China e, em 2014, criou-se uma situação tragicômica depois do desaparecimento do produto, pois os lotes que haviam vencido em 2012 foram “revalidados” por novo carimbo, com a justificativa de erro na data...
Os dois filmes produzidos em Cuba que tiveram maior projeção internacional, “Morango com Chocolate” (premiado no Festival de Gramado) e “Guantanamera” são obras de dissidentes do regime e apontam também como tragicomédia o domínio da burocracia impositiva, tanto quanto ridícula e cruel, manifestando-se na vida e na morte, pois a história do último filme é a de um enterro em que o carro fúnebre tem que aproveitar seu trajeto e transportar vários cadáveres.
A ilha cubana não é nem um paraíso, nem um pesadelo tropical. Muitos são os pequenos países que poderiam ser os pontos anunciadores do paraíso, no Caribe; alguns outros, salientando-se o Haiti entre estes, ao longo da toda a sua história, os que lembram os tormentos do inferno. Também a Guatemala, Honduras, El Salvador, seguidos de perto pela Nicarágua, experimentam emigração desesperada em massa, fuga do crime, instituições fracas e desorganização do Estado; portanto, as cenas infernais não lhes são estranhas.
Cuba é uma utopia entrópica, isto é, esgotou seus recursos para constituir seu projeto de nação livre, afinal liberta e ainda libertadora, sem realizá-lo.
O país foi uma colônia espanhola com independência tardia (1895), tornando-se protetorado americano até 1958, quando teve início o regime castrista. Desde então a utopia declinou e a entropia impôs se esgotamento progressivo, até o colapso. Hoje é uma cápsula do tempo que, ao ser rompida, provavelmente será destruída, como aconteceu com os belos afrescos subterrâneos de Roma, filmados por Fellini, que se desfizeram quando foram cavados os túneis do metrô.
Cuba é o mais singular exemplo de um país culturalmente aberto, com grandes músicos, que brindaram o mundo com seus ritmos alegres do mambo, da rumba e da salsa.
País de grandes escritores, que enriqueceu a muitos (o pai do cineasta Luiz Buñuel, por exemplo) e a tantos influenciou ou inspirou na representação literária; lugar onde Hemingway escreveu “O Velho e o Mar” e onde Gabriel García Márquez redigiu seus “Doze Contos Peregrinos”; também onde o cineasta Francis Ford Coppola grafitou um muro com a frase “Love Never Dies”, depois apropriada pela chamada cultura pop; destino escolhido malsinadamente pela Máfia americana para fundar sua Monte Carlo caribenha, sendo redestinado para ser um exemplo redentor por muitos daqueles que procuraram nos anos 1960 novos modelos políticos para a América Latina...
Com todo esse acervo de sonhos, realizações, idealizações e fracassos, Cuba nunca foi livre. A suprema ironia é que exista um coquetel alcoólico cujo nome diga o contrário. Mas agora já não mais ocorrerão os estupefacientes discursos de Fidel para provar que, exatamente, o contrário seja o verdadeiro.
A trajetória de muitos cubanos ilustres foi sombria. O escritor Cabrera Infante, que morreu exilado na Inglaterra, contou que tinha pesadelos recorrentes de que havia voltado para Cuba e não podia mais sair. Reynaldo Arenas enfrentou a prisão e, nesse período, teve romances seus reconhecidos e premiados na Europa, exilando-se nos EUA graças à política de defesa dos direitos humanos do presidente americano Jimmy Carter. O cantor e compositor Pablo Milanés, parceiro de Chico Buarque nas canções “Yolanda” e “Como se Fosse a Primavera”, nunca se tornou dissidente, mas foi internado em um campo de trabalhos forçados, a título de “reeducação”, o que devastou sua carreira, embora seu reconhecimento junto ao público não tenha desaparecido. Chico Buarque, que no Brasil tem sido uma voz discordante do establishment há muito tempo, nunca se manifestou a respeito.
Este é o núcleo preciso de entendimento que esses variados exemplos históricos apontam para a compreensão do que se encerra como questão decisiva.
Isto vale para situações extremas, como “a solução final” engendrada pelos nazistas, quando a guerra já se mostrava perdida, para ultimar seu programa genocida; como a decisão então inverossímil de resistir de Churchill, mesmo em condições muito precárias, no início da II Guerra; como a implantação, através do New Deal de Roosevelt, do método econômico de Keynes, contra as crenças liberais que vinham desde os tempos de Adam Smith; como na decisão do antigo caixeiro-viajante e grão-mestre da maçonaria americana, investido como presidente Harry Truman, de lançar a bomba ‘Little Boy’, pelo voo batizado como ‘Enola Gay’, em Hiroshima; como também em todos os assaltos à Bastilha e ao Palácio de Inverno que a História registra por serem rupturas abruptas da ordem estabelecida.
Entre nós, a questão decisiva é que deve ser considerada quando as pessoas que se consideram integrantes da elite brasileira, quer ali estejam porque receberam seus paramentos como acontecia com os fidalgos, quer tenham sido premiados pelos acasos da roda da fortuna, quer tenham ascendido pela trapaça, pelo patrocínio ou pela fidelidade àqueles a quem sucederam, resolvem se unir em políticas trançadas, estabelecendo vínculos da autoproteção, que podem ser sintetizados num salvo conduto expresso pelos slogan repetido pelos atuais presidentes da Câmara de Deputados e do Senado: “a política não pode ser criminalizada”.
Obviamente, a política de que eles tratam não é aquela mencionada desde os tempos de Platão.
Por outro lado, os representantes parlamentares deveriam entender, primeiramente, que – para não ser criminalizada - a política não pode ser criminosa.
5. A saída, a voz e a lealdade: quando as instituições entram em declínio
O escritor Albert Hirschman foi um berlinense que emigrou com a aproximação da II Guerra, completou sua formação acadêmica em Economia Política em Paris e Trieste, depois se radicou nos EUA, onde desenvolveu carreira acadêmica em várias universidades. Interessado na América Latina, colaborou por cinco anos com o governo da Colômbia e, através de uma instituição de estudos econômicos, com o do Chile, nos períodos de redemocratização.
Seu livro “Saída, Voz e Lealdade” (1970) expõe um modelo analítico que procura dar uma resposta à dinâmica do declínio das instituições. O subtítulo da obra em inglês, suprimido na edição em português, é exatamente “Respostas ao Declínio de Empresas, Organizações e Estados”.
Tratando-se de obra que faz uma abordagem notadamente original, haveria o risco de deformá-la através de um resumo, mas – para o entendimento imediato – convém dizer que a “voz” é uma expressão de poder, uma manifestação com nexo político em sua essência, que se expressa ativamente, quando pode produzir efeitos ao ser ouvida, ou se cala, e marca com a sua “retirada”, isto é, o abandono de um produto, uma ideia participativa, uma crença ou um compromisso político, quando o esforço para manifestá-la mostra-se muito custoso, encontra hostilidade ou simplesmente não será ouvido.
A “voz”, portanto, oscila como um pêndulo indicando ou a “saída” ou a “lealdade”.
O que há de mais notável no trabalho de Hirschman é que ele demonstrou, inclusive com estudos empíricos, que essas manifestações sempre ocorrem, pois a estabilidade de partidos políticos, instituições de Estado, organizações comerciais e, mesmo, ordens religiosas, guarda sempre uma estrutura ligada ao desempenho, conquistando e perdendo fidelidades ou ainda enfrentando também o seu ocaso.
Mesmo trajetórias históricas já bem conhecidas podem ser reexaminadas sob a metodologia que o berlinense apontou. A luta do revolucionário Leon Trotski, por exemplo, mostra inicialmente seu grande empenho em ganhar “voz” dentro do Partido Bolchevista, ainda no tempo de Lenin, mostrando seu empenho e “lealdade” na medida que era ouvido e que suas ações ganhavam vulto. Ele não era um bolchevique histórico, mas sempre sustentou que sua adesão a essa corrente do Partido Social Democrata russo resultou de um convencimento tão profundo cuja legitimidade não era menor do que aquela dos fundadores ou dos que se agregaram apenas fisiologicamente, por hostilidade ao sistema aristocrático dos czares.
Confrontado com Stalin, posteriormente, teve a “lealdade” questionada e perdeu sua função de dirigente no Politburo, depois sofreu exílio e confinamento em Alma Ata, no Cazaquistão, tornando-se um dissidente. Sua “voz” ganhou crescentemente a feição de denúncia política e a “saída”, que vinha sendo forçada, foi assumida como única alternativa autêntica, exatamente para manter a coerência da sua trajetória.
Este exemplo não é usado por Hirschman, deve ficar claro, mas é bastante ilustrativo e serve exatamente para mostrar a flexibilidade de seu método.
Assim também, recorrer a ele é útil para entender outros exemplos de declínio acentuado, como o que levou ao colapso de modelos, imaginados em Chernobyl, na URSS, em Fukushima, no Japão, e em Juraguá, em Cuba, com todas as implicações de uso da tecnologia atômica sob uma visão de desenvolvimento, adotada por programas em que a decisão política vinculou formas de Estado ao resultado que era pretendido, e que, por razões peculiares a cada caso, soçobrou.
A junção de casos com circunstâncias tão diferentes, marcando uma nova tomada de rumos em nível global na história da civilização, mostra a importância de uma metodologia que habilite à visão comparativa e extraia mesmo significados comuns, que ganhem sentido tanto simbólico como elucidativo de fatos efetivamente ocorridos, de modo que permitam entender quando e como ‘a voz, a saída e a lealdade’ compõem as principais respostas que podemos reconhecer.
É também o que ocorre quando declinam e colapsam instituições com outra estrutura, que se enquadram naquilo que chamamos de “ordem legal”, ou “ordenamento jurídico”, ou “legitimação para julgar” ou, por fim, “exercício do poder jurisdicional”, que vêm a ser afetados porque o sentido do seu compartilhamento, ou justificação do seu agir, também soçobrou.
6. Quando o Direito perde a sua justificação porque, para as supostas elites, os controles legais deixaram de ser pactuados e agora são elas que os manejam
Aproveitando o sucesso nos anos 60/70 do século passado, do “Pequeno Livro Vermelho” com as citações de Mao, embora efêmero no Ocidente, Millôr Fernandes também fez o seu.
Em “O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr” proclamou um ‘direito’ vigente no Brasil, que vigora desde tempos imemoriais e tem sua força reimposta hoje como nunca, pois agora goza do reconhecimento geral, apesar de não estar inscrito em nossa volumosa Constituição:
“Os direitos de cada um terminam onde as autoridades se sentem impunes”.
No entanto, esse ‘preceito’ é algo que corresponde bem ao que os revolucionários franceses do Século XVIII previram no artigo 16 de sua “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”, e nós não tivemos o discernimento e a coragem de fazê-lo:
“A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.”
Eis então como a questão decisiva se transporta do relato sobre usinas que explodem para o tema do embotamento da verdade.
É quando a ficção sobre as perdas ou ausências de controles sobre esses grandes fenômenos desastrosos, assim como sobre os abismos da alma humana e as decisões destrutivas que brotam de suas recônditas frestas, ganha um destaque revelador.
Alguns casos podem ser selecionados com proveito para a compreensão do fenômeno de que a perda dos controles e das garantias responde por grandes cismas, ao mesmo tempo em que nada é mais revelador da desorganização do exercício do poder como a sua imersão na vontade manifesta ou na intencionalidade oculta dos poderosos.
São os casos em que se pode dizer de um país que ele “não tem Constituição”.
7. O estranho caso da devolução do imposto que nunca foi recolhido e da tese, mais estranha ainda, de que tirar de todos para dar a poucos favorece ao equilíbrio econômico regional
Em 25 de abril de 2019 o STF julgou os RE 592891 (Rel. min. Rosa Weber) e RE 596614 (Rel. Min. Marco Aurélio) que tratavam do crédito de IPI junto ao produto final, relativo a insumos isentos, na Zona Franca de Manaus.
Foi então aprovada a seguinte tese de repercussão geral:
“Há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime de isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante do artigo 43, parágrafo 2º, inciso III, da Constituição Federal, combinada com o comando do artigo 40 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).”
A corrente vencedora justificou a interpretação de que o creditamento reconhecido “representa exceção à regra geral com a finalidade de neutralizar as desigualdades em prol do desenvolvimento do país, do fortalecimento da federação e da soberania nacional” e ainda que o benefício previsto para a Zona Franca “promoveu o princípio da igualdade por meio da redução das desigualdades regionais”.
Tamanha inconsistência de fundamentos foi arrematada com esta ‘pérola’ pelo presidente Dias Toffoli, ao encerrar a sessão: os ministros “têm realmente a consciência da importância da Zona Franca de Manaus para o Brasil e para toda a humanidade na medida em que ela é um projeto de Estado de preservação da floresta, que isso fique registrado.”
Pela corrente vencida, o ministro Marco Aurélio salientou que “o direito ao crédito de IPI pressupõe a existência de imposto devido na etapa anterior e de previsão legislativa”, de modo que “se não há lei específica que preveja o creditamento de IPI para a região, há de prevalecer a jurisprudência do STF no sentido de que, não tendo havido pagamento de tributo na compra de insumos, não há direito à compensação.”
O ministro Luiz Fux, também vencido, salientou uma distorção econômica que decorrerá necessariamente do julgamento havido: se a isenção ou alíquota zero incidentes em insumos da Zona Franca provocar crédito de IPI no produto final, independente de onde ele seja produzido, haverá uma progressiva transformação daquela Zona em produtora só de insumos, com perda do valor agregado ao produto final.
A jurisprudência massiva do STF era, até os julgamentos aludidos, no sentido de que imposto não recolhido sobre insumos, ou por motivo de isenção, ou por incidência da alíquota zero, não poderia gerar crédito posterior de IPI na mercadoria finalizada, e isso nada tinha de ofensivo ao preceito constitucional relativo à não cumulatividade (art. 153, § 3º, inciso III, da CF).
Tal jurisprudência foi coletada pelo ministro Gilmar Mendes, pois era de ordem tão massiva que justificava provocar um julgamento com repercussão geral, como ele fez através do plenário virtual.
O que ocorreu então? O ministro Gilmar Mendes esteve ausente da sessão de julgamento da repercussão geral. O ministro Roberto Barroso deu-se por impedido. No processo relatado pela ministra Rosa Weber deram-se por impedidos também os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux. Logo, formou-se uma maioria ocasional que acabou respaldando uma tese incompreensível, que foi saudada como “redentora” através do delírio do presidente Toffoli, que a considerou “salvadora da floresta amazônica” e “em favor da humanidade”.
A novidade encampada pelo Supremo, segundo simulação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, provocará um prejuízo monumental aos cofres públicos e foi estimado em altíssimos valores que montam de centenas de milhões a vários bilhões de reais, conforme a fonte informativa (Fontes: (1) Site “Notícias STF”, 25/04/2019; (2) Site “Estadão”, 25/04/2019).
Conclusão: Os erros do Supremo foram os de (1) praticar um ativismo judicial deformado, concedendo uma compensação tributária não estabelecida através de lei; (2) incursionar sobre as atividades governamentais, que não exerce, para dizer quais são as políticas de equilíbrio regional que devem ser estabelecidas; (3) criar uma figura teratológica de conceder créditos tributários, contra toda a sua jurisprudência histórica, decorrentes de tributos que... nunca foram recolhidos; (4) gerar evasão volumosa de receitas sem medir as consequências danosas para os interesses do Estado e do país e, por fim, mas de importância ainda maior, (5) colocar o Supremo como órgão jurisdicional dominado pelo voluntarismo de ocasião, incapaz de formulações técnicas e coerentes, o que colabora para afastá-lo, em definitivo, da identificação como corte equalizadora e justificadora por excelência.
O Supremo, portanto, criou a “Escola do Não Fundamento”, o que certamente é uma invenção brasileira que deve urgentemente ser comunicada a todos os povos amigos do mundo.
É uma desconexão grave com o Direito?
Tratou-se de um colapso?
Ou já é a decadência?
8. O caso do manifesto embaraço à tomada de contas das autoridades que destroem “o direito de cada um”, desde quando “se consideram impunes”
Em 26/04/2019 o site “Notícias STF” publicou matéria com este título: “STF reafirma que MP de Contas não tem legitimidade para impetrar mandado de segurança contra julgado de Tribunal de Contas”.
Trata-se de julgamento proferido através do Plenário Virtual, na apreciação do RE 1178617. O recurso havia sido impetrado pelo Tribunal de Contas do Estado de Goiás contra acórdão do STJ, que havia provido apelo anterior do MP de Contas, no sentido de que fossem apuradas irregularidade em processo licitatório feito por aquele TCE para a construção de sua sede.
O entendimento exposto pelo ministro relator Alexandre de Moraes sustentou que só o MP do Estado, mas não o de Contas, seria parte legítima para abordar o tema, pois este último “não dispõe de fisionomia institucional própria e não integra o conceito de Ministério Público enquanto ente despersonalizado de função essencial à Justiça”.
Essa ‘tese marciana’ talvez tenha servido para afirmar alguns precedentes, talvez também tenha enfocado casos menos dramáticos (a notícia não esclarece sobre isso), mas o fundamento apresentado é de tal forma irrisório e afastado da realidade que autoriza esta compreensão, traduzida pelo exato significado: o MP de Contas tem competência para fiscalizar a regularidade dos gastos públicos, menos os gastos do tribunal que deve julgar os atos de fiscalização e os seus resultados.
Por fim, o enunciado da repercussão geral ficou assim expresso:
“O Ministério Público de Contas não tem legitimidade para impetrar mandado de segurança em face de acórdão do Tribunal de Contas perante o qual atua.”
Ou seja, o MP que está diante do fato a fiscalizar, que lida com o objeto de deliberação do TCE, que pode representar, requerer diligências e esclarecimentos; que pode recorrer, que pode denunciar irregularidades, que pode fazer prova, não pode ingressar com mandado de segurança contra decisão que recusa representação sua.
Conclusão: O embaraço criado pelo STF ao pleno exercício do direito de fiscalizar ficou estabelecido sob o pretexto – inconfessável do ponto de vista de técnica jurídica, mas confessado pelo voluntarismo restritivo de inspiração esotérica e firmado em linguagem cifrada na expressão “fisionomia institucional” utilizada pelo ministro Moraes – de que só um órgão mais distante, que não atua na Corte de Contas, o MP do Estado, cujas atribuição são outras e múltiplas, poderia interpor mandado de segurança contra um ato que não acompanha.
Eis aí um exemplo gritante de como se institui a imagem da “autoridade que se considera impune”.
Enquanto isso, ‘aproveitando o ensejo’, o TCU resolveu “investigar” o procurador de Contas que atua diante daquele Tribunal, Júlio Marcelo de Oliveira, por ter contestado práticas adotadas na Corte que resultam no favorecimento à corrupção.
O TCU não tem competência para investigar disciplinarmente membro do MP de Contas.
O STF poderia por um termo a isso, imediatamente.
O fato do procurador referido ficar exposto a represálias, depois do muito que fez para aprofundar investigações sobre grandes casos de desvios de verbas públicas e de crimes apurados na Operação Lava Jato, mostra que há uma política judiciária de contenção, a qualquer preço, da atividades investigatórias de certas autoridades, tidas por elas mesmas como intocáveis.
9. O caso do amianto e o sinistro direito “provisório” de continuar matando
Depois de décadas de discussão em juízos e tribunais, nas jurisdições civil, penal e trabalhista; depois de laudos médicos comprados e vendidos para infirmar descobertas científicas e constatações de danos à saúde e à vida já levantados por insuspeitas organizações internacionais, que foram considerados em países mais adiantados do que o nosso; depois de uma longa e nada justificada discussão de que o produto do do tipo crisotila não provocaria os mesmos malefícios, por ter fibras mais longas, o tema da exploração mineral e industrial do amianto chegou ao STF e foi resolvido em julgamento abrangente nas ADI 3406 e ADI 3470, relatadas pela ministra Rosa Weber (Fonte: Portal stf.jus.br, 24.11.2017 e 29.11.2017).
O julgamento do Supremo chegou a ser saudado como um ponto final, pois o entendimento adotado teria criado uma forma nova de controle da inconstitucionalidade, mais avançada doutrinariamente, ao estabelecer o efeito vinculante e erga omnes independentemente (isto é, sem esperar) a declaração legislativa, através de resolução, suspendendo as leis inquinadas de inconstitucionais (Fonte: Site Conjur, 1º.12.2017).
Assim sendo, as empresas Eternit e outras que exploram as minas de amianto no município de Minaçu, Goiás, começaram a desativar suas instalações, sendo até feitos comunicados públicos de encerramento de atividades.
A empresa Eternit já pertenceu a grupos internacionais (de empresários belga e suíço, tendo um deles sido condenado a dezoito anos de prisão na Itália), sendo o último o francês Saint Gobain, que se retiraram depois que o amianto teve a exploração proibida nos seus países de origem.
Hoje o capital da Eternit se acha pulverizado na bolsa de valores.
Embora tenha acontecido tudo isso, a ABREA – Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto, que registra a memória de doenças, mortes e falta de assistência aos que foram vitimados pela atividade econômica (que se mostrou também predatória de vidas), denunciou que – um ano depois – o acórdão do STF simplesmente ... ainda não havia sido lavrado (Fonte: BBC News Brasil, 11.09.2019).
A par disso tudo, o INCA – Instituto Nacional do Câncer, que é um órgão governamental da União, mantém uma página descritiva da nocividade acentuada que a lida com o amianto traz (sua extração, processo industrial, manipulação e descarte) e das doenças que causa (Fonte: Site www.inca.gov.br).
Então, o que ocorreu?
Simplesmente, as empresas interessadas manifestaram a intenção de ingressar com embargos declaratórios (e, sendo o caso, depois com embargos infringentes regimentais) e, em razão de não poder fazê-lo, pediram uma liminar cautelar suspendendo a eficácia do julgamento, ou seja, sua execução, por não ter havido ainda o trânsito em julgado.
Não só obtiveram a medida cautelar pleiteada, que foi deferida pela ministra relatora, como reativaram sua produção e ainda fizeram lobby junto ao Estado de Goiás, que editou uma lei nova, autorizando a exploração do amianto.
Segundo declarou o governador daquele Estado, o novo diploma não contrariou a deliberação do Supremo, uma vez que a decisão da ministra relatora suspendeu o efeito erga omnes anteriormente dado e o acórdão, afinal, não foi lavrado (Fonte: Conjur, 22.12.2017).
Conclusão: O STF conseguiu provocar uma situação absolutamente inédita no concerto das decisões judiciais em todo mundo, que assim se apresenta ao entendimento epistemológico: é inconstitucional promover atividade econômica que mata, mas – provisoriamente - ela pode continuar matando até que sejam ultimados os trâmites judiciais....
Uma incompreensão tão aguda sobre a eficácia dos julgados leva à indagação sobre se o Supremo estava habilitado a deliberar a respeito da prisão após a condenação em segundo grau, tanto quando disse sim, como quando disse não. Isto é, quando estabeleceu a regra interpretativa e quando a desfez em nome de uma literalidade que não existe na Carta.
No caso do julgamento sobre o amianto, com efeitos vinculativo e erga omnes, está claro que se repetiram situações já examinadas em tribunais de segundo grau, ou seja, o efeito suspensivo se mantinha, ou então as medidas cautelares suspensiva da atividade permaneciam até que a coisa julgada fosse declarada, uma vez que esta era apenas confirmatória do que as instâncias inferiores vinham repetidamente reconhecendo.
10. O caso COAF ou quando o Supremo resolveu se expressar em javanês
O Brasil pleiteia há anos o seu ingresso no organismo plurinacional, que já reúne trinta e seis países, chamado Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE ou, na sigla em inglês, OECD). Sua origem foi o Grupo de Ação Financeira Internacional – GAFI, criado pelos países conhecidos como “G7”, que logo foi reconhecido como órgão consultor pela Organização Mundial do Comércio.
Trata-se de um organismo de consulta que prevê medidas de integração baseadas na coleta de dados, análises conjuntas, discussões de políticas e vigilância multilateral a respeito de crimes financeiros, lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo.
Faz parte do comando das ações da OCDE a exigência de que os países membros tenham a sua Unidade de Inteligência Financeira – UIF.
O Brasil havia criado a sua UIF ainda no Governo de Fernando Henrique Cardoso, através da Lei 9.613/1998, denominada como Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, vinculado à Receita Federal.
Despachando ao apreciar questões incidentais (entre elas um habeas corpus do senador Flávio Bolsonaro), o presidente Dias Toffoli resolveu paralisar as atividades do COAF, determinando diligências (na forma de suspensão de processos administrativos e judiciais) que chegaram a afetar o controle do sigilo financeiro de seiscentas mil pessoas, assim como a apuração de seus atos, proibindo ainda o compartilhamento de dados e exigindo, para a tomada de iniciativas investigatórias, a requisição judicial.
Diante de um pedido de reconsideração formulado pelo Procurador Geral da República, o presidente do STF, indeferindo-o, foi ainda além e determinou mais a identificação de auditores e membros do MP que tiveram senhas de acesso ao sistema.
Em visita ao Brasil, uma missão internacional da OCDE, através do esloveno Drago Kos, presidente do grupo antissuborno daquela organização, anunciou em entrevista coletiva concedida em 13.11.2019, ao tomar ciência das iniciativas de Dias Toffoli, “ainda vamos pensar no que fazer, mas a nossa reação vai ser forte”.
Para não paralisar as atividades da UIF, o governo federal viu-se compelido a transferir o COAF da Receita Federal para a estrutura do Banco Central, mudando-lhe a denominação, por medida provisória.
Depois de praticados todos esses desatinos, a medida cautelar de Dias Toffoli foi submetida ao tribunal pleno do STF, quando seu presidente proferiu voto qualificado como “em javanês” pelo ministro Roberto Barroso.
Toffoli, para não ficar vencido por todos os outros, também os acompanhou, o que tornou tudo ainda mais obscuro, especialmente as medidas disparatadas que havia adotado até então, de modo que a missão da OCDE deve ter partido do Brasil concluindo que nunca, em lugar nenhum, em qualquer tempo, teria a oportunidade de ver outro desfecho igual.
Os atos Dias Toffoli relativamente ao COAF tiveram um antecedente remoto nos Autos da Devassa da Inconfidência e sua ideologia se situa numa relação de autoridade tipicamente “colonial” de poder.
Esse mesmo exercício “plenipotenciário” já havia ficado caracterizado quando foi iniciado o inquérito INQ 4781, com diligências sigilosas, tendo como investigado todo o povo brasileiro e como locais de busca todos os escritórios, estabelecimentos e residências do país, tudo com a finalidade de apurar ataques vagos e imprecisos contra ministros ou contra o STF, sem que o objeto preciso tenha sido pré-determinado. Inquérito sem comando policial e sem atuação do MP e – mais surpreendente ainda – sem representação formalizada de um requerente.
Conclusão: É impossível a qualquer governo praticar atos tipicamente governamentais com as sanções – relativas à escolha política, de mérito administrativo e de direcionamento da conveniência do interesse público - que o Supremo impõe.
Todas as ações determinadas no Caso COAF configuraram um monumental abuso, uma paralisação no exercício de outro Poder de Estado autônomo e dotado de independência política para formular escolhas no âmbito administrativo.
Além do desassossego no âmbito interno, a medida judicial criou dificuldades gratuitas e altamente prejudiciais ao Brasil perante a OCDE.
A única maneira de tentar esconder tal abuso foi empregando ... o javanês (Fontes: (1) Autos do RE 1.055.941-SP; (2) Agência Estadão-Conteúdo 15.11.2019; (3) Conjur 18.11.2019).
11. O caso (ou o fiasco) do DPVAT
A questão do seguro obrigatório para veículos teve um desenvolvimento de enredo das novelas televisivas.
Foi editada a Medida Provisória 904/2019 revogando o seguro obrigatório conhecido pela sigla DPVAT, posto que ficou constatado ser o custo principal pela assistência médico-hospitalar por acidentes de trânsito suportado pelo SUS, independente do repasse de parte da arrecadação das seguradoras para esse fim.
Sem ter nenhuma pertinência temática, o partido político Rede Sustentabilidade, cujo expoente maior é Marina Silva, que tem a defesa e proteção do meio ambiente como sua bandeira maior, ingressou com a ADI 6262, alegando que a medida provisória fugia ao elenco das hipóteses legais, pois visava apenas a atingir desafetos partidários, por hostilidade do governo federal.
O Supremo, embora tenha criado a figura da pertinência temática para exigir legitimação de autores de ações diretas que visem o controle da constitucionalidade, não a exige de partidos políticos. Ainda assim, a fundamentação apresentada pela Rede Sustentabilidade era – curiosa e significativamente – insustentável, de modo que – se alguma liminar coubesse – será para rejeitá-la in limine litis, uma vez que atos caracterizadamente políticos em sua motivação, independentemente de serem justos, não padecem de inconstitucionalidade por esse só fundamento.
Entretanto, o Supremo, por seu plenário virtual, julgou inconstitucional a MP 904/2019, alegando que o art. 192 da Carta estabelece:
“O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003)
O Tribunal também mencionou a Lei 9868/1999, art. 10, § 3º, mas o texto desse dispositivo nada diz sobre o mérito da questão:
“Art. 10. Salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, observado o disposto no art. 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias.
§ 3o Em caso de excepcional urgência, o Tribunal poderá deferir a medida cautelar sem a audiência dos órgãos ou das autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado.”
Como se vê na primeira transcrição, o tema relativo a seguros, após as grandes alterações introduzidas pela EC 40, foi retirado do caput do art. 192 da Carta, e foi só esse dispositivo que restou, pois todos os incisos e parágrafos que existiram em redações anteriores (onde havia menção a seguradoras) foram revogados.
Logo, a interpretação histórica leva a concluir que o caput (que exige lei complementar) não trata de seguradoras. Aliás, toda a legislação que as rege, estabelecida há mais tempo, está expressa em leis ordinárias.
Além disso, declaração de inconstitucionalidade de lei, tanto quanto de medida provisória, não é assunto para ser submetido a plenário virtual a fim de que seja proferido ou referendado julgamento antecipatório. Tal procedimento é uma fuga – apenas para não dizer um descumprimento direto - da garantia do devido processo legal, uma vez que o plenário virtual só delibera, mas não discute.
Como não foi contrariado texto da Constituição ou explícito em lei, nem ao menos houve contrariedade a súmula vinculante (ou não vinculante), nem a julgado do Supremo a que tenha sido dado efeito interpretativo adverso à iniciativa governamental de editar a MP, como encontrar base objetiva para cassá-la?
Quanto à segunda transcrição, como justificar que o tema do DPVAT, pelas razões e pelo modo como foi proposto para pronunciamento pelo Congresso Nacional, caracterizasse “excepcional urgência” para que a MP fosse cassada sem contraditório?
Depois que a medida cautelar do Supremo paralisou os efeitos da Medida Provisória 904/2019, o Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP, órgão normativo vinculado ao Ministério da Fazenda, incumbido de traçar as políticas securitárias do país, baixou a Resolução 378/2019 reduzindo os valores do DPVAT, já que a rubrica fora mantida pelo Supremo.
Em 31.12.2020 o presidente do STF suspendeu tal resolução, atendendo à Reclamação 38.736, interposta através do escritório de advocacia de Carlos Mário Velloso, ex-ministro daquela corte, hoje aposentado.
Em 09.01.2020, Dias Toffoli voltou atrás, dizendo desta vez que a redução do valor do seguro não havia descumprido a decisão do Supremo, ou seja, exatamente o contrário de que havia dito antes, quando suspendeu a resolução.
Como se não bastassem todos esses desacertos, que causaram grandes transtornos e cobranças indevidas a milhares de brasileiros, os jornais trouxeram à lume que uma auditoria independente realizada pela Consultoria KPMG na contabilidade da Seguradora Líder, que administra a destinação dos recursos do DPVAT.
A auditoria aponta que a Líder realizou vultosos gastos com relação a agentes públicos, chamados eufemisticamente de “pessoas expostas”, incluindo um advogado de carreira do INSS que atuou como assessor direto do ministro Dias Toffoli, tanto na AGU como no STF, e também o escritório de advocacia dos filhos do ministro Roberto Barroso, do qual este se afastou quando foi nomeado para o Supremo.
O levantamento da auditoria foi minucioso, explicitado em cerca de 1.000 folhas e, além de referir “pessoas próximas a ministros do STF” menciona que a Seguradora Líder financiou um simpósio da Escola da Magistratura estadual de São Paulo e um evento paralelo da AMB-Associação dos Magistrados do Brasil (Fontes: (1) Portal stf.jus.br ADI 6262; (2) Site Migalhas 21.01.2020; (3) Site Conjur 09.01.2020; (4) Jornal Folha de S. Paulo, 12.01.2020).
Conclusão: A questão do DPVAT foi um monumental fiasco que deixou exposta uma cisão profunda no sistema de justificação do STF, que não tem atuado dentro dos padrões de uma Suprema Corte, qualquer que seja a comparação se faça com instituição congênere dos países civilizados. A atuação do Supremo está mais enquadrada como um “mecanismo”, para utilizar um termo hoje empregado para ações que geram consequências em cadeia a partir de uma irregularidade menor, ou de um deslize, até atingir as proporções deformadas da defesa e justificação do absurdo.
12. Chegamos enfim ao exercício do Poder no limite do absurdo
Outros casos poderiam ser visitados aqui, de forma mais pormenorizada, como o inquérito sem fato determinado, conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, o pregão eletrônico 27/2019 feito para aquisição de produtos refinados para banquetes oferecidos no STF, a decisão do ministro Dias Toffoli “adiando” a vigência da lei que estabeleceu o juiz de garantias, quando o cabível seria – apenas para considerar em tese – a suspensão da sua vigência, por inconstitucionalidade ou vício de elaboração legislativa...
(Posteriormente, no final de 01/2020, o ministro Luiz Fux, como plantonista, corrigiu o “descaminho” de Toffoli, que havia inventado um “adiamento” inexistente no Direito, determinando o acertado efeito suspensivo).
Porém, os exemplos enfocados nesta memória crítica são suficientes para mostrar que há um enredo farsesco, no sentido teatral, ou da dramaturgia do absurdo, que foi tão bem desenvolvido por Eugène Ionesco, Samuel Beckett e Fernando Arrabal.
Não seria de todo mau também considerar outros enredos que viram o absurdo nas relações de vida cotidiana dos brasileiros e receberam títulos expressivos como “Cemitério de Elefantes”, dado por Dalton Trevisan, ou “A Hora dos Ruminantes”, concebido por José J. Veiga.
13. Epílogo: o espírito redivivo em uma moderna reencenação da “basoche” medieval e da “farsa do grande inquisidor”
Victor Hugo fez a narrativa do que foi um auto religioso medieval, encenado como pequena farsa, apelidada de ‘basoche’, em seu conhecido livro “Notre Dame de Paris”, que - a partir da tradução inglesa - ficou mais conhecido no Ocidente como “O Corcunda de Notre Dame”.
A ‘basoche’ (palavra de etimologia obscura, mas que tem alguma derivação de ‘basílica’, como local de celebração) era praticada por aqueles que os franceses chamam de “gens de justice”, pessoas ligadas à comunidade jurídica, que os medievais identificavam como uma corporação, formada por juízes, serventuários de vários tipos, notários e outros escrivães, advogados e ‘les magistrats du parquet”, que eram os integrantes do Ministério Público.
Toda essa gente conhecia bem a aflição das partes - que se cansavam, para consumir sua ansiedade da espera, caminhando na ‘salle des pas perdus”, a ponto de desgastar seu piso de mármore, que é ondulado até os dias de hoje -, e ganhou o direito de se divertir fazendo encenações, como foi reconhecido pelo rei Filipe IV, O Belo, em 1303, através de um edito.
Os ‘basochiens’ ganharam mesmo a licença de escolher um rei de fancaria e eram considerados ‘les clercs de la basoche’. Isso durou séculos, até que outro rei, Francisco I, em 1540, achou que já era tempo de acabar, em pleno Renascimento e sendo ele amigo de Leonardo da Vinci, com as farsas medievais encenadas com motivos (ou pretextos) religiosos.
O tema teria talvez ficado restrito à imaginação de Victor Hugo, não fosse a consequência que dele extraiu um leitor seu, Dostoievski.
Deve ser dito que Victor Hugo longe estava de enaltecer a ‘basoche’ ao introduzi-la em seu romance célebre.
Ele também fez outra referência a ela mostrando o que pensava a respeito. Isso ocorreu no longo prefácio escrito para a sua peça teatral ‘Cromwell’, que veio a ser considerado, na história da literatura, como o principal manifesto da estética do Romantismo.
Ali Victor Hugo escreveu que as encenações da ‘basoche’ davam um trato de representação a temas sacros sob a concepção farsesca, acentuando milagres, mostrando aparições, “estranhas procissões em que a religião anda acompanhada de todas as superstições”, enfim, “o sublime rodeado de todos os grotescos”.
Portanto, se fosse reimaginada a cena nos tempos correntes da medieval “basoche”, teríamos algo que lembra muito, nos dias de hoje, as encenações de bispos e missionários que se dizem evangelistas em cultos animados por gritarias e cenas gravadas para a TV, pois embora o sublime possa ser imaginado, o que se ali vê mesmo é o grotesco.
Dostoievski foi além. O lado farsesco assumiu em seu texto o ápice dramático.
Quando escreveu seu último romance, “Os Irmãos Karamazov”, publicado em 1880 (o autor já estava doente, vindo a falecer no ano seguinte), ele obrigou-se a redigir um preâmbulo ao Capítulo V, II Parte, a que deu o título de “O Grande Inquisidor”.
No preâmbulo, Dostoievski narra o que era a ‘basoche’ e invoca a leitura que fez da obra de Victor Hugo.
O capítulo em que tratou do assunto tornou-se tão célebre que seu conteúdo veio a ser conhecido como a “Farsa do Grande Inquisidor”.
Em correspondência com seu editor, que reclamava do escritor russo pelo atraso na conclusão da obra, Dostoievski desculpou-se alegando que estava trabalhando no “ponto culminante” de seu romance final, que era exatamente aquele capítulo, e que nele “não podia errar”.
De fato, a “Farsa do Grande Inquisidor” reúne o que há de essencial nos temas de toda a obra de Dostoievski, relativos à fraqueza humana e à responsabilidade moral, encaradas em suas dimensões da fé religiosa ou do conhecimento metafísico.
A síntese do capítulo é esta:
Ivan Karamazov conta para seu irmão mais novo, Aliocha, que está escrevendo um longo poema narrativo baseado nas farsas religiosas medievais e situa a ação de sua “basoche” no Século XVI, em Sevilha, quando imperava a Inquisição do Santo Ofício.
Ali um nonagenário cardeal jesuíta, muito alto, severo, “com uma face seca e olhos cavados”, exerce o papel de guardião da fé verdadeira, instrui os fiéis e destina os infiéis à fogueira, sendo suas escolhas aceitas pela população por partirem de alguém que está santificado pela devoção e pelo domínio dos grandes mistérios de Deus.
Assim estão as coisas quando há um clamor defronte a catedral pelo fato de um peregrino estar realizando milagres, restituindo a visão a um ancião e ressuscitando uma menina.
A “guarda taciturna” que servia ao inquisidor, a mando deste, localiza e prende o peregrino suspeito.
Descendo até as masmorras naquela noite, munido apenas de um archote, o padre identifica o Messias, que está cumprindo a promessa de seu retorno.
Para o grande inquisidor esse retorno, um milênio e meio depois da crucificação, quando deveria ter sido “em breve”, é inoportuno e, mesmo, desmente os séculos de pregação da Igreja, pois de novo voltariam as proposições que diluem a fé, carregam-na de uma esperança irrealizável e, enfim, põem por terra os imensos sacrifícios que os padres escolásticos fizeram para mantê-la em pé, por tanto tempo, nas bases em que estão.
O discurso é poderoso, um monólogo abissal sobre os perigos da fé e suas promessas irrealizáveis de libertação e felicidade. Para o jesuíta, o milagre é sim um dos sustentáculos da crença, mas também ligado ao mistério e à autoridade. A esperança que o Messias propõe significaria “salvai-nos de nós mesmos” e isso é impossível de alcançar.
A longa peroração do Grande Inquisidor é, em resumo, sobre a insuficiência reveladora da fé, que se mostra instabilizadora da liturgia, quando se sabe que é esta, bem conduzida pelos que se dedicam a difundi-la e preservá-la, que sustenta a mesma fé.
Feito o discurso, que encerra com a promessa do padre de levar aquele Messias à fogueira no dia seguinte, o peregrino aproxima-se do cardeal nonagenário e “beija-lhe os lábios exangues”. Diante de “um silêncio que lhe pesa”, o Inquisidor manda abrir a porta da masmorra e concede a saída ao peregrino, desde que nunca mais volte.
A parábola que nos foi legada pelo atormentado Dostoievski engrandeceu as descrições do grande Victor Hugo e serve como epílogo a este texto.
Aqui se tratou também da verdade perdida.
Aqui se examinaram muitas situações em que o grotesco suplantou o sublime.
Instituições também morrem e elas igualmente podem ter finais dramáticos, determinados por seu colapso ou pelo seu completo abandono, desde quando não cumprem mais suas funções.
Ainda há o caso de instituições se tornarem escombros quando ainda estão sendo edificadas e, nesse caso, se assemelham a obras que seriam emancipadoras da pobreza ou do atraso, mas que – exatamente por essas circunstâncias – vieram a ser destruídas.
As instituições judiciárias do nosso país dão sinal de colapso, a partir da errância tornada permanente pelo Supremo Tribunal Federal, cujo marco inicial pode ser fixado quando, pela composição mais recente, começou uma obstinada “desconstrução” dos resultados obtidos, sob duríssimo esforço e sacrifício, no trâmite do Processo do Mensalão.
A partir daí todas as imposturas, todas as marchas e contra-marchas ficaram autorizadas, de modo que “a voz” não mais foi ouvida.
Mas não há “saída” que possa ser dada como resposta quando o que declina é a instituição judiciária, pois todos estão submetidos a ela e não há outro caminho nem porta que se abra.
Portanto, o que vemos é uma perda já irremediável da “lealdade”.
O Supremo Tribunal Federal perdeu a lealdade dos brasileiros.
E a razão determinante da perda dessa lealdade pública é porque o STF – sempre seguido de perto pelo CNJ e pelo CNMP, e às vezes por outros tribunais superiores - vem praticando, obstinadamente, a deslealdade para com o Direito.
O STF, naqueles que seriam seus julgamentos mais célebres, vem encenando a sua ‘basoche’.
O efeito devastador para o Direito no Brasil só tem proporções comparáveis a uma ruptura, que a percepção pública melhor situa quando há um desastre como o de Chernobyl.
Instituições também podem colapsar, para depois serem recobertas por um ‘sarcófago’. Então, “o que restará, além de esquecer até a esperança da verdade, é nos contentarmos em vez disso com histórias”. Histórias mal contadas porque seu tema foi distorcido até não haver mais um breve reconhecimento da “fé” em nome da qual o pregador fala.
Contudo, o nosso desatinado Grande Inquisidor togado dos dias atuais, como o velho bispo assassino que dedicava sua decrepitude a tratar a verdade como se fosse uma força reveladora da vida e da morte, e escrevia nas relações das pessoas a sua farsa em que a liturgia substituía a fé, poderia ser comovido pelo radical silêncio amoroso do acusado, e abrir-lhe as portas da masmorra, se viesse a ler o que escreveu outro perseguido da História, excomungado com humilhação da Sinagoga de Amsterdam com palavras tão duras, atingindo até a descendência que ele não teve, que fariam os termos da dramática abjuração de Galileu Galilei perante o Santo Ofício parecerem um acordo de cavalheiros.
Em “Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras”, Proposição XXVII, Corolário II, Baruch de Spinoza nos legou:
“Se uma coisa nos inspira comiseração não podemos odiá-la por causa da tristeza com que a sua miséria nos afeta.”
Data da conclusão/última revisão: 25/1/2020
Luiz Fernando Cabeda
Desembargador inativo do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, com estágio n Escola da Magistratura da França. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".
Código da publicação: 4680
Como citar o texto:
CABEDA, Luiz Fernando..Chernobyl à brasileira: quando as estruturas judiciais também causam megadesastres. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1693. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/4680/chernobyl-brasileira-quando-as-estruturas-judiciais-tambem-causam-megadesastres. Acesso em 27 fev. 2020.
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