Punição administrativa pela verdade sabida
Resumo: Visa esclarecer pontos sobre a verdade sabida, sua constitucionalidade, como meio, para se aplicar punição administrativa em face da existência de princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa disciplinar; bem como, mostrar o entendimento doutrinário e jurisprudencial a respeito deste mecanismo.
Palavra Chaves.: Poder Disciplinar, Verdade Sabida, Contraditório, Ampla defesa
1. INTRODUÇÃO
As atividades da Administração Pública visam por conseguinte à realização do bem comum à coletividade; com vistas, a atingir tal fim, a administração faz uso dos Poderes da Administração (vinculado, discricionário, hierárquico, de polícia e disciplinar) dar-se-á tratamento somente a este último, para não se fugir do objetivo deste trabalho. Convém ressaltar que tais poderes, não são faculdades da administração, mas sim um poder–dever.
Através do poder disciplinar cabe à Administração Pública punir atos (comportamentos) dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa, em razão de infrações cometidas. Este poder é exercido em benefício do serviço público, com o fito de realizar o bem comum aos administrados. É discricionário, porque confere ao administrador público maior liberdade de ação, sobre a conveniência, oportunidade e conteúdo do ato administrativo punitivo.
Não significando que o administrador público, faça uso do poder disciplinar para infligir aos infratores das normas administrativas punição disciplinar, sem garantir a eles um processo apuratório justo, marcado pelos princípios do contraditório e da ampla defesa; somente com base no maléfico mecanismo da verdade sabida, ainda, contido em alguns estatutos administrativos de forma expressa ou implícita.
2. VERDADE SABIDA E OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
2.1 Conceito de verdade sabida
Para Hely Lopes Meirelles verdade sabida [1] “é o conhecimento pessoal da infração pela própria autoridade competente para punir o infrator ”. Em outro ponto o ilustre mestre diz ainda, que “Tem-se considerado, também como verdade sabida a infração pública e notória, estampada na imprensa ou divulgada por outros meios de comunicação de massa”.
A Lei nº 10.261 de 28 de outubro de 1968 (Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo), no seu artigo 271, poder-se-á aplicar a pena pela verdade sabida nos casos dos arts. 253 e 254 (respectivamente pena disciplinar de repreensão e suspensão, esta não excederá a 90 dias); já no Parágrafo único deste artigo, traz no seu bojo o entendimento sobre o que é verdade sabida “o conhecimento pessoal e direto de falta por parte da autoridade competente para aplicar a pena”.
Veja dois casos que a seguir explicaremos:
1. Um funcionário público em serviço trata mal um usurário do serviço público, fato este presenciado pelo superior, este de pronto lhe aplica a pena disciplinar de repreensão.
2. Uma equipe de jornal flagra um funcionário em serviço tratando mal um cidadão, filma o fato e, veicula a matéria, tendo o superior assistido a reportagem, infligi sanção de repreensão ao funcionário.
No primeiro caso a autoridade competente pessoalmente toma conhecimento da irregularidade (falta cometida) pelo subordinado infrator, ou melhor, presencia a infração e, de pronto lhe aplica a sanção administrativa. Na outra hipótese o superior toma conhecimento da infração cometida pelo servidor, por meio dos órgãos da imprensa (escrita e,ou falada), portanto, a infração deve ser sabida de todos e, tal como na primeira infringe prontamente ao infrator punição.
Em ambas as hipóteses, independentemente do modo, como obteve conhecimento, se pessoal e diretamente ou pela imprensa, a autoridade encarregada de aplicar a sanção não concede ao transgressor da norma administrativa oportunidade de fazer uso de seu direito constitucional de defesa, aplicando imediata punição a este.
2.2 Princípios do contraditório e da ampla defesa
Este princípio de índole constitucional, insculpido no art. 5º, inciso LV, da Carta magna pátria, tendo como teor: “aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”(grifo meu).
Assim, a leitura deste preceito autoriza a concluir que no processo judicial (cível e criminal) como no processo administrativo contém a garantia do contraditório e da ampla defesa, possibilitando aos litigantes, no caso deste último processo: o contraditório (abarca não só a garantia de ciência e de participação, como possibilita uma efetiva igualdade processual, ao conferir as partes, a par conditio ou paridade de forças) dentro da relação processual; já a ampla defesa abrange o direito à autodefesa (possibilita ao litigante ser ouvido, apresentando sua versão para os fatos ou simplesmente silenciar sobre eles); direito à defesa técnica (exercida por advogado); direito à prova (produzindo-a ou fazendo contraprova).
Inegável se faz, a exigência do contraditório e da ampla defesa, em qualquer processo penal, cível e administrativo. Neste último processo, porém, para aplicar qualquer punição a servidor, não há exigibilidade da observância precisa das regras típicas do processo penal (STJ, 1ª T., RMS 484, DJU 10.6.91. Relator Ministro Geraldo Sobral).
3. VISÃO DOUTRINARIA E JURISPRUDENCIAL, A RESPEITO DA VERDADE SABIDA
Uníssona são as vozes da doutrina, de que , a verdade sabida é inconcebível, porque contraria o princípio da ampla defesa; assim, se posiciona Di Pietro ao referir-se ao art. 271, parágrafo único, do Estatuto paulista, no qual consta o mecanismo da verdade sabida [2] “Esse dispositivo estatutário não mais prevalece diante da norma do art. 5º, LV, da Constituição que exige o contraditório e a ampla defesa nos processos administrativos”.
Com precisão Romeu Bacelar Filho afirma, que[3]:
“Formou-se um consenso doutrinário acerca da inconstitucionalidade da verdade sabida. A Constituição de 1988 exige, incondicionalmente, o processo (procedimento em contraditório) para aplicação de sansão disciplinar de qualquer espécie e seja qual for o conjunto probatório, que a administração pública disponha para tanto”.
Tal como os outros dois, tratando sobre a verdade sabida,assim, se posta Meirelles [4] ”[...] embora sem rigor formal a possibilidade de defesa e contraditório“.
A jurisprudência do Superior tribunal de Justiça se manifesta da seguinte forma:
“MANDADO DE SEGURANÇA. PENA DISCIPLINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA.CRITICA VIA IMPRENSA. VERDADE SABIDA. CONHECIMENTO DIRETO. ESTATUTO DOS FUNCIONARIOS MUNICIPAIS DE SÃO PAULO.- A NOTICIA VEICULADA EM JORNAL NÃO IMPORTA EM CONHECIMENTO DIRETO DO FATO, ANTE A NOTORIA POSSIBILIDADE DE DISTORÇÕES. POR ISSO, NÃO SE CONVOCA O INSTITUTO DA VERDADE SABIDA PARA FUGIR A IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. RECURSO PROVIDO” (STJ, 2ª T., RMS 825 / SP ,DJ 28.06.1993).
Neste sentido, também, a jurisprudências dos seguintes tribunais:
TJ/RS: “REEXAME NECESSÁRIO. ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. MUNICÍPIO DE PASSO FUNDO. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. INOCORRÊNCIA. AUXILIAR DE ENFERMAGEM. ACUSAÇÃO DE PRESCRIÇÃO DE MEDICAMENTOS. EXERCÍCIO ILEGAL DA FUNÇÃO. APLICAÇÃO DA PENALIDADE DE ADVERTÊNCIA SEM A INSTAURAÇÃO DA SINDICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. PROCEDIMENTO DEFESO PELA CONSTITUIÇÃO. PRINCÍPIO DA VERDADE SABIDA INSERTO NO ART. 242, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO I, DA LEI MUNICIPAL N.º 1.763-77, QUE AFRONTA O ART. 5º, INCISO LV, DA CARTA MAGNA. VIOLAÇÃO AO DIREITO LÍQUIDO E CERTO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. SEGURANÇA CONCEDIDA NA ORIGEM. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME”. (Reexame Necessário Nº 70006857767, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Wellington Pacheco Barros, Julgado em 24/09/2003).
TJ/SP:”ATO ADMINISTRATIVO - Suspensão de Servidor Público - Nulidade - Inexistência de regular procedimento administrativo ou sindicância - violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa - Art. 5º, LV da Constituição Federal - Princípio da verdade sabida - Não receptividade - Recursos não providos” (Apelação Cível n. 146.793-5/1 - São Paulo - 1ª Câmara de Direito Público - Relator: Roberto Bedaque - 29.06.04 - V.U.).
TJ/SC: “ MANDADO DE SEGURANÇA - OFICIAL DE JUSTIÇA - NÃO CUMPRIMENTO DE MANDADO DE INTIMAÇÃO EM PROCESSO-CRIME SOB ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE RECURSOS FINANCEIROS PARA DESPENDER COM TRANSPORTE - REQUERIMENTO PLEITEANDO O USO DE VEÍCULO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - NÃO APRECIAÇÃO DO PEDIDO - APLICAÇÃO SUMÁRIA DE PENA DE ADVERTÊNCIA - INEXISTÊNCIA DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA - IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA CHAMADA "VERDADE SABIDA" - SEGURANÇA CONCEDIDA PARA ANULAR A PENALIDADE IMPOSTA”( Acórdão: MS n° 01.011382-1, Relator: Des. João Martins, Data da Decisão: 28/02/2002).
Portanto, doutrina e jurisprudências adotam posicionamento idêntico, a respeito da verdade sabida, independentemente da norma administrativa transgredida e da punição a ser aplicada pela autoridade competente; deste modo, tem sido considerada incabível sua existência, porque se lança de encontro aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Por conseguinte, dispositivo de norma infraconstitucional, que traga no seu bojo o mecanismo da verdade sabida, neste ponto, não foi recepcionado pela Constituição (inconstitucionalidade superveniente) se a norma pré-existe a esta. Se a norma posterior a Constituição é inconstitucional, pois, padece de vício material (refere-se ao conteúdo da norma), porque afronta matéria contida no art. 5º , LV, da Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988.
4. CONCLUSÃO
De todo o exposto, vê-se que o mecanismo da verdade sabida, não deve ser utilizado pela Administração Pública, para infligir a funcionário público (federal, estadual e municipal) punição (prevista em norma estatutária), pois não prevalece em face da garantia do contraditório e da ampla defesa em qualquer processo.
Referência Bibliográfica
BANDEIRA DE MELLO,Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 20 ed. São Paulo, Malheiros Editores, 2006.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19ed. São Paulo, Atlas, 2006.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32 ed. São Paulo, Malheiros, 2006.
NOTAS:
[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32 ed. São Paulo, Malheiros, 2006, p. 697
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19 ed. São Paulo, Atlas, 2006, p. 616.
[3] Apud BANDEIRA DE MELLO,Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 20 ed. São Paulo, Malheiros Editores, 2006, 808.
[4] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit. p. 697.
( Texto elaborado em 02.10.2006)
Carlos Cárdenas dos Santos Coelho
Capitão da Polícia Militar do Maranhão. Bacharel em Segurança Pública pela Universidade Estadual do Maranhão;Acadêmico do Centro Universitário do Maranhão.