Programas de integralidade na Lei 12.846/2013: o compliance como instrumento de prevenção da corrupção no Brasil
RESUMO
A multiplicação de episódios de corrupção e desvios de recursos públicos no Brasil descortinou um quadro sistêmico de captura do estado por interesses privados, a partir do relacionamento incestuoso e patrimonialista estabelecido entre a esfera pública e o poder econômico-empresarial. Com efeito, a revelação deste entrelaçamento corrupto entre o estado e as corporações colocou em evidência a necessidade de criar ferramentas que busquem fortalecer a ética nos negócios. O Presente artigo tem como propósito salientar a importância do compliance ou, como tem sido traduzido, dos programas de integridade, no fortalecimento da ética corporativa e na prevenção da corrupção. Desta forma, através de pesquisa teórica, objetiva-se apresentar os elementos teóricos a respeito do compliance, no paradigma da autorregulação regulada, bem como o tratamento jurídico dado pela Lei nº 12.846/2013 (Lei anticorrupção) e o potencial preventivo deste instrumento.
PALAVRAS-CHAVE: Corrupção. Integridade. Compliance.
ABSTRACT
The multiplication of episodes of corruption and diversion of public resources in Brazil revealed a systemic picture of state capture by private interests, based on the incestuous and patrimonialist relationship established between the public sphere and economic-business power. Indeed, the revelation of this corrupt entanglement between the state and corporations has highlighted the need to create tools that seek to strengthen business ethics. The purpose of this article is to emphasize the importance of compliance or, as it has been translated, integrity programs, in strengthening corporate ethics and in preventing corruption. Thus, through theoretical research, the objective is to present the theoretical elements regarding compliance, in the paradigm of regulated self-regulation, as well as the legal treatment given by the Law 12.846/2013 (Anti-corruption Act) and the preventive potential of this instrument.
PALAVRAS-CHAVE: Corruption. Integrity. Compliance.
1.INTRODUÇÃO
A multiplicação exponencial de episódios de corrupção e desvios de recursos do Estado descortinou um quadro sistêmico de captura da estrutura e dos processos estatais por interesses privados, através do relacionamento incestuoso e patrimonialista firmado entre o setor público e o poder econômico.
Não por acaso, o Brasil perdeu 17 (dezessete) posições no ranking de percepção da corrupção, mensurado pela ONG Transparência Internacional, sediada na Alemanha, saindo da 79ª colocação, em 2016, para o 96º lugar, em 2017, entre 180 países ao todo. (TRANSPARENCY INTERNATIONAL, 2017). Ademais, é disparado o país onde a corrupção constitui a maior preocupação, segundo os dados do Latinobarômetro (LATINOBARÔMETRO, 2017).
A formação de cartéis em procedimentos licitatórios, o pagamento de propinas para obtenção de licenças ou alvarás, a compra de medidas provisórias e leis com o escopo de obter privilégios fiscais, parcelamentos tributários e subsídios públicos, representam apenas algumas exemplificações dos frutos que provém desta relação contaminada do público com o privado.
Este contexto revela além dos graves prejuízos à competitividade e aos cofres públicos, um círculo vicioso onde a regra consubstancia a corrupção, e a ética nas transações converte-se em exceção, de modo que os incentivos estão voltados à manutenção do status quo de vantagens ilícitas, excluindo aqueles que pretendam comportar-se conforme a lei e a ética.
Neste sentido, investir apenas na abordagem repressiva, mediante uma produção mais intensa de leis e o incremento de penas, conquanto necessário, é insuficiente, razão pela qual é preciso atentar para a abordagem preventiva, de promoção da integridade, transformando o modelo de negócios atual baseado na corrupção (regras do jogo).
Daí a relevância atual dos programas de integridade ou programas de compliance, inseridos no ordenamento jurídico do Brasil através da Lei nº 12.846/2013, denominada Lei Anticorrupção ou Lei da Empresa Limpa, cujo propósito é justamente estimular a conduta íntegra no âmbito das corporações, por intermédio da instalação de medidas preventivas e da avaliação do risco de fraudes.
Neste toar, por intermédio de pesquisa teórica, o presente artigo procura destacar a relevância dos programas de integridade como mecanismos eficientes no enfrentamento da corrupção e fortalecimento da ética corporativa, explorando as circunstâncias que deram origem ao instituto, bem como o tratamento jurídico que lhe é dado no Brasil.
Para tanto, realizou-se um levantamento bibliográfico a partir da doutrina a respeito do tema, artigos científicos, assim como documentos internacionais que veiculam guias teóricos com base no direito comparado.
Bem assim, o desenvolvimento deste artigo será feito em três partes. De início, apresentar-se-ão noções superficiais acerca dos efeitos prejudiciais que decorrem da corrupção, tanto os diretos, relacionados à depredação dos cofres públicos, o déficit de qualidade dos serviços públicos e a perda severa de competitividade, como os indiretos, atinente à redução da confiança social nas instituições do Estado. Em seguida, será realizada uma abordagem conceitual sobre o compliance, contextualizando o surgimento deste mecanismo nos Estados Unidos, no paradigma da autorregulação regulada proporcionada pelo Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), de 1977, e a sua disseminação posterior no mundo, além dos aspectos conceituais e elementos que atualmente servem de base aos programas de integridade. Por fim, o escopo voltar-se-á à lei nº 12.846/2013 e o regramento jurídico conferido aos programas de integridade no Brasil.
2. A CORRUPÇÃO E SEUS EFEITOS NOCIVOS
No que pese a permanente dificuldade de construção de um conceito razoavelmente objetivo e abrangente sobre a corrupção, são inegáveis os impactos extremamente danosos que ela acarreta à sociedade.
Em sentido amplo, o comportamento corrupto pode ser entendido como “a conduta de oficiais públicos que se desviam dos preceitos normativos, com o propósito de atender interesses particulares”, nas palavras de Samuel Huntington (HUNTINGTON, 1975, p.72). Em termos mais precisos, Manuel Gonçalves Ferreira Filho (1991, p. 3) inclui o quid pro quo como elemento conceitual, ao se referir à “conduta de autoridade que exerce o poder de modo indevido, em benefício de interesse privado, em troca de uma retribuição de ordem material”. (grifou-se)
Ainda, segundo a acepção clássica de Alexis de Tocqueville, verifica-se o comportamento corrupto “quando se obtém alguma coisa que não é devida, através do favorecimento daquele que a fornece”. (TOCQUEVILLE, 1987, p. 159).
Com efeito, está superada a abordagem teórica, erigida sob o rótulo de teoria da graxa sobre rodas (grease the wheels theory), que considera a corrupção uma prática saudável ao desenvolvimento dos países, porquanto permitiria contornar a sufocante burocracia estatal, conferindo maior liberdade de atuação do mercado, gerando, por conseguinte, crescimento econômico. (MEÓN; SEKKAT, 2005, p. 70). A lógica desta abordagem, denominada teoria da modernização, segundo Fernando Filgueiras (2006, p. 5), é que o investidor, ao corromper políticos e burocratas, minimiza os custos de investimento, ao agilizar a burocracia e reduzir o número de documentos e autorizações formais por parte do Estado, e reduz o risco destes investimentos, ao favorecer a inserção dos agentes privados junto à administração pública, assegurando estabilidade aos investimentos
Convém ressaltar, inclusive, que até recentemente, com arrimo naquela teoria, determinados países europeus, como França e Alemanha, autorizavam o pagamento de propina a funcionários de países importadores, com a possibilidade de dedução posterior do suborno pago nas declarações de imposto de renda. (FURTADO, 2015, p. 133).
Ao invés disso, as evidências sugerem que a corrupção caminha justamente em direção oposta, rumo ao rebaixamento econômico e o declínio dos investimentos. Consoante explicação de Emerson Garcia (2004, p. 219):
O regular funcionamento da economia exige transparência e estabilidade, características de todo incompatíveis com práticas corruptas. A ausência desses elementos serve de desestímulo a toda ordem de investimentos, que serão direcionados a territórios menos conturbados, o que, em consequência, comprometerá o crescimento, já que sensivelmente diminuído o fluxo de capitais.
Convém ressaltar, entretanto, que este constitui apenas um dos variados efeitos nocivos que advém da corrupção sistêmica, recentemente reconhecida, a propósito, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), como uma violação grave aos Direitos Humanos consagrados nos diversos tratados e convenções internacionais, nos termos da Resolução nº 01/2018.
Em termos financeiros, não obstante a óbvia impossibilidade de aferição quantitativa precisa, dado o caráter eminentemente opaco no qual se realiza os desvios públicos, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), calcula prejuízos anuais em torno de 5% do PIB, o que equivale, numa perspectiva global, a 2,6 trilhões de dólares, que escorrem pelos dutos da corrupção (PNUD, 2016). Ademais, segundo estimativa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), algo em torno de 10% a 30% dos investimentos em projetos de infraestrutura são perdidos em virtude da má-gestão pública.
Especificamente no Brasil, alguns números apurados no âmbito da Operação Lava Jato dão alguma dimensão do problema. Um estudo econométrico elaborado pela equipe técnica do Tribunal de Contas da União, o qual consta do Acórdão nº 3089/2015 – TCU – Plenário (Processo nº TC 005.081/2015-7), estimou dano causado ao erário por conta de atuação de cartel em licitações na ordem de 29 bilhões, apenas no âmbito dos contratos administrativos firmados pela Petrobrás.
Referidos desvios financeiros do patrimônio coletivo resulta diretamente na precarização de serviços públicos básicos, onerando principalmente grupos marginalizados e a parcela mais miserável da sociedade, porquanto ser esta a que mais depende dos serviços estatais.
Sob o ângulo político-social, são igualmente graves as consequências. Ao aprofundar desigualdades econômicas, máxime a geração de vantagens àqueles que detêm maior “poder” na sociedade, a corrupção distorce um dos principais fundamentos da democracia liberal, qual seja, a igualdade material, constante do art. 3º, caput c/c art. 5º, caput, da Carta Magna. Por conseguinte, reduz a confiança que o povo deposita nas instituições estatais e na própria democracia, fortalecendo a percepção de que a corrupção é normal ou, até certo ponto, tolerável. No Brasil, tal sentimento é amplamente conhecido sob a anedota do jeitinho brasileiro.
Esta espécie de conformação social, na expressão de Robert Klitgaard (1994, p. 33), é o que estimula os comportamentos corruptos e a formação do ciclo vicioso onde ela se perpetua, distorcendo o mercado, desmoralizando as instituições e estimulando a concorrência desleal.
Com efeito, Alberto Vannucci e Donatella della Porta (1999, p. 10-12) enfatizam que esta disseminação alcança determinado patamar em que o próprio sistema de transações passa a funcionar a partir da corrupção, é dizer, que as regras democráticas são contaminadas pela oferta e obtenção de vantagens ilícitas, suscitando aquilo que designam como corrupção normativa. Para mais, afirmam:
[...] uma análise das dinâmicas da corrupção indica que essa atividade se retroalimenta. Onde existe corrupção, os não corruptos são levados a conspirar com ela, ou ao menos aceita-la, em ordem a obter vantagens políticas. Forma-se o que os autores denominam de mercado político clandestino da corrupção, o qual tem a capacidade de criar uma estrutura de normas invisíveis mais poderosas que as leis do próprios Estado. Neste contexto, o interesse de todos os atores envolvidos consiste em aceitar o status quo, recebendo e pagando propinas, a despeito deles conhecerem os efeitos desastrosos desse comportamento para a coletividade. (traduziu--se)
Nestas condições – e não constitui demasia afirmar que o Brasil alcança ou está próximo de alcançar nível semelhante ao da denominada corrupção normativa, a regra do jogo e o modelo de negócios é contaminado por transações ilícitas, onde a ascensão social está muito mais atrelada à rede de contatos e proximidade com setores poderosos, do que efetivamente com a produtividade e o mérito.
Dentro deste contexto é que sobressai a necessidade de implementar a política de conformidade ou compliance, como mecanismo tendente a alterar esta realidade de coisas, ao introduzir a importância da integridade e do cumprimento de normas no funcionamento das empresas, de modo que a ética converta-se em valor de mercado.
3. PRIVATIZAÇÃO DO COMBATE À CORRUPÇÃO: O PARADIGMA DA AUTORREGULAÇÃO REGULADA, A ORIGEM E CONCEITO DO COMPLIANCE
Em que pese ter ganhado notoriedade apenas recentemente no Brasil, em função, notadamente, dos sucessivos escândalos de corrupção envolvendo grandes empreiteiras nacionais, o surgimento das políticas de compliance remetem à passagem da década de 1960 a 1970, nos Estados Unidos.
Neste período, dava-se inícios às reformas de estado relacionadas à chamada administração gerencial, em contraposição à formatação burocrática weberiana tradicional de funcionamento do setor público, onde a figura do Estado, enquanto provedor de bens e serviços, predominante desde a implementação das políticas intervencionistas após a crise de 1929, fora substituída pelo Estado de caráter fortemente regulador (Estado-regulatório), o qual transfere determinados serviços não-exclusivos ao setor privado, promovendo, subsequentemente, a regulação de sua atuação no mercado, através de normas técnicas e a instituição de agências reguladoras.
Consoante ressalta Carla Veríssimo (2017, p. 109), o crescimento da regulação e a criação de normas converteram-se na principal forma de governança, originando uma espécie de “capitalismo regulatório”.
Com efeito, o pioneirismo norte-americano em matéria de administração gerencial e regulatória, no âmbito da abordagem do então denominado New Public Management, encontrou resistência nas companhias, em especial as multinacionais, que viram nas regulações uma restrição competitiva em relação às empresas de outros países, as quais não estavam sujeitas a semelhantes limitações em sua atuação.
Impulsionado pelas investigações do caso Watergate, que culminou com a renúncia do presidente à época dos Estados Unidos, Richard Nixon, o Parlamento norte-americano promulgou o Foreign Corrupt Pratices Act (FCPA), em 1977, (UBALDO, 2017, p. 119), buscando combater práticas de corrupção que haviam se alastrado no setor privado, máxime o descobrimento, pela SEC (Securities Exchange Comission) que companhias norte-americanas estavam pagando milhões de dólares em propina, para corromper funcionários públicos estrangeiros. Ademais, as empresas estavam adulterando seus registros contábeis a fim ocultar estes pagamentos.
O FCPA, nesta senda, passou a permitir a responsabilização criminal das pessoas jurídicas de direito privado que integravam o lado da oferta da corrupção, comportando, inclusive, aplicação extraterritorial, às empresas estrangeiras que negociavam ações na bolsa de valores, nos Estados Unidos. (Código Federal dos Estados Unidos, Título 15. Comércio e Negociação, Cap. 2B: Bolsa de Valores, §78dd-2. Práticas comerciais de empreendimentos nacionais proibidas no exterior).
Instaurou-se, a partir de então, um incentivo concreto para que as empresas passassem a adotar medidas preventivas a fim de adequar-se às normas e regulamentos anti-suborno. Aliada aos escândalos públicos vindos do mercado financeiro, a nova legislação demonstrou que a regulação antitruste deveria se estender para além das fontes estatais, provindo dos próprios entes privados regulados, de modo que estes assumissem posições ativas na tutela de valores essenciais em sua atividade.
Tratava-se da necessidade de que, ademais das regulações estatais, as empresas promovessem regulações próprias (autorregulações), de aplicação interna, com o propósito de resguardar sua reputação e ativos contra eventuais desvios e episódios de corrupção, dando origem às políticas de compliance,
Brathwaite (apud VERÍSSIMO, 2017, p. 111) referia-se à autorregulação regulada enquanto estratégia para o enfrentamento da criminalidade do colarinho branco, levando em conta o fracasso do sistema de justiça e das regulações estatais para controlar as empresas. Ao contrário das regulações estatais, ela partiria da premissa segundo a qual a eficácia dos instrumentos de prevenção de fraudes depende da autovigilância interna.
O contexto é sumarizado por Carla Veríssimo, que vislumbra na promoção das regulações preventivas internas – por meio dos programas de compliance, uma espécie de reconhecimento do Estado quanto a sua incapacidade na contenção de fraudes contábeis e casos de corrupção, ensejando modalidades de controle social empresarial que ajudam o Estado em sua tarefa de controlar a criminalidade, senão vejamos:
[...] regulação estatal ou heterorregulação da economia, compatível com um intervencionismo do Estado de Bem-Estar. Nesse modelo, o Estado dirige a economia, quer explorando, diretamente, algumas atividades econômicas, quer controlando determinadas práticas comerciais. [...]. Por fim, em razão da incapacidade do Estado, na prática, em corrigir e prevenir, quer autonomamente, quer mediante intervenções diretas, as distorções socioeconômicas, passa-se a uma tentativa de equilíbrio. [...]. Na autorregulação regulada, o Estado renuncia aos monopólios dos mecanismos de regulação, adotando um sistema normativo misto, com a coexistência das normas emanadas dos poderes legislativo e executivo, às normas internacionais e as regras estabelecidas pelos próprios setores regulados. (VERÍSSIMO, 2017, p. 110).
Em suma, o paradigma da autorregulação regulada representa o formato de fiscalização transferido pelo Estado às organizações privadas, para que elas mesmas exerçam, através de programas preventivos internos, com o propósito de controlar as condutas de seus funcionários, e orientá-las à ética e honestidade. Aludida transferência é designada por Nieto Martín (2013, p. 133) como uma verdadeira privatização da luta contra a corrupção.
Em suma, o paradigma da autorregulação regulada representa o formato de fiscalização que o Estado transfere às organizações privadas para que elas mesmas exerçam, através de programas preventivos internos, com o propósito de controlar as condutas de seus funcionários, e orientá-las no sentido da ética.
Ao início do século XXI, novos escândalos de corrupção tomaram as manchetes nos Estados Unidos, envolvendo as multinacionais Enron e WorldCom. Reagindo a tais acontecimentos, o Congresso norte-americano promulgou, em 2002, o Sarbanes-Oxley Act, fortalecendo os deveres jurídicos relacionados aos programas de integridade.
Desde então, o compliance tomou relevância, ganhando contornos de um legítimo método anticorrupção mundialmente reconhecido e implementado. À giza de exemplo, em 2010, o Reino Unido, por intermédio do UK Bribery Act, passou a prever a responsabilidade das pessoas jurídicas, em um dispositivo específico referente à “falha da organização comercial em prevenir a corrupção” (Seção nº 6) (tradução nossa), estabelecendo, ainda, a possibilidade de redução sancionatória através da comprovação da eficácia de programa de conformidade em funcionamento. Mais recentemente, a Argentina, através da Ley 27.401/2017, também permitiu a responsabilidade penal das pessoas jurídicas por delitos de corrupção, bem como regulamentou os elementos mínimos do compliance naquele país erigindo os programas de compliance como condição prévia à possibilidade de contratação com o Estado (art. 22). Ainda, consoante Sieber e Engelhart (apud VERÍSSIMO, 2017, p. 93), em pesquisa realizada junto a empresas alemãs, verificou-se que os programas de conformidade são lugar-comum para a reputação corporativa das grandes empresas germânicas. Em 2013, o Brasil aderiu ao movimento de disseminação e promulgou a Lei nº 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, a qual será objeto de análise no capítulo adiante.
Segundo a Organização das Nações Unidas, fomentar a integridade e a governança corporativa, em um contexto anticorrupção, significa conduzir os negócios de forma que se evite corromper ou atuar de outra forma que menospreze a ética. (UNODC, 2013, p. 12).
Neste toar, são denominadas de compliance as medidas que permitem às empresas prevenir os riscos de infração às leis ou deveres de probidade por um funcionário ou qualquer um de seus colaboradores (CADE, 2016, p. 9). Em essência, segundo lição de Vanessa Manzi (2008, p. 15), o compliance é um substantivo (compliant) que significa o ato de cumprir (to comply), de estar em conformidade e executar regulamentos internos e externos, impostos às atividades da instituição, buscando reduzir o risco associado à reputação e ao interesse dos investidores, acionistas e demais stakeholders.
No tocante à funcionalidade, Carla Veríssimo (2017, p. 91) aponta que o compliance tem propósitos tanto preventivos, ao buscar a inibição de infrações legais em geral e a prevenção dos riscos legais e reputacionais aos quais a empresa está sujeita, quanto reativos, ao impor à empresa o dever de apurar as condutas ilícitas, bem como as que violam normas preestabelecidas, além de adotar medidas corretivas e entregar os resultados de investigações internas às autoridades, quando for o caso.
Vale salientar, no entanto, que o programa de conformidade não se presta a eliminar integralmente a possibilidade de ocorrência de fraudes ou corrupção no âmbito da organização, mas sim reduzir as chances de que estas intercorrências aconteçam de fato, além de criar mecanismos para que a empresa possa identificar com celeridade sua ocorrência e lidar com ela de forma mais adequada. (MENDES; CARVALHO, 2017, p. 31).
4. PROGRAMAS DE INTEGRIDADE NA LEI Nº 12.846/2013
Em vista da supracitada expansão global dos mecanismos de compliance nos sistemas jurídicos, as organizações internacionais começaram a pressionar países que ainda não havia adotado a sistemática de incentivo à adoção de programas de integridade. Notadamente em virtude da publicação, em dezembro de 1997, da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da OCDE, que em seu art. 2 conclamava aos Estados a tomada de medidas no sentido do estabelecimento da responsabilidade penal de pessoas jurídicas pela corrupção, houve significativa pressão para que o Brasil adotasse este modelo de punibilidade, a fim de incentivar as corporações à adoção do compliance.
Em 30 de novembro de 2000, o Estado brasileiro ratificou referida convenção através do Decreto nº 3.678/2000, comprometendo-se a seguir as orientações expressas no documento.
Subsequentemente, fora publicada a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, denominada Convenção de Mérida, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2013, prevendo recomendação semelhante quanto à responsabilidade das pessoas jurídicas (artigo 26), além de dispositivos concernentes à prevenção da corrupção no setor privado, remetendo diretamente aos programas de integridade. A convenção também foi objeto de ratificação pelo Brasil, por intermédio do Decreto nº 5.687/2006.
Neste contexto, afigurava-se, portanto, compromissória a implementação no Brasil de medidas legislativas que abordassem os programas de compliance, embora já houvesse disposições primitivas acerca do instituto na Lei nº 9.613/1998 (Lei de Lavagem de Capitais), ao exigir que determinadas pessoas jurídicas de direito privado que atuem no mercado financeiro adotem “políticas, procedimentos e controles internos” com vistas a adequar-se às regras sobre operações financeiras, sob pena de multa.
O nascimento normativo efetivo do compliance anticorrupção no Brasil, contudo, ocorreu apenas em 2013, com a promulgação da Lei nº 12.846/2013, batizada como Lei Anticorrupção, como reação típica das instâncias representativas às manifestações de rua que aconteceram em junho de 2013, cuja pauta centralizava a redução da corrupção e o fortalecimento ético do governo.
A denominada Lei Anticorrupção ocupou a lacuna normativa existente e dispor acerca da “responsabilidade objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira”, conforme o art. 1º, incidindo sobre as sociedade empresariais e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedade estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.
Na perspectiva de incentivos à adoção do compliance, a Lei nº 12.846/2013 seguiu a linha do soft law, porquanto não fixou consequências jurídicas negativas diretas para as empresas que escolham não implementar uma política de integridade e controle interno. Com efeito, a lei buscou criar estímulos negativos e positivos à aderência das companhias.
Na ótica negativa, a norma possibilitou a imputação objetiva de responsabilidade das pessoas jurídicas, ou seja, a despeito da presença de culpa latu sensu (dolo ou culpa strictu senso), pelas condutas elencadas no art. 5º, sujeitando-as às sanções estabelecidas no art. 6º, incisos I e II, na esfera administrativa e do art. 19, incisos I a IV, no âmbito judicial-civil, dentre as quais, inclusive, está a dissolução compulsória da pessoa jurídica (art. 19, IV e §1º). Neste ponto, Modesto Carvalhosa (2015, p. 33) afirma que o propósito real da Lei Anticorrupção foi instituir de forma velada a possibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica no Brasil, hipótese aceita pela jurisprudência apenas em relação aos crimes ambientais, com previsão na Lei nº 9.605/98, em virtude da texto-constitucional do art. 225, §3º, prevendo referida possibilidade.
Pelo lado dos incentivos positivos, a Lei nº 12.486/2013 trouxe, especificamente no art. 7º, incisos I a IX, circunstâncias que serão valoradas e atenuarão a responsabilidade da empresa na esfera administrativa, dentre elas, a “cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações” (inc. VII), e a “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (inc. VIII).
Com efeito, as pessoas jurídicas que não quisessem incorrer nas sanções previstas, ou que quisessem contar com a atenuante de responsabilização administrativa, poderiam implementar sistemas de compliance, a fim de prevenir ilicitudes. Os dispositivos legais, nesta medida, serviram como fatores de dissuasão, na medida em que, para a empresa, afigurar-se-ia mais cômodo e menos custoso a instalação destes programas, ao invés do eventual ônus de enfrentar um processo administrativo e judicial pela eventual prática de atos ilícitos. (PITRE, 2017, p. 209)
Consoante Carla Veríssimo (2017, p. 123), o inciso VIII constitui a correspondência jurídico-normativa dos programas de compliance no Brasil, cuja concepção alude justamente à existência de tais mecanismos de procedimentos internos de integridade.
O tratamento mais exaustivo do dispositivo, que sozinho não lograva clarear quais os elementos e rotinas comporiam um efetivo programa de integridade, ocorreu apenas em 2015, com a publicação do Decreto nº 8.420/2015, que regulamentou a Lei Anticorrupção e definiu o programa de integridade nos seguintes termos:
Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com o objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
Além de determinar que a hipótese do inc. VIII, do art. 7º, da Lei nº 12.846/2013, reduziria a multa administrativa em 1% a 4% (art. 18, inc. V), os arts. 41 e 42 do decreto, inseridos do capítulo IV, “do programa de integridade”, trouxeram delimitações objetivas e detalhadas sobre a implementação e os elementos dos sistemas de compliance, fornecendo padrões e orientações que servem como critério à avaliação de sua eficácia, para fins de aplicação da atenuante.
O ponto inicial, presente no parágrafo único do art. 41, diz respeito à avaliação de riscos, que, segundo escólio de Carla Veríssimo (2017, p. 277), constitui parte essencial de qualquer política de compliance. Diz o supramencionado artigo que: “o programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais de cada pessoa jurídica [...]” (grifou-se). Conforme preceitua a Organização das Nações Unidas, a avaliação de riscos anticorrupção compreende a:
Estimativa das vulnerabilidades e consequentes chances de que determinada pessoa jurídica experimente episódios de corrupção. [...]. A avaliação de riscos racionaliza o sistema de integridade, ao conceder-lhe substância e possibilitar a priorização de áreas operacionais onde a corrupção tem maior probabilidade de aflorar. (UNODC, 2013, p.9).
Dentre os outros aspectos, Flávia Ubaldo afirma que a análise de riscos orientar-se-á pelos seguintes aspectos:
A análise das áreas que já apresentaram problemas anteriormente, envolvendo eventual prática de oferta ou pagamento de suborno, solicitação de presentes, pagamento de multas, etc.; b) identificação de todas as situações, reais ou prováveis, de contato com servidores públicos ou de envolvimento direto ou por meio de prepostos com os diversos órgãos da administração pública; c) grau de dependência da empresa com capital e recursos públicos; d) reputação ou precedentes ocorridos no setor em que a empresa atua, em termos de ocorrência de corrupção; e) grau de exame de referências de integridade nas contratações de parceiros e colaboradores; f) eficiência dos controles internos que possibilitam verificar se as operações de pagamento, baixa de estoque, autorizações, etc. estão sendo feitas de forma correta. (UBALDO, 2017, p. 124).
Presente tal avaliação de riscos, designada pelo guia-prático sobre compliance das Nações Unidas (UNDOC) como uma forma de mapa indicativo de calor (risk-heat-map), o inciso I, do art. 42, do Decreto nº 8.420/2015, faz alusão ao comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa. Tal compromisso é fundamental e deve ser constante, pois se o tom definido pelo conselho e diretoria da empresa está alinhado à ética, os funcionários e demais envolvidos certamente inclinar-se-ão a defender os mesmos valores. Ao inverso, se a imagem que é transmitida pelas camadas superiores da companhia é de desprezo ético e endosso a práticas ilícitas, os empregados terão mais incentivo para proceder de modo semelhante, fraudando dados, e pagando propinas. (MENDES; CARVALHO, 2017, p. 129). Em vista disso é que a OCDE chamou este engajamento diretivo de “tom do topo” (tone from the top). (OECD, 2013, p. 16)
Os incisos II e III, por sua vez, tratam da elaboração de padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis tanto aos empregados, como aos administradores e terceiros. Em verdade, incumbirá ao código ético estabelecer quais serão os padrões de conduta permitidos e os que deverão ser repelidos internamente, além da eventual responsabilização perante a Lei Anticorrupção ou, ainda, o Código Penal. Em suma, o código constitui o regulamento específico que ilustra os valores da empresa, bem como os comportamentos esperados, por exemplo, em casos de conflito de interesses. (OECD, 2013, p. 18). Com vistas a consolidar o seu conteúdo no âmbito da organização, o Decreto faz referência à realização de treinamentos periódicos (inc. IV) e a instituição de estrutura interna específica e independente, para aplicação de seus dispositivos e avaliação geral do programa (inc. IX), geralmente chamado de Compliance Officer.
No tocante à extensão das regras do código a terceiros, convém salientar que a Lei nº 12.846/2013, alinhando-se ao padrão internacional sobre responsabilidade de terceiros (third party liability), estipulou que as sociedades controladoras, controladas, coligadas ou consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos na lei (art. 4º, §2º). Quer dizer, as relações interpessoais da pessoa jurídica poderiam acarretar a sua responsabilização solidária por atos ilícitos praticados por empresas coligadas. Tal circunstância enseja a necessidade de promover diligências na contratação e supervisão de terceiros, nos termos do art. 42, XIII e XIV, da Lei nº 12.846/2013, prática já amplamente conhecida no âmbito empresarial sob o nome de due diligence ou pela sigla KYC (Know your costumer)
Outros dispositivos fazem referência à instalação de procedimentos de prevenção e detecção de fraudes e corrupção no ambiente interno da pessoa jurídica. Mister destacar, neste sentido, o inc. X, que trata dos canais de denúncia de irregularidades e mecanismos destinados à proteção de denunciantes de boa-fé. Com pouco referencial teórico no Brasil, porém largamente conhecido e regulamentado nos países de origem anglo-saxã, o inciso em questão remete ao instituto do whistleblower ou, consoante designação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), “reportante”, para representar o indivíduo que espontaneamente relata às autoridades informações sobre um ilícito relacionado à corrupção, perpetrado no ambiente de trabalho. (ENCCLA, online).
Por fim, ciente de que a implementação dos programas de integridade envolve um pesado ônus financeiro às empresas, máxime a necessidade de estruturação, contratação de pessoal especializado e a promoção de módulos específicos de treinamento constante, o legislador flexibilizou o critério para avaliação da atenuante do art. 7º, VIII, da Lei nº 12.846/2013, com relação às microempresas e empresas de pequeno porte, determinando que não se exigirá delas o cumprimento dos incisos III, V, IX, X, XIV e XV do art. 42 do Decreto nº 8.420/2015.
Ainda, com o propósito de avaliar os programas de conformidade, a Controladoria-Geral da União (atual Ministério da Transparência) editou a Portaria nº 909/2015, estabelecendo outros critérios de análise do cumprimento dos requisitos elementares, bem como a previsão, no art. 5º, §2º, de que os programas de integridade meramente formais e que se mostrem absolutamente ineficazes para mitigar o risco de ocorrência de atos lesivos, não serão considerados para fins de aplicação da redução de que trata o art. 18, inc. V, do Decreto nº 8.420/2015.
Em que pese o transcurso de cinco anos desde a promulgação da lei anticorrupção, e três anos desde o Decreto nº 8.420/2015, a constituição dos programas de compliance, no Brasil, ainda é incipiente. Embora os parâmetros estejam mais claros e a conduta ética na realização dos negócios tenha se convertido em relevante fator competitivo no mercado, não é possível afirmar categoricamente que os procedimentos de integridade implementados são realmente eficazes. Inobstante isso, a edição da Lei nº 12.846/2013 revela o esforço para a criação de um novo modelo de negócios e de relacionamento da administração com o setor privado, em que os valores éticos fomentados pela organização passa a ter importância econômica.
5. CONCLUSÃO
Sabe-se que a corrupção constitui um problema não exclusivamente brasileiro, senão mundial, bem como multidimensional, haja vista apresentar uma série incomensurável de causas e consequências. Diante disso, buscou-se no presente artigo demonstrar a relevância dos programas de integridade, conhecidos na língua de origem como compliance, na prevenção e detecção da corrupção no âmbito das organizações privadas.
Bem assim, explorou-se, na primeira parte, aspectos teóricos sobre a corrupção e seus efeitos nocivos, precisamente o modo como ela atinge o Estado e a sociedade em termos financeiros, através de perdas patrimoniais consideráveis em virtude de desvios, bem como em termos sociais, por meio da deslegitimação e aumento da desconfiança nas instâncias representativas. Além disso, apresentou-se a capacidade da corrupção sistêmica de criar uma espécie de ciclo vicioso que tende ao equilíbrio, expelindo aqueles que se oponham a ela, em prejuízo da concorrência leal no mercado.
Em sequência, abordou-se a origem dos programas de integridade no contexto norte-americano, a partir do paradigma da autorregulação regulada, em que o Estado reconhece a sua incapacidade em coibir inteiramente a criminalidade do colarinho branco, transferindo às empresas, através de incentivos como a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica ou a atenuação de penas, a tarefa de implementar medidas preventivas internas, a fim de detectar e conter riscos de fraude e corrupção.
Por fim, examinou-se de forma específica o tratamento jurídico dos programas de conformidade na legislação brasileira, precisamente através da Lei nº 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, sancionada em reação aos protestos de junho de 2013, estabelecendo a responsabilização objetiva civil e administrativa das pessoas jurídicas, bem como a possibilidade de atenuação de eventual sanção pela demonstração do funcionamento do programa de integridade, conforme o art. 7º, VIII, cujos critérios foram mais densamente previstos a partir do Decreto nº 8.420/2015 e da Portaria-CGU nº 909/2015.
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Data da conclusão/última revisão: 1/5/2018
Gabriela Monteiro Luz Frois do Nascimento e Renato Godinho
Gabriela Monteiro Luz Frois do Nascimento: graduanda do curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins.
Orientador: Renato Godinho