A ética ambiental e a exploração mineral brasileira: entre a utilidade pública e o bem natural intocável
INTRODUÇÃO
A análise ora proposta parte da necessidade de definir a existência de um ponto legislativo e doutrinário que faça conciliar os interesses econômicos que envolvem a extração de minerais metálicos e os desejos sociais para a manutenção do ambiente natural intocável. Sinale-se que a abordagem envolvendo os minerais metálicos decorre dos elevados valores envolvendo esses tipos de minerais, bem como da conceituação – pela legislação e doutrina – de que estes minerais inserem-se na categoria de utilidade pública, o que autorizaria até mesmo a sua exploração em áreas de preservação ambiental.
Na busca pela definição da prevalência entre extração mineral e meio ambiente, iniciar-se-á o debate introduzindo os aspectos ambientais e principais teorias para a defesa do ambiente saudável, como um bem comum a todos, bem como o valor da biodiversidade para o ambiente como um todo (item 1). No item 2 é abordada a extração de minerais metálicos e como o tema é analisado pela legislação vigente. Em seguida, o item 3 destina-se a analisar norma e doutrina para verificar se a ética ambiental é capaz de determinar uma prevalência entre a preservação do meio ambiente sobre a extração mineral, ou vice-versa, bem como analisar a figura da justiça social nesse embate.
De fato, o questionamento acerca de onde se encontra o centro de massa entre a ecologia profunda e o desenvolvimento sustentável parece não ter resposta única expressa, ainda que tacitamente as diversas correntes que se apresentam entre a ecologia, economia e justiça socioambiental possam situá-lo dentro de suas teorias. E o que propõe este artigo certamente não será dar essa resposta, visto que se defende que – tratado sob a ótica do direito – jamais haverá uma resposta padrão e uma fórmula única para definir a prevalência do ambiente intocável ou da exploração mineral sob a forma de desenvolvimento sustentável.
A análise da legislação federal brasileira é instrumento que serve à todas as correntes, o que torna ainda mais difícil definir a o que deve prevalecer: ambiente ou economia? Utilidade pública ou o bem comum de todos? Onde se situa a ética no debate entre um ambiente intocável e o desenvolvimento sustentável? A análise proposta justifica-se em razão da importância em considerar a coexistência de dois direitos fundamentais que são aparentemente excludentes, e como a legislação brasileira deve agir para que ambos sejam respeitados e garantidos.
1 O MEIO AMBIENTE INTOCÁVEL: entre o culto à vida silvestre e a justiça ambiental
O entendimento da defesa do ambiente passa por diversas correntes, que iniciam com a visão do o culto à vida silvestre e a ética ecológica de Leopold (1989, p. 204) e espera-se seja transposto até a concepção abrangente de justiça ambiental, onde as defesa e proteção ao meio ambiente não desconsidere as “evidentes prioridades da luta contra a pobreza e a desigualdade social” (ACSELRAD, 2010. p. 103).
Sinale-se que ao tentar avaliar se há uma prevalência (ou hierarquia) entre a defesa de interesses ambientais (meio ambiente intocado) ou a outorga para extração mineral (interesse econômico), reconhece-se que o debate passa pela análise da valoração da biodiversidade, sob a ótica da biologia da conservação. Para tanto, o valor da biodiversidade é analisada conforme definição dada por Alho (2008. p. 1116) é importante considerar que a biodiversidade deve ser vista através de seu valor intrínseco – que a considera parte do mundo natural, com a conservação das espécies, recursos genéticos e ecossistemas, bem como sua importância para a manutenção dos processos ecológicos naturais; e de seu valor em serviços ecológicos, o que implica valores econômicos, estéticos e de lazer, o que lhe confere interesses antropocêntricos.
Necessário, no entanto, passar do debate acerca da proteção irrestrita ao ambiente natural e a importância da sua biodiversidade, que não se nega, para encontrar o ponto de equilíbrio para o desenvolvimento sustentável. A própria concepção de desenvolvimento sustentável já (ou novamente?) parece estar ameaçada pelos defensores do “degrowth” (LATOUCHE, 2009), que a partir da contribuição neomalthusiana reconhecem os benefícios da contenção no número de filhos por casal, diminuindo a progressão exponencial da população mundial (ALIER, 2011. p. 82), ou ainda pela defesa da necessidade de que o “decrescimento com prosperidade” venha substituir o “crescimento com colapso” (ODUM & ODUM, 2012. p. 379). Mesmo as concepções marxistas estão recebendo interpretações que admitem o ecologismo na produção (FOSTER, 2005, p. 219) ao reconhecer perturbações na interação metabólica entre o homem e a terra, o que impede sejam devolvidos ao solo aqueles elementos que o constituíam e foram absorvidos pelo homem.
Ao que se percebe, de fato é bastante difícil dissociar a ecologia da economia, o que parece correto visto que é imprescindível que não somente se projete as necessidades sociais como objetivos fundamentais, mas principalmente que seja possível estimar a quantidade de recursos tais necessidades, qual o tempo de sua renovação, e principalmente: as possibilidades de renovação. Sob a ótica de Odum & Barret (2014, p. 02) a palavra ecologia significa o estudo da casa, ou a “vida em casa”, cuja ênfase encontra-se no “padrão de relações entre organismos e seu ambiente”; economia tem a mesma raiz grega oikos, e poderia ser traduzida como “gerenciamento da casa”. Logo, concluem, ecologia e economia deveriam ser analisadas como disciplinas relacionadas, mas parecem que muitos ainda as consideram excludentes.
A economia ambiental vem interligar novamente a questão econômica e a ecológica, e na presente análise é importante considerar a abordagem da economia de recursos naturais defendida por Thomas & Callan (2012, p.15), cujo objetivo é a análise do fluxo de recursos da natureza em relação à atividade econômica. Trata-se de manter uma análise holística, que - conforme lição de Capra (1998, p. 23) implica compreender que os problemas ambientais não podem ser analisados de forma dissociada à economia e justiça social, dado que tais problemas são sistêmicos e interdependentes. Ou seja: tais valores são imprescindíveis para que se identifique o centro de massa para o equilíbrio entre o meio ambiente intocável e o desenvolvimento sustentável.
De fato, a norma constitucional brasileira traz essa interdependência entre economia e ambiente relacionada em seus artigos, conforme abaixo relatado no item 4. No entanto, importa aqui destacar fundamentalidade do conceito de meio ambiente, bem como a interpretação constitucional do tema. Segundo Silva (2004, p. 20) o ambiente apresenta-se como um conjunto de elementos naturais e culturais que interagem constituindo e condicionando o meio em que se vive. Deste modo, a expressão ‘meio ambiente’ é a completa definição de conjunto de elementos e o resultado de sua interação.
Por tal razão, a normatividade que se forma e se desenvolve em torno do fenômeno ambiental, trabalhando em sua sistematização e na busca de soluções possíveis para os diversos problemas apresentados faz emergir o meio ambiente como objeto de direito e com natureza específica de ordenação para a qualidade de vida. Um direito fundamental, nos termos do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), e cuja proteção abrange a preservação da natureza em todos os seus elementos, essenciais à vida humana e à manutenção do equilíbrio ecológico, tutelando o ambiente em função da qualidade de vida, como uma forma de direito fundamental da pessoa humana (SILVA, 2004. p. 36).
Desta forma, embora não esteja incluído no rol previsto no artigo 5º da CF/88, não há dúvida de que o direito a um meio ambiente sadio é reconhecido como direito fundamental constitucional (FREITAS, 2000. p. 25). Portanto, a qualidade do meio ambiente transformou-se num bem ou patrimônio, cuja preservação, recuperação ou revitalização se tornou num imperativo do poder público, para assegurar um boa qualidade de vida, que implica boas condições de trabalho, lazer, educação, saúde, segurança, enfim, boas condições de bem estar do homem e seu desenvolvimento.
2 A EXTRAÇÃO DE MINERAIS METÁLICOS E SUA UTILIDADE PÚBLICA PERANTE A LEGISLAÇÃO FEDERAL BRASILEIRA
A importância da atividade de extração de minerais metálicos é bastante evidenciada na legislação pátria, uma vez que sua condição de utilidade pública já estava expressa e federal desde 1941, quando o artigo 5º, alínea f inseriu a seguinte previsão normativa:
Art. 5º Consideram-se casos de utilidade pública: [...]
f) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica;
Passados mais de 45 anos da promulgação de referido Decreto-Lei e considerando a grande divulgação da defesa ambiental ocorrida com a Conferência de Estocolmo em 1972 (FREITAS, 2000. p. 25), em 1988 surge a Constituição Federal até agora vigente, e trouxe além dos aspectos ambientais os aspectos relacionados aos direitos minerários. Em seu artigo 176, parágrafo primeiro, a CF/88 normatizou a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais energéticos, os quais somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras. A partir daí foi possível o entendimento de que uma vez outorgada a lavra, a extração mineral configura interesse nacional e social, ou seja: utilidade pública.
Essa ideia de utilidade pública aos bens minerais metálicos voltou a ter determinação legal expressa com a edição da na Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Res. CONAMA – nº 369/06, que prevê até mesmo a possibilidade de exploração mineral em áreas de preservação permanente (APP), colocando-a lado a lado com atividades essenciais ao funcionamento do Estado e para o bem-estar da sociedade:
Art. 2º O órgão ambiental competente somente poderá autorizar a intervenção ou supressão de vegetação em APP, devidamente caracterizada e motivada mediante procedimento administrativo autônomo e prévio, e atendidos os requisitos previstos nesta resolução e noutras normas federais, estaduais e municipais aplicáveis, bem como no Plano Diretor, Zoneamento Ecológico-Econômico e Plano de Manejo das Unidades de Conservação, se existentes, nos seguintes casos:
I – utilidade pública:[...]
c) as atividades de pesquisa e extração de substâncias minerais, outorgadas pela autoridade competente, exceto areia, argila, saibro e cascalho;
Verifica-se, portanto, que a ideia de utilidade pública para a exploração mineral decorre do fato de que as substâncias integram o rol de bens da União, e portanto objeto de direito pessoal ou real da entidade pública (SILVA, 1999. p. 495). Por bens da União, entende-se aqueles relacionados no artigo 20 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), dentre os quais está arrolado no inciso IX os recursos minerais, inclusive os do subsolo. Oliveira (2005, p. 624) destaca que embora os recursos minerais integrem o rol de bens federais, “o produto da lavra é desafetado do patrimônio da União pelo efeito do trabalho do minerador”.
Ou seja: embora os recursos minerais existentes na jazida sejam de domínio da União, o produto da lavra passa à propriedade privada com sua extração, conforme artigo 176, § 2º da Constituição Federal. Em decorrência, relata Oliveira (2005, p. 624) que é “fora de discussão que a União é proprietária das jazidas minerais e está em sua exclusiva competência a legislação sobre a matéria”, de modo que são federais tanto os poderes normativos/legislativos quanto os poderes executivos relacionados à exploração mineral.
Estabelece o artigo 22 (CF/88) que a União possui competência privativa para legislar acerca de jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia (inciso XII), o que se justifica ante o fato de tais bens constituírem bens da União, ou seja: trata-se de interesse privativo da própria União a elaboração de leis acerca de seu patrimônio mineral. No entanto, o artigo 23 (CF/88) determina que o registro, acompanhamento e fiscalização das concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais (inciso XI) é de competência comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Por essa razão, todo o procedimento para o licenciamento (exploração de minérios in natura) ou de atividades de extração e beneficiamento está sujeito a regras e normas específicas, regulamentadas pela legislação constitucional e infraconstitucional.
Apesar de revestida de evidente interesse nacional, a reserva de tais competências à União não é absoluta (LEITE et. al., 2012. p.239), de modo que – de acordo com o parágrafo único do artigo 22 da CF/88 – os Estados também poderão legislar sobres questões específicas das matérias relacionadas, desde que haja lei complementar neste sentido. De se destacar ainda a previsão do artigo 23 da CF/88, onde há regulamentação acerca das competências para a proteção dos bens ambientais, aí incluídos os recursos minerais, no entanto, esta importante norma constitucional será analisada no item destinado à competência fiscalizatória, uma vez que se entende seja diretamente relacionada à proteção ambiental.
As características da exploração mineral – aí considerados: a utilidade pública dos minerais metálicos, os impactos negativos significativos ao ambiente, e a vigência de concessão de lavra até que esgotada economicamente a jazida – geram significativos receios quanto a degradação excessiva do ambiente e até mesmo a não reparação dos danos decorrentes. Esse é justamente o ponto de conflito para a análise da extração mineral sob a ótica da economia de recursos naturais: estabelecer os limites entre a preservação ambiental e a exploração econômica sustentável.
Todo o procedimento exigido para o licenciamento ambiental do empreendimento visa minimizar impactos decorrentes de uma atividade julgada essencial à sobrevivência da sociedade. É certo que a utilização de processos de produção mais limpa, ecoeficiência, reaproveitamento e correta gestão dos resíduos podem diminuir os impactos negativos e consequentemente diminuir os processos de recuperação das áreas degradadas. No entanto, a ocorrência de impactos negativos é evidente, e sua mitigação – através do competente licenciamento – é necessária à reabilitação da área impactada, o que só será atingido com eficaz fiscalização quanto ao cumprimento do projeto de recuperação.
3 ÉTICA AMBIENTAL: UTILIDADE PÚBLICA VERSUS MEIO AMBIENTE INTOCÁVEL
A Constituição Federal de 1988 recepcionou os princípios da legislação ambiental então vigente (PNMA – Lei 6.938/1981), no entanto acrescentou uma ampla gama de direitos individuais e sociais, o que torna a interpretação constitucional muito mais abrangente. Com a percepção de que quaisquer danos causados ao meio ambiente afetam diretamente à coletividade, passou-se a necessidade de ampliar a garantia à esse bem, passando a considerá-lo no rol dos direito fundamentais (OLIVEIRA, 2005. p. 07). Encontra-se, assim, um embate entre um direito fundamental (meio ambiente sadio) e a utilidade pública (extração de minerais metálicos). Resta saber se é possível invocar a prevalência de um direito sobre o outro, e se há como situar a justiça socioambiental entre os dois direitos.
A concepção das externalidades ambientais negativas nos empreendimentos em outorga de lavra de minerais metálicos é bem definida através do posicionamento defendido por Derani (2008, p. 142), ao defender que “durante o processo produtivo, além do produto a ser comercializado, são produzidas ‘externalidades negativas”. Essa ideia de externalidade possui significativa importância quando se trata de avaliar os impactos ambientais e sociais, bem como determinar a prevalência entre os interesses de todos os envolvidos direta e indiretamente naquele processo. Necessário observar que os impactos negativos de um empreendimento são absorvido por toda a sociedade, direta ou indiretamente, o que recai na expressão que traduz exatamente o contexto abordado neste artigo: ‘privatização dos lucros e socialização das perdas’ (DERANI, 2008. p. 143).
Importante ressaltar a importância de avaliar a extensão e abrangência dos danos e impactos decorrentes do licenciamento de empreendimentos potencialmente causadores de degradação ambiental, como no caso de outorga de lavra de exploração de minerais metálicos. É certo que há um processo onde os custos decorrentes da degradação ambiental, cultural e social são convertidos em custo econômico e político (LEFF, 2000. p.96).
No entanto, em que pese o entendimento defendido por Leff de que as diversidades ecológica e cultural não constituem somente princípios éticos, mas que devem ser vistos como “valores não mercantilizáveis”, há uma dualidade evidente. É justamente o fato de constituírem potenciais produtivos e integrarem o sistema de recursos naturais, culturais e tecnológicos que autoriza sejam efetivamente considerados para fins de composição da quantificação do grau de impacto e valoração tanto ambiental quanto econômica.
Verifica-se que a questão da ética ambiental para definir uma prevalência entre a utilidade pública da extração mineral e a natureza intocada cinge-se ao ideal social, ou – em outras palavras – na forma como a sociedade percebe suas necessidades, e até que ponto estão dispostas à realizar uma “colaboração recíproca” (RAWLS, 2000). Na definição de Rawls a sociedade é a própria reunião de cooperações, objetivando vantagens mútuas mas com interesses individualizados. Essa divisão entre vantagens e interesses é capaz de responder ao dilema ambiental e sua relação com a mineração de modo que coexistam de modo atender ao ideal de ética ambiental?
Para Platão e Aristóteles, a prevalência do humano e de sua suposta superioridade em relação à natureza ganha maior consistência (GONÇALVEZ, 1990). Para Aristóteles (384-322 a.C.), cujo ideal foi revisitado por Tomás de Aquino (1225-1274), “o homem está no vértice de uma pirâmide natural, em que os minerais (na base) servem aos vegetais, os vegetais servem aos animais que, por sua vez, e em conjunto com os demais seres, servem ao homem” (MILARÉ & COIMBRA, 2004).
Assim, o embate entre o utilitarismo da exploração mineral e o ambiente inctocável pode ser percebido na mesma dualidade existente entre a liberdade humana para cuidar dos outros seres, ao mesmo tempo em que é dependente dos outros seres. Somente o homem apresenta essa dupla condição, com deveres e obrigações, dividido entre o ‘ser livre’ e ‘dependente’ (BALLESTEROS, 1995). Verifica-se, portanto, que a principal função da ética ambiental para o ecocentrismo reside na consciência do ser humano em saber que proteger a natureza é proteger a si mesmo.
O embate acerca da necessidade, ou utilidade, da exploração ambiental e a necessidade de preservação ambiental reside justamente no entendimento da ética ambiental, , de modo que entender um homem superior ao resto da criação só se justifica por considerar que ele é o responsável pela preservação, cuidado e administração do ambiente, sabendo que ao cuidar do entorno está cuidando de si mesmo (BALLESTEROS, 1995)
Deste modo, a escolha que a sociedade deve fazer entre a exploração ou a manutenção do ambiente intocável reside em seu senso de ética e de justiça, conforme define Rawls (2000):
Para assegurar a estabilidade, os homens devem ter um senso de justiça ou uma preocupação com aqueles que seriam prejudicados pela sua traição, ou, de preferência, ambas as coisas. Quando esses sentimentos [sentiments] são fortes o suficiente para superar as tentações de violar as regras, os esquemas justos são estáveis. Cada pessoa passa agora a considerar que cumprir com os deveres e obrigações é a resposta correta às ações dos outros. Nossos planos racionais de vida regulados por nosso senso de justiça levam a essa conclusão.
Tratando da análise constitucional do tema, é necessário analisar a questão da utilidade pública dos minerais metálicos em sua importância (utilidade) economia. Essa abordagem se justifica uma vez que o ferro, zinco, alumínio, cobre, entre outros minerais metálicos, podem – e devem sim ser concebidos sob o enfoque da utilidade econômica, visto que recursos essenciais ao desenvolvimento das sociedades sob a forma de tecnologias, insumos, entre outros. No entanto, quando tratamos do ouro, da prata e até mesmo do diamante em gema (embora mineral não metálico, também está incluído como utilidade pública no rol da Res. CONAMA – nº 369/06, artigo 2º, inciso I, alínea c), é possível definir que sua maior utilidade está inserida na sociedade de consumo.
Uma interpretação possível, em analogia às lições de Zygmunt Bauman em Vida para Consumo (2008), seria definir que o ferro, alumínio, zinco, cobre estão para a sociedade de produtores; tanto quanto o ouro, a prata e o diamante estão para a sociedade de consumidores. No entanto, a ideia da utilidade dos minerais deve ser vista sob a ótica de Mill (2014, p. 183), seguindo a moralidade utilitarista: ou seja, reconhecendo nos humanos o poder de sacrificarem seu próprio maior bem (ambiente) pelo bem dos outros (utilidade/necessidade dos minerais).
Mas a ideia de juntar utilidade – aqui entendida de forma conjunta: economia e consumo – e ambiente não é nenhuma inovação, afinal a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 170, inciso VI, reconhece que a ordem econômica tem como um de seus princípios a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”. Também ao tratar da função social da propriedade, em seu artigo 186, a CF/88 reconhece que um dos seus requisitos é a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (inciso II).
Em seu artigo destinado ao meio ambiente (artigo 225) a Constituição Federal caracteriza que o meio ambiente é considerado um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, o que impõe a conclusão de que o ambiente é um direito fundamental (ANTUNES, 2011. p. 17), nos termos já expostos no item 1 acima. Assim, a utilização dos princípios do desenvolvimento sustentável na exploração da natureza, seria uma forma de conciliar a necessidade de um desenvolvimento econômico com a preservação do meio ambiente.
Necessário, portanto, analisar as condições sob as quais o ambiente pode ser protegido dos riscos, e de que forma essas condições devem ser estabelecidas (LEITE & AYALA, 2004, p. 03). Mesmo considerando a lesão ambiental decorrente da extração mineral, cabe à atual sociedade de riscos a proteção do meio ambiente em responsabilidade solidária, concretizada através a dissolução de obrigações entre entidades públicas e sociedade civil, configurando o agir integrativo da administração (LEITE & FERREIRA, 2012).
Esse confronto de posições, resoluções e efetivas normas constitucionais evidencia que os acalorados debates entre ambientalistas e empresas de lavra de minérios vão muito além dos conflitos e divergências de entendimentos sociais. No presente caso, estando diante de dois direitos garantidos constitucionalmente – meio ambiente sadio e exploração de minerais de utilidade pública – é certo que deve prevalecer a democracia que possibilite o exercício da justiça socioambientais. Para ser democrático, o direito deve ser pluralista e ‘inclusivo da multiplicidade de formações culturais, doutrinas morais e convicções pessoais’ (MÖLLER, 2009, p. 45), de modo que a normatização decorrente venha a atender os anseios da sociedade.
Se não se pode afirmar a existência de hierarquia entra as normas constitucional que garante a exploração mineral em igual importância com o meio ambiente sadio, então a resposta sobre a prevalência de um sobre o outro parece estar, mais uma vez, na lição de Mill (2014, p. 183) que ainda com objeto de análise diverso, aplica-se com maestria à discussão proposta:
Quem escolherá entre estes apelos a princípios de justiça contraditórios? Neste caso a justiça tem dois lados, sendo impossível harmonizá-los, e os dois disputadores escolheram lados opostos – um olha para aquilo que é justo que o indivíduo receba; o outro, para aquilo que é justo que a comunidade lhe dê. Cada um, do seu respectivo ponto de vista, é irrefutável, e qualquer opção por um deles, baseada na justiça, tem de ser perfeitamente arbitrária. Só a utilidade social pode decidir a prioridade.
Neste ponto necessário ressaltar a importância da educação e do acesso à informação, como ferramentas necessárias à correta interpretação e compreensão dos dilemas éticos, vantagens e desvantagens da análise normativa que se deseja aplicar, com vistas a atender o disposto no artigo 193 da Constituição Federal: “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. Entende-se que referido artigo constitucional deve ser o norteador de qualquer embate envolvendo economia, consumo e ambiente.
CONCLUSÃO
Enxergar o ambiente e a extração mineral sob a ótica do utilitarismo pode ser uma saída coerente na interpretação das normas brasileiras ora apresentadas. De fato, o embate entre a extração mineral e a manutenção do ambiente intocável é um tema que gera frequentes conflitos socioambientais no Brasil. Somente em uma análise simples no “Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e Saúde no Brasil”, divulgado pela FIOCRUZ (2015), na busca com o termo mineração são retornados 114 focos de conflito no Brasil. Ou seja: muitas das decisões que autorizam novas áreas de mineração levando em conta tão somente aspectos econômicos ou de puro e simples consumismo, não levam em conta os impactos sociais decorrentes dessas autorizações.
Não se defende que a mineração venha se sobrepor ao ambiente, e tampouco o oposto. O que se busca é que na balança entre um direito fundamental e uma utilidade pública o que prepondere seja o interesse social. Trata-se muito mais de buscar o equilíbrio necessário entre os pilares da sustentabilidade (social, ambiental e econômico), e para tanto é essencial que se mantenha a exploração mineral em níveis necessários a suprir as demandas, mas que as áreas impactadas sejam efetivamente reabilitadas, com o devido cumprimento dos procedimentos e requisitos legais de reparação das áreas, a teor do licenciamento ambiental que precede a explotação do minério.
Há que se considerar que a noção de ambiente ecologicamente equilibrado, tal como conceituado no artigo 225 da Constituição Federal, necessita ser analisado de forma sistemática e holística, de modo que qualquer alteração ecológica afasta a percepção de justiça social, vez que compromete o ambiente para gerações presentes e futuras. Ademais, ainda que a normatividade federal se mantenha – por vezes – inerte no tempo e principalmente em sua necessária abordagem socioeconômica, é dever da própria sociedade, diretamente, por associações, pelo Ministério Público ou por seus representantes políticos, buscar que se retome o equilíbrio entre sustentabilidade e desenvolvimento. E, para tal retomada, não há dúvida de que o alargamento da competência fiscalizatória ao dever comum para a proteção do ambiente é medida de justiça ambiental que deve ser resguardada.
REFERÊNCIAS
ACSELRAD. Henri. ‘Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental’. Revista Estudos Avançados. São Paulo: USP, 2010. p. 103-119.
ALHO, CJR. The value of biodiversity. Brazilian Journal of Biology, vol. 68 no. 4. São Carlos Nov. 2008, p. 1115-1118.
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 13.ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011.
BALLESTEROS, Jesús. Ecologismo Personalista. Madri: Tecno, 1995.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de janeiro: Zahar, 2008.
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1998.
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2 ed. São Paulo: Max Limonad, 2008.
LEFF, Enrique. Ecologia, Capital e Cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Blumenau: Edifurb, 2000.
FIOCRUZ. Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e Saúde no Brasil. Disponível em: . Acesso em 22 jun.2017.
FOSTER, John Bellamy, A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e as Normas Ambientais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1990.
LATOUCHE, Serge. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: Editora WMF, 2009.
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito ambiental na sociedade de risco. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
LEITE, José Rubens Morato; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
LEITE, José Rubens Morato; FERREIRA, Heline Sivini; CAETANO, Matheus Almeida. Repensando o estado de direito ambiental. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012.
LEOPOLD A. A Sand County Almanac, and sketches here and there. New York: Oxford, 1989.
MARTÍNEZ ALIER, Joan. O ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2011.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27.ed. São Paulo: Malheiros, 2002
MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de direito ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, out./dez. 2004.
MILL, John Stuart. Utilitarismo. São Paulo: Hunter Books, 2014.
MÖLLER, Letícia Ludwig. Esperança e responsabilidade: os rumos da bioética e do direito diante do progresso da ciência. In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia L. (orgs.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 23-53.
ODUM, Eugene P.; BARRETT, Gary W. Fundamentos de Ecologia. Trad. 5.ed. norte- americana. São Paulo: Cengage Learning, 2007.
ODUM, Howard T.; ODUM, Elisabeth C. O declínio próspero: princípios e políticas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à legislação ambiental brasileira e licenciamento ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SILVA, Antônio Soares da; BOTELHO, Rosangela Garrido Machado. Degradação dos solos no Estado do Rio de Janeiro. In: GUERRA, Antônio José Teixeira; JORGE, Maria do Carmo Oliveira. (org.). Degradação dos solos no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16.ed. São Paulo: -Malheiros, 1999.
______. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
THOMAS, Janet M.; CALLAN Scott J. Economia ambiental: aplicações, política e teoria. São Paulo: Cengage Learning, 2012.
Data da conclusão/última revisão:15/11/2017
Rosana Gomes da Rosa
Mestre em Direito e Justiça Social (Universidade Federal do Rio Grande); Especialista em Direito Ambiental (Universidade Federal de Pelotas); Especialista em Engenharia Ambiental (Universidade Cândido Mendes)