A toponímia da Serra do Gandarela

O século XXI, utopicamente denominado de “Nova Era” traz novas perspectivas de análise do homem e de sua relação com o meio. Assim natureza, patrimônio e identidade estão cada vez mais sendo abordados teoricamente na perspectiva da interdisciplinaridade. Nas perspectivas teóricas da Fenomenologia e do Existencialismo existem múltiplas relações subjetivas entre as categorias de natureza, patrimônio e identidade. Numa discussão mais ampla e complexa existem lugares, simples recantos da natureza, que assumem identidade a partir de histórias pessoais e coletivas. Essa identidade produzida pelos homens confere aos lugares status de alma, ampliando sentidos e significados. A região da serra do Gandarela na parte leste da Grande Belo Horizonte é um desses lugares que associam paisagens e recantos naturais às condições existenciais e culturais dos agrupamentos humanos criando conexões de alma e essência. E dentro desta ampla questão de aparatos culturais e existenciais dado aos lugares e paisagens pelo homem encontra-se a Toponímia. Um importante estudo nesta área no Brasil foi o trabalho intitulado “A toponímia como construção histórico-cultural: o exemplo dos municípios do Ceará” escrito por Jörn Seemann, Professor do Departamento de Geociências da Universidade Regional do Cariri (URCA) e que motivou e referenciou vários outros trabalhos nesta área. Para Seemann (2005, p. 209):

Como os nomes próprios de pessoas, o batismo dos lugares depende muito dos critérios do observador que decide o que tem destaque ou não na paisagem e o que merece menção. Segundo a Encyclopaedia Britannica (1964, p. 63D[1]), denominar um lugar geográfico depende de dois fatores: a) o sentimento que um lugar é uma entidade que possui uma individualidade que a distingue de outros lugares; e b) a sensação de que um lugar é útil e vale a pena ser denominado. Em resumo, o que é efêmero, “comum” demais ou igual a outros lugares não valeria a pena ser registrado.

Essas observações se referem às sociedades sedentárias, principalmente às “ocidentais” que precisam ter uma “toponímia fixa” (Claval, 2001, p. 201[2]). Portanto, nem todas as sociedades precisam nomear os seus lugares, como foi mostrado por Collignon (1996[3]) através do exemplo de um grupo inuit (esquimó) no Canadá que, em vez de mapear os vastos espaços do Ártico,

“fotografa” os detalhes do espaço no espírito, atrelando-os à memória das pessoas. Dessa maneira, a denominação dos lugares não é uma referência (d)escrita, mas se confunde com a percepção e a história de vida das pessoas. Rundstrom (1990[4]) também afirma que povos como os inuit apenas começaram a confeccionar mapas a pedido dos ingleses na metade do século XIX e não por necessidade própria:

Nascida na metade do século XIX, a onomástica (do grego antigo, ato de nomear, dar nome) considerada uma parte da lingüística, é o estudo dos nomes próprios de todos os gêneros, das suas origens e dos processos de denominação no âmbito de uma ou mais línguas ou dialetos. Dividindo-se em Toponímia e Antroponímia apresenta fortes ligações com outras áreas da ciência como a História e a Geografia. A Toponímia, palavra formada a partir da junção dos termos gregos tópos que significa lugar, e ónoma, que significa nome, estuda os nomes próprios dos lugares, sua origem e evolução. Além dos nomes das mais diversas localidades como cidades, municípios, países, províncias, vilas, a toponímia estuda os hidrônimos (nomes de rios e outros cursos d`água), os limnônimos (nomes de lagos), os orônimos (nomes dos montes e outros relevos), os corônimos (nomes de subdivisões administrativas e de estradas), entre muitos outros. Já a antroponímia é o estudo dos nomes próprios das pessoas, sejam prenomes ou apelidos de família, e que tem grande relevância para a história política, cultural, das instituições e das mentalidades. O Regulamento Municipal de Toponímia e Numeração de Polícia do Município de Estarreja em Portugal (2012, p. 02) atesta que:

Para além do seu significado e importância como elemento de identificação, orientação, comunicação e localização dos imóveis urbanos e rústicos, a toponímia é também, enquanto área de intervenção tradicional do poder local, reveladora da forma como o município encara o património cultural.

A toponímia representa um eficiente sistema de referenciação geográfica que o homem necessita e que utiliza para localizar as actividades e os eventos no território. As designações toponímicas devem ser estáveis não devendo ser influenciadas por critérios subjectivos ou factores de circunstância.

A toponímia pode-se dizer que nasce do processo de ligação, conexão e identidade do homem com seu lugar e do entendimento da paisagem enquanto patrimônio e eixo modelador de histórias pessoais e coletivas. E em todos os cantos da Terra, a toponímia confere unicidade aos lugares tecendo múltiplas redes de sentimentos, significados e histórias materializando e humanizando recantos, tornando-os cantos e encantos da existência humana. Então que tal enveredar-se pelos cantos, recantos e encantos da Serra do Gandarela, na Grande Belo Horizonte? A síntese etimológica da palavra Gandarela deriva do termo gândara, que significa "terreno arenoso". Esta toponímia origina-se historicamente da Península Ibérica e há relatos de sua ocorrência em diferentes regiões como a Galiza, por exemplo. A toponímia Gandarela foi dada inicialmente à área, por portugueses oriundos de uma região portuguesa que certamente ao visualizarem o relevo lembraram-se de sua terra natal. Desta palavra tem-se a variante “Gandra” utilizada como sobrenome para delegar uma tradicional família e registram-se muitos outros derivados dentre os quais: Gandaiada, Gandarinha e Gandarinho. Aqui no Brasil, Gandarela é uma das regiões ecológicas mais ameaçadas pela mineração irresponsável e arbitrária. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (s/d, p. 02) destaca que:

A proposta de criação do PARNA[5] da Serra do Gandarela fica em Minas Gerais, na região conhecida como “Quadrilátero Ferrífero”. Inclui partes dos municípios de Barão de Cocais, Caeté, Itabirito, Nova Lima, Ouro Preto, Raposos, Rio Acima e Santa Bárbara, num total de 35.200 hectares. Foi escolhida a categoria “Parque Nacional” porque, além de proteger recursos naturais muito importantes, como águas, flora e fauna, o local tem grande beleza e grande quantidade de atrativos para o turismo, como cachoeiras, mirantes e trilhas para caminhadas e outras atividades em contato com a natureza. Na região do Gandarela estão as últimas áreas bem conservadas de cangas[6], que são um tipo de solo onde há plantas que não existem em nenhum outro local. As cangas são muito importantes também para alimentar as nascentes de água, porque a água da chuva que cai nelas escoa bem devagar para dentro das rochas, formando os “aquíferos” que mantêm os rios mesmo na estação seca. No Quadrilátero Ferrífero existe uma tradição de mineração, porque realmente há muito minério, sempre embaixo das cangas. É por isso que é importante que as últimas cangas da região não sejam destruídas. Mesmo que no primeiro momento se perca algum dinheiro, que viria do minério, a riqueza das águas e do turismo é para sempre, para os filhos, netos e bisnetos de quem hoje vai decidir o que fazer com a Serra do Gandarela.

Em Portugal, Gandarela, é uma antiga freguesia portuguesa do concelho de Guimarães, com 1,71 km² de área territorial e cota populacional de 1.074 habitantes (dados de 2011). Tradicionalmente foi sede de uma freguesia extinta em 2013, após uma reforma administrativa nacional, para formar, em conjunto com Conde (nova sede), a freguesia de União das Freguesias de Conde e Gandarela. No Brasil parece não haver registros de outra localidade homônima, dando à localidade mineira do Quadrilátero Ferrífero a exclusividade de se chamar Gandarela. Mas a exclusividade não fica somente no nome, expandindo-se na magnitude das paisagens naturais e das culturas locais. Certamente, um dos últimos redutos da chamada “mineiridade” e que precisa efetivamente ser preservado para a posteridade. Marent, Lamounier & Gontijo (2011, p. 102) afirmam que:

No Brasil, a valorização da biodiversidade, em muitas situações, é deixada em segundo plano, em função das necessidades de um avanço econômico. Os problemas da degradação ambiental estão relacionados com a ausência de um planejamento da ocupação da terra. Minas Gerais, de acordo com Drumonnd et al. (2005[7]), é um retrato da ocupação desordenada e pouco preocupada com a preservação e a conservação ambiental. O efeito de suas atividades agropecuárias, da expansão urbana, produção mineral, matérias-primas e insumos de origem vegetal são um exemplo disto. No Quadrilátero Ferrífero, os impactos ambientais deixados pela mineração vêm alertando a população e aumentando gradativamente sua preocupação com relação à preservação ambiental (CURI, 2002[8]). O Quadrilátero Ferrífero-MG, localizado na porção central de Minas Gerais , se destaca no contexto nacional e internacional por sua grande produção mineral. As atividades de exploração mineral nessa região foram iniciadas com a extração do ouro em meados do século XVII. Atualmente, além de abrigar grandes minerações de ferro e ouro, estão presentes vários empreendimentos de mineração que exploram jazidas de outros tipos de rochas e minerais como, por exemplo, topázio e bauxita. Além disso, vêm se destacando na região também a grande presença de empreendimentos imobiliários (LAMOUNIER, 2009[9]). Estudos apontando o Quadrilátero Ferrífero como de grande importância ecológica surgiram ao mesmo tempo em que diversos conflitos econômicos e ambientais. Um exemplo foi o embate ocorrido no Monumento Natural da Serra da Piedade, que durante anos foi palco de discussões entre proteção ambiental e mineração, pois seus limites definidos por lei não estavam sendo respeitados. Em 2007, também, houve a tentativa de redução da área do Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, representada pela mineração e ocupação de loteamentos urbanos (OLIVEIRA, 2008[10]).

É preciso ver o Quadrilátero Ferrífero com outros olhos, entendendo-o como uma excelente unidade espacial a ser preservada e utilizada como instrumento pedagógico. Suas paisagens longe de serem apenas minério-de-ferro, manganês e ouro, são história geológica e local favorável ao estudo do meio através da leitura de paisagens. Assim sendo, a importância da preservação das paisagens da Serra do Gandarela justifica-se pela preservação de aspectos abióticos (geologia, geomorfologia, recursos hídricos e microclima), aspectos bióticos (fauna, flora, biodiversidade e endemismo) e aspectos antrópicos (história, patrimônio, memória e oralidade) que contribuem para a unicidade do Quadrilátero Ferrífero no que se refere à particularidade de sua ecologia, cultura e sociedade, criando uma nova identidade dentro do paradigma vigente. Portanto, um movimento amplo de estudiosos e de toda uma sociedade se une na defesa de um território inigualável com múltiplas potencialidades pedagógicas para contemplação e o estudo da natureza, do patrimônio e das identidades locais. Assim a sua transformação em Parque Nacional evidenciada a partir de movimentos sociais fica ainda mais autentica devido à legitimidade teórica de sua conservação através de diferentes perspectivas como a ecologia, a geografia e a história. Que Minas Gerais preserve o Gandarela e sua toponímia se efetive e se eternize como modelo universal de defesa dos elementos naturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. PROPOSTA DE CRIAÇÃO DO PARQUE NACIONAL DA SERRA DO GANDARELA - MG: informações para as consultas públicas. Disponível em . Acesso em 26. Jan. 2018

MARENT B.R., LAMOUNIER W.L., GONTIJO B.M. (2011) Conflitos ambientais na Serra do Gandarela, Quadrilátero Ferrífero-MG: mineração x preservação. Geografias 7(1): 99–113

MUNICÍPIO DE ESTARREJA – PORTUGAL. Regulamento Municipal de Toponímia e Numeração de Polícia (2012). Disponível em . Acesso em 26. Jan. 2018

REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei federal nº 9985 de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II III e IV da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências, 2000. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9985.htm>. Acesso em 26. Jan. 2018

SEEMANN, J. A Toponímia como construção histórico-cultural: o exemplo dos municípios do estado do Ceará. Vivência. Nº 29, 2005, p. 207-224.

[1] ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. v.16. (Verbete “Name (in linguistics)”, “Place names”), p.63D-66. Chicago: William Benton Publ., 1964.

[2] CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural. 2ª edição. Florianópolis: EdUFSC, 2001.

[3] COLLIGNON, Béatrice. Les Inuit: ce qu´il savent du territoire. Paris: L´Harmattan, 1996

[4] RUNDSTROM, Robert. A cultural interpretation of Inuit map accuracy. Geographical Review, v.80, 155-168, 1990.

[5] lei no 9.985, de 18 de julho de 2000. (Vide Decreto nº 4.519, de 2002) Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências Art. 11. O Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.

§ 1o O Parque Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.

§ 2o A visitação pública está sujeita às normas e restrições estabelecidas no Plano de Manejo da unidade, às normas estabelecidas pelo órgão responsável por sua administração, e àquelas previstas em regulamento.

§ 3o A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade e está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.

§ 4o As unidades dessa categoria, quando criadas pelo Estado ou Município, serão denominadas, respectivamente, Parque Estadual e Parque Natural Municipal.

[6] Termo brasileiro significando: 1) brecha ferruginosa de formação superficial, constituída de fragmentos de hematita compacta, ou de placas de itabirito alterado, cimentados por goethita. Distinguem-se as cangas hematíticas, com 62 a 66% de ferro, e as cangas limoníticas, com 55 a 62% de Fe .2) Rocha limonítica formada pela concentração superficial ou subsuperficial de hidróxido de ferro migrado das rochas subjacentes, com 45 a 55% de Fe. Fonte: http://www.mineropar.pr.gov.br/modules/glossario/conteudo.php?conteudo=C

[7] DRUMMOND, G. M.; MARTINS, C. S.; MACHADO, A. B. M.; SEBAIO, F. A. e ANTONINI, Y. (org.). Biodiversidade em Minas Gerais: Um Atlas para sua Conservação. Belo Horizonte: Fundação Biodiversitas, 222p., 2005.

[8] CURI, A. Análise Qualitativa da Sustentabilidade Ambiental da Mineração: Mito e Realidade. In: Villas Bôas, R. & C. Beinhoff (eds). Indicadores de Sostentabilidad para la Industria Extractiva Mineral. Rio de Janeiro: CNPq/ CYTED, 2002. p. 41-67.

[9] LAMOUNIER, W. M. Patrimônio natural da Serra do Gandarela e seu entorno: análise ambiental como subsídio para a criação de unidades de conservação no Quadrilátero Ferrífero – Minas Gerais. Dissertação (UFMG), 148 p. 2009.

[10] OLIVEIRA, M.B. Por entre as Serra do Rola-Moça: conflitos e preservação ambiental. Sinapse Ambiental, edição especial, p.87-94, 2008.

 

 

Elaborado em janeiro/2018

 

 

 

Vagner Luciano de Andrade

VAGNER LUCIANO DE ANDRADE é especialista em Gestão e Educação Ambiental e agente mobilizador da Rede Ação Ambiental com formação em Ecologia, Educação, Geografia, Patrimônio e Turismo.