1)      INTRODUÇÃO

O Código Civil de 1916 surgiu numa época em que  a atividade econômica era preponderantemente rural e no núcleo familiar as pessoas trabalhavam para se sustentarem e preservarem tal instituição. Com isso, o homem assumia o lugar  de maior destaque dessa união familiar, sendo a  mulher renegada ao segundo plano, tendo a incumbência de cuidar da casa e dos filhos. No tocante a esse tipo de constituição familiar, o matrimônio era a chave para que se pudesse integrar de forma efetiva a sociedade e gozar dos direitos que constituíssem o ordenamento jurídico brasileiro.

Dessa forma, os filhos que fossem descendentes de um casal em matrimônio eram aceitos pela sociedade e se enquadravam no molde desejado pelas pessoas, sendo a eles atribuídos todos os direitos inerentes da filiação. No entanto, os filhos havidos por quem não vivesse em matrimônio já não eram considerados em igualdade aos anteriormente mencionados, uma vez que não advinham de um casal e família bem estruturados.

Essa, então, era a mentalidade que imperava à época do diploma civil de 1916.

Necessário se fazia, pois, que houvesse uma modificação desse pensamento, o que veio acontecendo através do desenvolvimento histórico e da evolução científica do homem, o que conduziu a uma profunda transformação da sociedade e, conseqüentemente, da forma com que eram encaradas as  relações travadas entre os indivíduos.

Tal ampliação de horizonte possibilitou a inserção de novos valores, menos rígidos e hipócritas, cultivando um campo fértil para a evolução de novas formas de relação familiares.

Assim, como o ordenamento jurídico deve estar atento para as evoluções sociais e dar relevância a elas, o arcabouço legal também sofreu transformações, a fim de sustentar e sistematizar a nova conjuntura social. De fato, com a Constituição Democrática de 1988, houve uma flexibilização das normas referentes, no caso, às entidades familiares, como por exemplo, a igualdade da condição de filhos, sejam legítimos, sejam adotivos. É o que diz o art. 22 § 6º da Constituição Federal:

“ Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Dada a complexidade e a importância das modificações no âmbito familiar, ocorreram transformações dinâmicas e envolvendo situações, cada vez mais freqüentes, de filhos que, por inúmeros motivos, se afastavam de seus pais biológicos e passavam a integrar uma nova família. Como exemplo, têm-se as crianças e/ou adolescentes que acompanham suas mães quando estas se unem a um novo companheiro, o qual passará a fazer as vezes  do pai biológico ou do jurídico, abrindo caminho para uma nova forma de paternidade – a paternidade socioafetiva.

Ensina MARIA BERENICE DIAS:

” A mudança dos paradigmas da família reflete-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação socioafetiva, posse do estado de filho.

Todas essas expressões nada mais significam do que a consagração, também no campo da parentalidade, do mesmo elemento que passou a fazer parte do Direito de Família. Tal como aconteceu com a entidade familiar, agora também a filiação passou a ser identificada pela presença de um vínculo afetivo paterno-filial. O Direito ampliou o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. “

Nesse sentido, tomam relevância os casos em que um indivíduo assume, perante a sociedade, a figura do pai da criança, dando-lhe afeto, carinho e provendo suas necessidades, construindo, assim, uma situação que merece evidente destaque e reconhecimento, além da proteção jurídica conveniente.

2)      PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Era gritante, pois, o descompasso existente entre o Código Civil de 1916, calcado apenas na paternidade biológica, advinda do casamento, e os novos modelos de família que se apresentavam já há algum tempo, quais sejam, a união estável e as entidades monoparentais, reconhecidas, também, pela Constituição Federal de 1988, no art. 226 § 3º e § 4º:

“ §3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento;

§ 4º -Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

Dessa forma, revela-se como preponderante, a partir desse novo paradigma que se manifesta, avaliar o aspecto afetivo, a amizade, o amor, o companheirismo e o apoio, a fim de estabelecer quem, na verdade assume a função paterna dentro do lar. Apura-se, com isso, que o pai é aquele que, mesmo  sabendo não ser seu aquele filho,  dispende em seu favor atitudes de real afeto e o acompanha ao longo de sua vida.

O Código Civil de 2002, cumprindo a expectativa de que disciplinasse acerca das novas situações que vinham surgindo, trouxe em seu art. 1593 a possibilidade de haver reconhecida a paternidade socioafetiva.

O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consagüinidade ou outra origem”.

Assim, a doutrina se coloca no sentido de que, quando o dispositivo se refere à “outra origem”, o legislador quis significar que essa seria a origem socioafetiva do parentesco, ou seja, aquele guiado pelo carinho, respeito, afeição e dedicação, mesmo que a relação existente entre seus sujeitos não advenha do parentesco biológico, o qual era tido como o único que poderia gerar efeitos jurídicos e sociais.

Ressalta-se que, em sede de paternidade, consideram-se três tipos de vínculo: o jurídico, o biológico e o socioafetivo. Assim, a verdade biológica vem cedendo, cada vez mais, espaço para a verdade socioafetiva, erigida com bases nas situações de afeto mútuo entre pai e filho.

Vale informar o que ensina MARIA CRISTINA DE ALMEIDA:

“O novo posicionamento acerca da verdadeira paternidade não despreza o liame biológico da relação paterno-filial, mas dá notícia do incremento da paternidade sócioafetiva, da qual surge um novo personagem a desempenhar o importante papel de pai: o pai social, que é o pai de afeto, aquele que constrói uma relação com o filho, seja biológica ou não, moldada pelo amor, dedicação e carinho constantes”. [i]

Cumpre salientar que, nesse sentido, deve-se tentar buscar, também, o desejo do filho. É claro que não deve ser negado  a ele a busca pelo pai biológico, o que muitas vezes se torna uma fixação para a criança ou adolescente que descobre não ser seu pai “verdadeiro” aquele indivíduo que sempre o tratou com carinho e dedicação, como se seu pai biológico fosse. Aqui, vale permitir aquilo que é o verdadeiro sentimento no coração o filho, qual seja, a vontade de conhecer aquele que o gerou. Porém, não se deve esquecer de demonstrar para esse filho que o que realmente tem relevância é o fato de que aquele homem, mesmo sabendo não ser seu pai biológico o tomou para si numa responsabilidade de “verdadeiro” pai.

Também não se pode negar, por outro lado, a possibilidade do pai socioafetivo de desconstituir a paternidade que reconheceu pensando ser seu filho biológico aquele que, de fato, não era. Nesse momento, entende-se até mesmo a revolta de alguém que foi reconhecer como seu um filho que era de outro, induzido a erro (art. 1604 do Código Civil).

Tendo sido expostos alguns aspectos que envolvem a questão central da paternidade socioafetiva, deve-se dizer que esta é apontada pela doutrina como a manifestação de três pilares básicos: nome, trato e fama. Esta é pois, a posse do estado de filho. O nome significa o fato de o filho socioafetivo usar o nome do pai, como se biológico fosse. A questão do trato diz respeito à forma com que o pai se dirige a esse filho, dando-lhe carinho, afeto, educação, responsabilidade e transmitindo-lhe valores; ou seja, é a exteriorização da paternidade. A fama, por sua vez, concerne ao fato de que, para a sociedade, em geral, aquele indivíduo se mostra, realmente, como um pai “verdadeiro”, que cumpre as funções paternas que se esperam dele, isto é, trata-se da notoriedade do estado de pai.

Logo, entende JOSÉ BERNARDO RAMOS BOEIRA:

“Entendemos que posse de estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai”. [ii]

                   Para ilustrar melhor a situação da paternidade socioafetiva, cita-se um exemplo envolvendo os três tipos de paternidade reconhecidos: suponha um casal que decida ter um filho mediante inseminação artificial, uma vez que o homem e estéril. Pois bem, eles se submetem a uma inseminação artificial heteróloga, aquela na qual há um doador de sêmen. Aqui, deve haver a anuência do marido para que ocorra tal procedimento, como consta do art. 159, V do Código Civil. Então, nasce o tão esperado filho e, anos depois, o casal decide se separar. A genitora, no desenrolar natural dos fatos se une a um novo companheiro que, devido à tenra idade da criança e ao afeto que sente por aquela mãe, assume, socioafetivamente a condição de pai. A partir daqui, vislumbram-se três distintas situações:

1)      Pai biológico: doador do sêmen

2)      Pai jurídico : ex-marido que anuiu para que acontecesse a inseminação artificial, de acordo com a lei, devido à presunção de filiação decorrente do casamento

3)      Pai socioafetivo: atual companheiro da genitora

                    Pois bem, tendo em mente tal situação muito comum de acontecer na prática, cabe a pergunta: qual paternidade prevalece? Aqui, o avanço científico esbarra nos conceitos estabelecidos ao longo dos anos relativamente ao assunto FAMÍLIA. Mas é claro que, nesse caso, o doador do sêmen, até mesmo por não ser identificado nos bancos de sêmen, quando da inseminação artificial, não assumirá papel relevante de fato, a não ser o da paternidade biológica, por mera situação do destino. Porém, na vida do filho que foi gerado ele não terá papel de destaque.

                  Já não se pode dizer o mesmo do pai socioafetivo, que entrará em confronto coma figura do pai jurídico. No entanto, analisando com detença, se chegará à conclusão de que o pai socioafetivo, de acordo com os lineamentos recentes apreendidos na vivência das relações familiares, é o que detém o papel do PAI em suas mãos, uma vez que, estando vivendo sob o mesmo teto com mãe e filho, terá mais proximidade com essa criança ou adolescente, o que fará com que este tenha em relação àquele a posse do estado de filho. Enquanto isso, o pai jurídico, devido ao laço que persiste, proverá seu filho, no mais das vezes, de necessidades materiais, a título de pensão alimentícia, devendo-se frisar que, em muitos casos, isso nem acontece.

                      Ademais, se o afeto venceu a falta de consangüinidade, não cabe à justiça desconstituir a paternidade socioafetiva que surgiu entre esse pai e esse filho.

                      O mesmo se pode depreender no caso de um casal de pais adotivos que, após anos de afeto destinado a uma criança, se vêem ameaçados de perderem tão amado filho em virtude do fato de que a mãe biológica deseja reaver o descendente que deu em adoção.

                      Relativamente a este assunto tem-se as seguintes jurisprudências:

 “EMENTA: APELAÇÃO. ADOÇÃO. Estando a criança no convívio do casal adotante há mais de 4 anos, já tendo com eles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebível retira-la da guarda daqueles que reconhece como pais, mormente, quando a mãe biológica demonstrou interesse em dá-la em adoção, depois se arrependendo. Evidenciado que o vínculo afetivo da menor, a esta altura da vida encontra-se bem definido na pessoa dos apelados, deve-se prestigiar, como reiteradamente temos decidido neste colegiado, a PATERNIDADE SOCIOAFETIVA, sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entre ambas, assim apontar o superior interesse da criança. Negaram Provimento.[iii]

·     “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÕES DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO E INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PRESCRIÇÃO. ADOÇÃO À BRASILEIRA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA.

1.      O prazo prescricional do art.18, § 9º, VI, do antigo CC, que vigia ao tempo do ajuizamento da ação anulatória do registro de nascimento, de há muito não mais vigorava, sendo imprescritível a      referida ação.

2.      ADOÇÃO À BRASILEIRA. Tendo o autor sido registrado como filho pelo pai registral, o qual sabia não ser o pai biológico, caracterizada a adoção à brasileira, que é irrevogável, descabendo a anulação do registro de nascimento.

3.      PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Plenamente caracterizada a paternidade socioafetiva entre o

autor e o pai registral, ela prevalece sobre a verdade biológica, o que impede não só a anulação do registro de nascimento, bem como a investigação da paternidade biológica. Preliminar rejeitada por maioria. Apelação provida para julgar improcedentes ambas as ações.”[iv]

3) PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E O DEVER DE ALIMENTAR

                        Consoante o artigo 1634 do Código Civil,

“compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I – dirigir-lhes a criação e educação;

                                               II – tê-los em sua companhia e guarda (...)”

                        Cotejando tal dispositivo com o artigo 1593 do CC (paternidade socioafetiva), cuja referência já foi feita, tem-se que, como o diploma legal não se posiciona explicitamente quanto ao tipo de parentesco a partir do qual pode-se pedir alimentos (art.1694), deve-se entender cabível que, o filho que mantenha com seu pai uma relação socioafetiva apenas, tem sim, o direito de se voltar a este e pedir que ele lhe conceda alimentos “de que necessite para viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.”[v]

                        Considerando um caso de adoção à brasileira, fica ainda mais evidente o dever do pai socioafetivo em prestar alimentos aos filhos menores, uma vez que, vivendo com sua companheira, decidiu registrar os filhos dela em seu nome, assumindo de forma ainda mais incontestável, a

paternidade socioafetiva.

                        Valendo-se do teor do art. 1604 do Código Civil, tem-se que o pai socioafetivo que registra filho de outro como seu, não pode contestar tal registro, a não ser se provar que foi levado a erro, situação que não ocorreria no caso suposto acima.

                        Dessa forma, unindo os argumentos anteriormente explicados, conclui-se que é, não só viável, como também, imprescindível, se a criança necessitar, que o pai socioafetivo preste alimentos a seu favor, uma vez que, tendo  criado-a como filho,  agindo para com ela com amor, compreensão e sensibilidade de pai, não há justificativa para que, rompendo o vínculo com a companheira, deixe de assistir àquele que recebeu como filho.

                                               Para ilustrar tal entendimento, tem-se  a jurisprudência a seguir, que considerou o pai socioafetivo ter registrado o filho:

·        “Ao reconhecer a paternidade, assumiu o pátrio poder e com ele todos os encargos decorrentes, como é o caso do pagamento de pensão alimentícia. A filiação foi constituída pelo próprio autor, e como a Constituição Federal não permite a discriminação de filho de qualquer natureza, art. 22, parágrafo 6º, o pagamento de pensão alimentícia é decorrência lógica ao reconhecimento da paternidade. Presentes estão os pressupostos da obrigação alimentar. A necessidade da menor é presumida e, por se tratar de alimentos naturais, o pai deve continuar com o pagamento de pensão alimentícia, conforme ele próprio já admitiu em acordo. Ante

o exposto, julgo improcedente o pedido para declarar a existência do vinculo de paternidade-filiação entre a ré e o autor, mantendo o nome de seu pai no registro de nascimento e ainda o nome de seus avós paternos. Homologo o acordo de alimentos para que o mesmo surta seus jurídicos e legais efeitos. Ressalvo a ré o direito de revogar o vínculo, na forma e no prazo legal, se assim o desejar, quando atingir a maioridade sob pena de ser um humano, menor de idade, ser atingido na sua dignidade, ao perder as suas raízes que estruturam a sua identidade de pessoa humana”.[vi]

4) UMA VISÃO PSICOLÓGICA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

                        Quando se fala em paternidade socioafetiva, fala-se, necessariamente de uma ocasião em que uma pessoa, que não o pai biológico,    assumiu a paternidade de alguém como se fosse seu verdadeiro pai. Dessa forma, sob o ponto de vista psicológico, surge a figura de uma pessoa que assumiu a FUNÇÃO PATERNA na vida de outra.

                        Deve-se entender o fato de que, para essa ciência, o PAI é menos um ser encarnado do que uma entidade essencialmente simbólica a ordenar uma função. Logo, não há uma correlação necessária entre a figura do genitor e o pai, haja vista que tal abordagem depende apenas de uma representação simbólica investida na referida função.

                        Diante disso, salienta-se que nenhum pai, na realidade, detém nem ao menos instituiu a função simbólica que representa. Ele aparece apenas como o seu vetor, distinção a qual instaura o desvio existente entre a paternidade e a filiação. Esta se desenvolve em níveis prioritariamente simbólicos, prevalecendo, pois, sobre a paternidade real. Daí advém mais um argumento a favor da paternidade consoante os moldes estabelecidos pelo crescente desenvolvimento

da sociedade – a paternidade socioafetiva.

                        Para a psicanálise, a FUNÇÃO PATERNA guarda um importante conteúdo, qual seja, o de instituir a noção de LEI no indivíduo. Assim, é o pai, ou aquele que assume o seu papel, que irá incutir na criança a idéia do limite, daquilo que é certo ou errado, do que deve ou não deve  ser feito. É através da figura do pai que se introjeta a lei psicanálitica (que se resume na proibição do incesto) e, conseqüentemente,  a lei jurídica.

                        Diz-se, por conseguinte, que se o indivíduo tiver uma formação fraca ou inexistente quanto à função paterna, ele desenvolverá sua personalidade em sentidos diversos, evoluindo para estruturas psíquicas que serão o reflexo da não introjeção da lei jurídica. Então, esse sujeito poderá não ter a noção de limite e da lei jurídica ( personalidade psicótica), poderá tê-la distorcida (personalidade perversa) ou poderá tê-la de forma incisiva, muito presente (personalidade neurótica).

                        Partindo dessa breve e sucinta explicação acerca de lineamentos psicológicos básicos, segue-se para a análise desses conhecimentos no que tange à paternidade socioafetiva.

                        Deve-se observar que, como já foi anteriormente referido, a FUNÇÃO PATERNA não precisa, necessariamente, ser assumida por um homem. Qualquer pessoa poderá se posicionar frente à criança como o detentor de tal função. Basta que, nessa qualidade, seja investida da tarefa de transmitir a essa criança a noção de limite, de lei, a qual levará para a captação da lei jurídica. Nesse sentido, torna-se extremamente importante mencionar que, consoante essa perspectiva, a paternidade socioafetiva ganha ainda mais viabilidade e reconhecimento, uma vez que, outra figura masculina, mesmo não sendo o pai verdadeiro, poderá assumir a função paterna perante o filho biológico de outro homem, devendo, para isso, despender atitudes de afeto, carinho e amor para com ele, preocupando-se, ainda, em exercer o papel investido na FUNÇÃO PATERNA.

                        Seguindo uma análise um pouco além da paternidade socioafetiva, embora ainda com grande ligação ao tema, cumpre observar que, tomando a família como referência, tem-se observado que nas populações de baixa renda, a viver nas periferias, com freqüência são encontrados casos de entidades familiares nas quais o genitor é ausente, seja por abandono do lar ou qualquer outro motivo, o que provoca o deslocamento na divisão clássica dos papéis, desde que se considere uma família tradicional, cujo pilar é a figura do pai. Nesses casos, a mãe é obrigada a ocupar, também, o papel do pai, por ser a única responsável pelos filhos. Há, assim, a carência de um pai simbólico a reger as leis frente a esses filhos.

                        Outra questão, suscitando, também, grande destaque nas varas de Família, diz respeito aos casais constituídos legalmente e estando, agora, em processo de separação. Aqui, os juízes igualmente são chamados a decidir acerca da paternidade e da organização familiar, devendo-se pautar pela lei, mas não somente por ela, procurando aliá-la à psicanálise, que aparece como ponto relevante na solução de conflitos dessa natureza.

                        Com as palavras de MARIA BERENICE DIAS:

“E, se Psicanálise é a análise do psiquismo, os operadores que trabalham com esse ramo do Direito - sejam advogados, promotores ou magistrados - não podem deixar de analisar esses conflitos atentos a um fato: são os restos do amor que são levados ao Judiciário, parafraseando Rodrigo da Cunha Pereira.

                                               (...)

Por isso, o Direito não pode se divorciar da Psicanálise. Quando ocorre a busca da justiça, cabe a todos que se envolvem na solução de tais demandas tentar visualizar toda essa realidade que subjaz ao conflito trazido a acertamento. Assim, é necessária uma maior sensibilidade para lidar com as nevrálgicas questões que atingem a própria estrutura do ser humano, pois dizem diretamente com os seus sentimentos.

            Indispensável que todos que trabalham com o Direito de Família, considerado o mais humano de todos os direitos, não busquem somente as regras jurídicas que serão aplicadas. São muito mais os regramentos comportamentais que auxiliam na hora de solver não só as seqüelas econômicas do fim do relacionamento, mas também suas conseqüências – em regra muito mais significativas -, que são os conflitos da alma.” [vii]

5) OUTRAS QUESTÕES IMPORTANTES

                        No modelo familiar tradicional, homem e mulher se uniam em matrimônio a fim de, precipuamente, gerarem descendentes. Assim, cabia a cada um, dentro dessa perspectiva, um lugar estanque e fortemente delineado e designado por nomenclaturas típicas, tais como: marido, esposa  e irmãos. Daí advinham os parentes consangüíneos, marcados por denominações como tio (a), avô, primo (a), etc. Também pode-se destacar o parentesco civil, apresentado por nomes como sogro (a), cunhado (a), etc.

                        Com a evolução da sociedade, da luta da mulher por um lugar de maior destaque dentro do patriarcalismo e da engenharia genética, a paternidade unicamente biológica começou a ceder espaço para  paternidade marcada pelo vínculo exclusivamente afetivo.

                        Assim, a Constituição Federal, erigindo tal vínculo afetivo, nas diversas situações familiares, à proteção do Estado Brasileiro, trouxe à tona a transformação do que antes era chamado concubinato para o que hoje se tem como união estável. Passou a proteger, também, entidades familiares monoparentais.

                        Cumpre salientar que, as situações regidas basicamente pelo afeto, a partir da flexibilização da sociedade passaram a ser aceitas com menos rigorismo devido à sua existência fática incontestável. Porém, tais situações são consideradas, ainda, sob uma nomenclatura arcaica e carregada de negativismo, como é o caso de: companheiro, convivente, amasiado e tantos mais, daí derivando o filho do companheiro, o filho do convivente, o filho do amasiado e etc.

                        O que se pretende a partir dessa idéia é a busca que deve ser travada na direção de se adotar, para as situações em que se tem o afeto como peça principal, uma postura decente, destinada a caracterizá-las, a começar pelos vocábulos que a designem, como casos tão importantes quanto as situações regidas pela tradicionalidade. Deve-se, pois, como medida que vise a coibir o preconceito, expurgar do uso expressões que transfiram consigo alta carga de negatividade e  desrespeito, entre outros.

                        Retomando a questão central proposta, não há como não falar de socioafetividade sem falar de homoafetividade. Insistindo na visão psicológica acerca do tema, tem-se a seguinte consideração: se a função paterna é essencialmente simbólica e pode ser exercida por qualquer pessoa, como argumentar contra a adoção por casais homossexuais? Será que cabe a afirmação de uma criança não pode ter dois pais ou duas mães? É óbvio que não. Mostra-se tal assertiva imbuída de um despropósito tamanho, tendo em visto o anteriormente exposto quanto à função paterna. A homoafetividade não pode ser empecilho para a adoção de crianças e/ou adolescentes, já que a função paterna é caracterizada pelo simbolismo e não pela encarnação de um pai real em sua estrutura.

6) CONCLUSÃO

                        Captando todos os argumentos e reflexões propostos nesse trabalho, vê-se que a paternidade socioafetiva surge, como conseqüência da evolução dos hábitos e pensamentos da sociedade, a partir do momento em que as pessoas começam a se desvincular das amarras de um pensamento tradicional e inflexível quanto à família e a aceitar e buscar o amor como aspecto imprescindível e preponderante na constituição das relações travadas entre os seres humanos.

                        A paternidade socioafetiva deve ser considerada, sim, como uma das novas manifestações familiares instituídas através do afeto, sem o qual nenhuma base familiar pode resistir. Também deve ter sua importância reconhecida tal como sempre aconteceu em relação à paternidade biológica ou jurídica, pois com estas modalidades ela não guarda maiores diferenças, a não ser no que se refere à sua origem.

                        Assim, não há como se negar que a paternidade constituída sob a forma socioafetiva é digna de reconhecimento jurídico e social, além do respeito e da transposição de preconceitos que só fazem por desconsiderar a forma mais sublime de alavancar sentimentos e relações humanas: o afeto.

                        Parafraseando MARIA BERENICE DIAS, o afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

7) BIBLIOGRAFIA:

·        VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Direito de Família. 5. ed. São Paulo. Atlas,2005.

·        RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2004.

·        GARCIA, Célio. Psicologia Jurídica. Operadores do simbólico. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

·        DOR, Joël. O pai e sua função em psicanálise.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

·        BRASIL.  Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Sétima Câmara Cível

·        BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de Paternidade: posse de estado de filho: paternidade socioafetiva. 1999.

·        www.mariaberenicedias.com.br

·        www.jfreirecosta.com

·        www.ibdfam.or.br

·        www.jusnavigandi.com

Notas:

 

 

1 ALMEIDA, Maria Cristina de. Investigação de Paternidade e DNA: Aspectos Polêmicos. 2001.

2 BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de Paternidade: posse de estado de filho: paternidade socioafetiva. 1999, p. 60.

3  Apelação Cível nº 000190039. Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Julgado em 02/05/2001. 

4 Apelação cível nº 00086568 – 8ª Câmara Cível - Giruá

5 Artigo 1694 do Código Civil.

61a Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre – processo n º 01295046435

7 DIAS, MARIA BERENICE. “ Direito e Psicanálise” – www.mariaberenicedias.com.br

(Texto elaborado em junho de 2005)

 

Como citar o texto:

COSTA, Larissa Toledo..Paternidade socioafetiva. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 162. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/1010/paternidade-socioafetiva. Acesso em 23 jan. 2006.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.