CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O estudo da evolução do conceito de família no tempo é importante, pois não há como compreender a atuação formação do núcleo familiar, sem antes, passar por uma retrospectiva histórica. A família passou por várias compreensões, sempre com o objetivo de atender as necessidades dos indivíduos ao longo do tempo.
Sendo assim, serão analisadas brevemente a composição de família romana, canônica, a família antes do Código Civil de 1916 e durante sua vigência, a família de acordo com a Constituição Federal de 1988 e a definição contemporânea de família.
Com o passar do tempo, a sociedade passa por várias mudanças e o Direito tem que acompanhar juridicamente as situações que surgem ao decorrer dessa evolução. Assim como em todas as áreas, o avanço social influenciou no âmbito familiar. As famílias eram tradicionalmente numerosas e compostas por pessoas que submetiam-se a um pater, modelo esse denominado romano que influenciou todo o processo de estruturação familiar.
O casamento era a única forma legítima de união entre duas pessoas, ou seja, a família só poderia ser constituída a partir do matrimônio. Por isso, para a compreensão do assunto proposto nesse trabalho é importante fazer uma retrospectiva histórica acerca da família e avançar até a concepção atual.
Os materiais utilizados foram doutrinas e artigos, além da legislação que trata sobre o tema, assim, foram analisados e por meio da revisão de literatura desenvolveu-se uma pesquisa de natureza qualitativa, objetivando esclarecer o processo evolutivo do conceito de família.
1 A FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO NO TEMPO
Família, esse é o termo que derivou do latim famulus, expressão que apontava para o grupo de pessoas que eram aparentadas e viviam sob o mesmo teto (PEREIRA, 2015, p. 287). Segundo Rocha, o termo “família” sugere um grupo de pessoas que tenham relação de parentesco entre si (ROCHA, 2012, p. 7-8).
A definição de família vem sofrendo alterações ao longo do tempo, sendo esse o objeto de estudo do presente tópico. O conceito em discussão ficou restrito no âmbito do Direito, por muitos anos, ao casamento, porém esse contexto foi atualizado com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, como será melhor explicado adiante (PEREIRA, 2015, p. 287).
Todavia, outros diversos campos da ciência como a antropologia, sociologia e a psicanálise, já haviam ampliado e evoluído a visão do conceito de família conjugal (PEREIRA, 2015, p. 287). Em sua análise, Ramos (2016, p. 25) traz que a família é reconhecida como célula mater da sociedade e possui sua fundamentalidade quanto a sobrevivência dos seres humanos.
Sendo assim, a família é a primeira forma de agrupamento, pois antecede os demais, surgindo como um fenômeno biológico e social, o que leva a diversas análises diante das perspectivas científicas, numa espécie de “paleontologia social” (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 33).
A família é a estrutura básica da sociedade, pois o ser humano já nasce inserido nesse arranjo. Dentro desse agrupamento acontece o desenvolvimento e a modelagem da pessoa, de suas potencialidades, a fim de que possa conviver em sociedade e obter realização pessoal (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 33). A família na sociedade “é produto do sistema social e refletirá o estado de cultura desse sistema” (MADALENO, 2018, p. 81).
É no seio familiar que acontecerão vários fatos importantes na vida do ser humano que o acompanham desde o nascimento até a morte. Além do mais, a família que concentra diversas atividades, seja natural, biológica, psicológica, filosófica, entre outras. Sobretudo, a família é onde fecunda-se os fenômenos culturais, englobando escolhas profissionais e afetivas, além do contato com problemas e sucessos (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 33).
[…] a família é o fenômeno humano em que se funda a sociedade, sendo impossível compreendê-la senão à luz da interdisciplinaridade, máxime na sociedade contemporânea, marcada por relações complexas, plurais, abertas, multifacetárias e (por que não?) globalizadas (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 33).
O fenômeno familiar ao longo do tempo não aconteceu de maneira homogênea, pois foi cercado de relações e fatores diferenciados. Isso resultou em consequências variadas que necessitavam de estudos com enfoque multidisciplinar para que a família pudesse ser compreendida. A estrutura familiar foi construída a partir de diversos modelos, os quais dependem de dois fatores, espaço e tempo. Dessa forma, o modelo da família é determinado por tais fatores para que os seres humanos e a sociedade, de modo geral, ficassem satisfeitos (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 34).
Diante disso, a família é um agrupamento onde as pessoas devem ter suas necessidades atendidas. Por isso, corresponde aos desejos humanos e sociais, pois o ser humano está em constante interação, num complexo simbólico e simbiótico. Simbólico porque a família sustenta a ideia de suma importância, mesmo quando distante. Pressupõe o sentido existencial das pessoas, gerando um conforto às pessoas por não estarem só, afetivamente, mas possui alguém que se importa com sua existência (RAMOS, 2016, p 25).
Já o sentido simbiótico que a família carrega, significa um aglomerado de pessoas com relações afetivas recíprocas, mas isso não significa que são equivalentes (RAMOS, 2016, p. 25). Porém, antes de compreender a família pelo seu aspecto interdisciplinar, devem ser retomadas as formas pelas quais antecederam esse entendimento pluralizado, a iniciar pela família romana, referência do modelo atual de família (RAMOS, 2016, p. 26).
A estrutura patriarcal é a principal marca da família romana, bem como sua autonomia quanto ao Estado. Assim, pode-se dizer que o Estado Romano não agia no seio familiar. Nesse modelo de organização familiar, os poderes eram concentrados em apenas uma figura, que era o pater familias (RAMOS, 2016, p. 26-27).
O pater familias era chefe absoluto, sacerdote incumbido de oficiar a veneração dos penates, deuses domésticos. Como chefe do grupo familiar, exercendo o poder marital, tinha direitos absolutos sobre a mulher e os filhos, inclusive com direito de vida e morte sobre os últimos, decorrente dos jus vitae necisque. O pater familias era titular do jus noxae dandi, consistente no abandono reparatório do filho em favor da vítima que houvesse sofrido prejuízo com a prática pelo filho de um ilícito privado. Podia também exercer o jus vendendi, que era a faculdade de alienar o filho, mediante mancipatio a outro pater familias. Subespécie do jus vitae necisque era o jus exponendi, faculdade do pater familias abandonar o filho recém-nascido ao seu destino. Só o pater famílias tinha patrimônio, exercendo a domenica potestas (RAMOS, 2016, p. 27).
Dessa forma, o pater detinha o poder da vida e da morte, como era exposto na lei das doze tábuas, sobre a vida de seus filhos, esposa e escravos. Essas pessoas ficavam sub manu, que significa sob sua mão. Logo, para que um escravo fosse liberto, teria que passar pela mão do pater, esse processo para obter o status libertatis era chamado de manumissio e emancipatio (ROMANO, 2017, s.p.).
Sendo assim, o pater familias tinha a decisão final e absoluta. Exemplo disso, se a prole não era desejada, ele poderia ordenar sua morte. Como pode ser extraído, o pater familias era o único sujeito com capacidade jurídica plena, dotado de longa manus, possuía extensos direitos e deveres extraordinários relacionados aos seus filhos, esposa e servos (ROMANO, 2017, s.p.).
A figura feminina não tinha espaço dentro da família romana, ela sequer possuía poderes para realizar os atos da vida forense. A maioridade não foi reconhecida pelo direito romano, ou seja, o filho não alcançava determinada idade e se desvinculava do pai. Pelo contrário, não existia prazo determinado para subordinar-se ao genitor, o pater famílias (RAMOS, 2016, p. 27). Os filhos eram tratados a depender do gênero, enquanto o filho não se desvinculava do pai, a filha tinha o vínculo rompido por meio do casamento. Quanto aos bens, esses eram destinados aos filhos do sexo masculino, as filhas não tinham quaisquer direitos em relação aos bens (COULANGES, 1998, p. 47 apud BARRETO, 2012, p. 207).
O modelo de família instituído pelo direito romano foi fortemente influenciado pelo Império Constantino, a partir do século IV. Dessa forma, a ideia cristã de família passou a vigorar, nesse momento foram ressaltados os questionamentos de natureza moral. Cabe adentrar a família brasileira como sendo a típica estrutura de família remodelado pelo direito romano e o cristianismo, sobretudo pelas ideias pregadas pela igreja católica (RAMOS, 2016, p. 27).
Sendo assim, o Direito Canônico exerceu forte influência no seio familiar, modificando a estrutura anteriormente definida. A partir de então a família legítima só poderia ser formada a partir da cerimônia religiosa. Por outro lado, a igreja passou a condenar tudo aquilo que poderia desestruturar esse modelo de família. Exemplo disso, o aborto, o adultério e o concubinato, uma vez que o casamento era algo indissolúvel pelas partes (BARRETO, 2012, p. 207).
O cristianismo levou o casamento a sacramento. O homem e a mulher selariam a união sob as bênçãos do céu e se transformariam em um único ser físico, e espiritualmente, de maneira indissociável. O sacramento do casamento não poderia ser desfeito pelas partes e somente a morte poderia fazê-lo (BARRETO, 2012, p. 207).
No entanto, o modelo de família não ficou engessado com o passar do tempo, com a instituição da nova República, veio o Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, que dispunha sobre o casamento civil e serviu de base para o Código Civil de 1916 (RODRIGUES, 1993, p. 240). Este decreto elencava as formalidades do casamento, ou seja, os documentos necessários para habilitação ao casamento. Em sequência, descrevia os impedimentos e quem incorria a quaisquer desses impedimentos eram expressamente proibidos de casarem-se, entre demais normas que deveriam ser respeitadas pelas partes (BRASIL, 1890).
Ainda em período anterior ao Código Civil de 1916, entrou em vigor o Decreto nº 1.839, de 31 de dezembro de 1907, conhecido como Lei Feliciano Pena. Essa lei tratava de assuntos sucessórios, ressaltando o direito da mulher em ser herdeira preferencial em relação aos colaterais. Pois no Direito das Ordenanças só era chamada a sucessão se não houvesse descendentes, ascendentes e colaterais até décimo grau (RODRIGUES, 1993, p. 240).
Posteriormente, no ordenamento jurídico brasileiro, a família surge normatizada pelo Código Civil de 1916 e é considerada legítima a partir do matrimônio. Assim, pode-se dizer que as famílias eram marcadas pelas relações matrimoniais e o pátrio poder (RAMOS, 2016, p. 27). O marco patrimonial dessas relações tinha como objetivo manter a estabilidade econômica do Estado (VECCHIATTI, 2012, p. 178).
Importante ressaltar que o matrimônio era indissolúvel, logo a própria sociedade civil firmava-se no casamento (RAMOS, 2016, p. 27). Isso aconteceu porque nenhuma legislação trouxe um conceito preciso de família, apenas limitou-se em relacioná-la ao casamento (LIMA, 2018, s.p.).
Ainda, no Código Civil de 1916, a mulher tornava-se relativamente incapaz mediante o casamento, logo necessitava do marido para tornar válido os atos de sua vida civil. Era notória a figura inferiorizada da mulher dentro da sociedade conjugal, pois essa forma familiar trazida pelo código supramencionado, aproximava-se do modelo romano (RAMOS, 2016, p. 28).
A figura masculina ainda era supervalorizada pela legislação de 1916, pois era colocado em posição superior em relação a feminina. Já a mulher deveria sempre agir de acordo e sob a permissão de seu marido, mas tinha suas responsabilidades em desempenhar as funções de administradora do lar e educadora de seus filhos (VECCHIATTI, 2012, p. 178).
Diante disso, até as funções do marido em relação ao lar, seguiam os passos da família romana. Dentre as atribuições, destacava-se o exercício da chefia do lar, a administração dos bens familiares, incluindo o patrimônio do casal e dos filhos, enquanto menores. Além disso, regia sobre a vida de suas proles, pois o exercício do pátrio poder era exclusivo da figura masculina (RAMOS, 2016, p. 28).
Todavia, o pensamento de que a legitimidade da família advinha do casamento não se deteve apenas ao Código Civil, mas em 1934 ao entrar em vigor uma nova Constituição no Brasil, tal ideia foi reafirmada. Essa mesma visão familiar foi replicada nas demais Constituições, como a de 1937, 1946 e 1967 (RAMOS, 2016, p. 27).
Nesse sentido, a união era reprovável moral, social e civilmente, caso não houvesse casamento, inclusive os filhos eram afetados e discriminados por essa situação (RAMOS, 2016, p. 28). Dessa forma, a família só era constituída legal e socialmente pelo casamento, válido e eficaz, qualquer outra maneira de se constituir família era “socialmente marginalizado” (MADALENO, 2018, p. 81).
Assim, eram considerados legítimos os descendentes concebidos apenas na constância do matrimônio. Os filhos eram classificados em naturais e espúrios. Naturais, pois nasciam de uma relação em que ambos os genitores não possuíam impedimento matrimonial, ao contrário do que ocorre com os espúrios em que as partes eram impedidas de constituir casamento (RAMOS, 2016, p. 28).
Tratava-se de uma família hierarquizada, chefiando o marido a mulher e os filhos, no exercício do poder marital e do pátrio poder. Os filhos, enquanto menores, sujeitavam-se ao pátrio poder, dispensando-lhes a lei civil proteção traduzida nos deveres inerentes ao pátrio poder. A esposa, somente em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada, deixou de ser relativamente incapaz e detinha o poder doméstico, que lhe conferia um papel pequeno na sociedade familiar (RAMOS, 2016, p. 28).
É importante extrair que o conceito de família é algo mutável no tempo, por isso a Constituição Federal promulgada em 1988 inovou quanto a concepção aqui discutida. A Carta Magna quebrou paradigmas e desconstruiu definições trazidas pelas legislações anteriores. Isso aconteceu, pois adveio a união estável como forma de construção familiar, seja entre homem e mulher, quanto um dos genitores e seus filhos (RAMOS, 2016, p. 27).
As uniões de fato, sem passar pela formalidade do matrimônio, foram se tornando cada vez mais comuns. As partes do relacionamento passaram a considerar o amor acima de tudo, dessa forma foi necessário trazer ao debate essas relações que, apesar de comuns, não refletiam no âmbito jurídico (VECCHIATTI, 2012, p. 179). Assim, surgiu a Constituição Federal de 1988, garantindo o direito a convivência familiar e comunitária, como direito fundamental (PEREIRA, 2017, p. 26-27).
A Constituição Federal em vigor abriu margem para que o instituto da família fosse interpretado de forma abrangente. Enquanto as características mais marcantes da união fundada no casamento pelo Código Civil de 1916 era o patrimonialismo e o patriarcado, a ideia da Constituição de 1988 é baseada no afeto, no amor e na promoção da dignidade de seus membros, ideia reafirmada pelo Código Civil de 2002 (RAMOS, 2016, p. 28-29).
Além disso, houve o reconhecimento de outras formas de constituição de família, não sendo apenas o casamento a via legítima para consumar a família. Outro ponto importante foi o reconhecimento dos filhos de maneira igualitária, sejam eles havidos dentro do casamento ou não. Com a entrada em vigor da atual Constituição, foi promovida a igualdade entre homem e mulher dentro da sociedade conjugal (RAMOS, 2016, p. 29).
O conceito de família evoluiu a tal passo que há proteção a dignidade humana a todos os membros, sempre observando a individualidade e o respeito à diversidade. Houve o reconhecimento de diversos arranjos familiares, inclusive a união homoafetiva e o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (RAMOS, 2016, p. 29). “A família transcende sua própria historicidade, pois suas formas de constituição são variáveis de acordo com seu momento histórico, social e geográfico” (PEREIRA, 2015, p. 287).
2 A INFLUÊNCIA DA SOCIEDADE E DAS CIÊNCIAS NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA
Ao analisar o percurso histórico da sociedade, verificou-se que houve considerável interferência das transformações no contexto econômico, político e desenvolvimento tecnológico. A família é uma das principais, senão a principal, instituição social e, por isso, deve se estudada sob essa visão. Os interesses particulares vêm modelando a família de uma forma bem diferente do que era tradicionalmente (VESCOVI; ROSA, s.d.,s.p.).
São vários fatores, das mais diversas matrizes, que não permitem a delimitação de família como um conceito fixo, como foi brevemente esclarecido no tópico anterior. A família deve ser analisada em conjunto aos movimentos que guiam as relações sociais (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 34). Aliás, “em diferentes épocas, a família se condiciona às necessidades da sociedade” (PERROT, 1993, p. 75).
Dessa forma, a construção de família é algo longo, não linear e com sucessivas rupturas (PERROT, 1993, p. 75). A história da família parte de um modelo patriarcal até a concepção contemporânea, isso acontece pela manutenção de transformações trazidas pelos fenômenos sociais (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 34).
[…] a sociedade avançou, passaram a viger novos valores e o desenvolvimento científico atingiu limites nunca antes imaginados, admitindo-se, exempli gratia, a concepção artificial do ser humano, sem a presença do elemento sexual. Nessa perspectiva, ganhou evidência a preocupação necessária com a proteção da pessoa humana. Assim, ruiu o império do ter, sobressaindo a tutela do ser (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 35).
Sendo assim, o desenvolvimento científico alcançou um novo patamar e levou consigo o significado de ser humano, que passou do “ter” para “ser” (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 35). A construção da estrutura familiar é marcada por rupturas que fazem parte do processo de dissociação. Tal processo é encarado como uma “revolução” que proporciona uma maior autonomia ao ser humano em dispor sobre sua própria vida (VESCOVI; ROSA, s.d.,s.p.).
Pode-se dizer que há uma alteração na forma familiar predeterminada pela sociedade, isso acontece com o desejo de ter mais dignidade e felicidade nos seios familiares, proporcionando essa sensação a todos os indivíduos que venham fazer parte dos grupos familiares (VESCOVI; ROSA, s.d.,s.p.). As características do agrupamento familiar mudam de perspectiva e rompem com o modelo tradicional, transformando-se em solidariedade social em conjunto com outros fatores essenciais para o progresso e o aperfeiçoamento da pessoa (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 35).
O modelo familiar contemporâneo mostra-se mais objetivo, pois busca atender aos desejos e necessidades de cada indivíduo inserido no grupo familiar, bem como preservar os traços de afeto (VESCOVI; ROSA, s.d.,s.p.). Não mais vigora a estrutura rígida com caráter moderador como nos séculos antepassados, o nó como chamado por Perrot (1993, p. 75).
Assim, passa a ser valorizada a forma autônoma, o lar, a casa, o ninho e toda a família como ambiente de abrigo e proteção (PERROT, 1993, p. 75). Logo, pode ser verificado que ao longo do tempo a família em si não promoveu nenhuma “revolução” de fato, mas sim houve a mutação nos valores dada as necessidades humanas. Para atender os desejos das pessoas, componentes dos grupos familiares, foi necessário flexibilizar o conceito de família no tempo (VESCOVI; ROSA, s.d.,s.p.).
Dessa forma, a família passa a ser uma forma de expressar a liberdade individual, onde a construção é feita com base na necessidade de cada pessoa e dotada de afetividade. Não mais amarra-se ao modelo do passado em que a família era um compromisso moral com a sociedade ou um pressuposto de ética e honra (VESCOVI; ROSA, s.d.,s.p.).
É importante trazer que a família, antes considerada estado de natureza, transformou-se para o estado da cultura e isso trouxe a possibilidade de sua estruturação. De igual forma, a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pelo Estado. Sendo assim, a família possui duas vertentes, um núcleo de estrutura pública, mas de relação privada, pois a pessoa faz parte do grupo familiar e, ao mesmo tempo, é um ser que convive em sociedade (DIAS, 2016, p. 49).
O direito de família nitidamente se destaca e separa dos restantes ramos do direito privado: a sua história, o fundamento racional e social dos seus institutos, a prevalência do ponto de vista ético nas suas normas, o reconhecimento de questões emocionais e de sobrevivência, bem como a sua grande ligação com o direito público (RAMOS, 2016, p. 26).
Com isso, antes mesmo de olhar a família com uma visão jurídica, a família deve ser considerada um fato sociológico, porque possui raízes naturais, principalmente quanto as necessidades humanas. Essas necessidades naturais são a “união sexual, a procriação, no amor mútuo, na assistência, na confiança e na cooperação”, sendo esses elementos essenciais para a existência familiar. De igual forma, a estrutura familiar possui uma grande carga moral e cultural (RAMOS, 2016, p. 25).
O Direito de Família ou Direito das Famílias, como denomina Maria Berenice Dias, existe como uma forma de não excluir qualquer estrutura familiar desse rol e surge como um fragmento da vida privada “que mais se presta às expectativas e mais está sujeito a críticas de toda sorte” (DIAS, 2016, p. 49). É certo que o Direito deve seguir concomitantemente aos costumes de cada país, se moldando em cada civilização, cultura, regimes políticos, sociais e econômicos, pois esses fatores influenciam nas relações das famílias (RAMOS, 2016, p. 25).
Com o advento da globalização, foram efetivadas diversas alterações no ramo dos valores, regras, comportamentos e leis. Não é uma tarefa fácil para o legislador acompanhar todas as mudanças no seio social, estimar os conflitos dentro da família para dispor legalmente sobre. As regras nesse âmbito são ainda mais complexas de serem alteradas, pois envolvem questões subjetivas, como sentimentos e com alma da pessoa (DIAS, 2016, p. 50).
Diante dessa modificação social, é necessário oxigenar as leis para que haja uma modernização das leis, isso causa uma ruptura com as tradições e amarras. A ideia que deve ter em mente ao tratar de Direito das Famílias é a ligação que esse ramo possui com o afeto, pois mexe com consequências comportamentais que pode alterar a estrutura social (DIAS, 2016, p. 50).
[…] o regramento jurídico da família não pode insistir, em perniciosa teimosia, no obsessivo ignorar das profundas modificações culturais e científicas, petrificado, mumificado e cristalizado em um mundo irreal, ou sofrerá do mal da ineficácia. Porém, é preciso demarcar o limite de intervenção do direito na organização familiar para que as normas estabelecidas não interfiram em prejuízo da liberdade do "ser" sujeito (DIAS, 2016, p. 50).
Para entender a evolução do Direito das Famílias a visão deve ser amplificada em face de uma nova cultura jurídica, pois permitirá enxergar uma nova dimensão acerca da proteção das famílias. Assim, estabelece uma maneira de repersonificar as relações de forma a manusear o afeto, sendo esse o foco dentro das famílias (DIAS, 2016, p. 50-51).
Diante disso, extrai-se que a família é o próprio retrato da sociedade, levando em consideração a delimitação de tempo e lugar para analisar o contexto. Com isso, surge um traço não linear, trazendo uma noção evolutiva, a fim de compreender a entidade familiar. A concepção contemporânea de família deve ser vista sob os avanços técnico-científicos e a evolução filosófica natural do homem (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 35-36).
3 O SURGIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL
As uniões entre homem e mulher só eram consideradas legítimas se passassem pelo crivo do casamento, mas a sociedade foi evoluindo e surgiram outras formas de constituição familiar (LIMA, 2018, s.p.). Quanto as relações de fato, elas sempre existiram mesmo diante de repúdio de discriminação social (DIAS, 2016, p. 407).
Farias e Rosenvald (2017, p. 459) reafirmam que essas uniões afetivas e informais sempre existiram e sempre existirão. Ao fazer uma retrospectiva histórica, verifica-se que na Antiguidade tal união não era alvo de reprovação. Todavia, os pensamentos cristãos, ou seja, a Igreja repudiava essa conduta e, mesmo assim, não deixou de existir a união afetiva.
A legislação civilista de 1916 omitia-se em dispor sobre as relações extraconjugais, mesmo diante todas essas circunstâncias, a união extramatrimonial de pessoas não foi extinta, pelo contrário, foram surgindo as relações afetivas extramatrimoniais com um único objetivo, que é a felicidade (DIAS, 2016, p. 407). Os efeitos jurídicos eram produzidos apenas em relação ao Direito das Obrigações, o Direito de Família não era aplicável às uniões estáveis (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 459).
Sendo assim, a única forma correta de formação de família legítima era através do casamento, já a união estável era considerada ilegítima, estendendo a qualquer outra forma, mesmo com a presença de afeto. A legitimidade da relação influenciava diretamente na prole, uma vez que se o filho não fosse oriundo do casamento, era considerado ilegítimo, logo não poderia gozar de plenos direitos como se legítimo fosse (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 459).
Tais uniões feitas sem a formalidade do casamento, eram denominadas concubinato. Assim que as uniões estáveis eram extintas, as partes interessadas moviam a máquina do Poder Judiciário para resolver suas lides. Principalmente, quando a mulher não tinha fonte de renda própria, logo era proposta uma ação de indenização por serviços domésticos (DIAS, 2016, p. 407-408), da seguinte forma:
O fundamento era a inadmissibilidade do enriquecimento ilícito: o homem que se aproveita do trabalho e da dedicação de uma mulher não pode abandoná-la sem indenização, nem seus herdeiros podem receber herança sem desconto do que corresponderia ao ressarcimento (DIAS, 2016, p. 408).
O concubinato, por sua vez, era a união entre duas pessoas que, de certo modo, eram impedidas de casarem-se, pois, o casamento era algo indissolúvel. Então, o casamento terminava de fato e as partes optavam por viverem com outra pessoa nesses termos. Essa forma de agrupamento era distinta à ideia de família, sendo assim era denominada “sociedade de fato” (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 459).
Como exposto acima, essas uniões, por não produzirem efeitos jurídicos, movimentavam a máquina judiciária em busca de proteção aos seus direitos, exigindo a manifestação jurisprudencial (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 459). Pois, até então, os companheiros eram considerados sócios que, ao final dividiriam os supostos lucros auferidos durante a sociedade. Nesse caso, a divisão dos bens adquiridos na constância da união (até então, sociedade) deveriam ter provas efetivas da participação financeira das duas partes na constituição do bem, esse entendimento era sumulado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) (DIAS, 2016, p. 408).
A necessidade de comprovação da participação financeira tinha como objetivo reprimir a conduta de enriquecimento ilícito de uma das partes, especialmente, em prejuízo da mulher. Mas apenas esse entendimento que vigorava, quanto aos patrimônios, porém não havia nenhuma disposição quanto aos alimentos e direitos de sucessão (DIAS, 2016, p. 408). Dessa forma, foram através de entendimentos jurisprudenciais que o ordenamento pátrio sofreu alterações, assim as uniões extramatrimoniais passaram a ser denominadas uniões estáveis (LIMA, 2018, s.p.).
Mediante o avanço social, as uniões de fato passaram a merecer reconhecimento na sociedade, impulsionando a Constituição Federal aumentar a visão quanto ao conceito de família, introduzindo o termo “entidade familiar”. Foi alcançado um novo momento jurídico, pois as relações que não eram formalizadas pelo casamento, passaram a receber proteção do Estado. “Foi emprestada juridicidade aos enlaces extramatrimoniais até então marginalizados pela lei” (DIAS, 2016, p. 408).
Dessa forma, o ilegítimo concubinato passou a compor um regime de legalidade absoluta. Sendo assim, a união entre homem e mulher por maneira diversa ao casamento, passou a ser reconhecida como entidade familiar. Ou seja, a união estável. Nessa mesma Carta Magna foram reconhecidos os vínculos monoparentais, que são formados por um dos pais e os filhos (DIAS, 2016, p. 408-409).
A especial proteção constitucional conferida à união estável de nada ou de muito pouco serviu. Apesar de a doutrina ter afirmado o surgimento de novo sistema jurídico de aplicação imediata, não sendo mais possível falar em sociedade de fato, o mesmo não aconteceu com os tribunais. A união estável permaneceu no âmbito do direito das obrigações. Nenhum avanço houve na concessão de direitos, além do que já vinha sendo deferido. A Súmula 380 continuou a ser invocada. As demandas permaneceram nas varas cíveis. Também em matéria sucessória não houve nenhuma evolução. Persistiu a vedação de conceder herança ao companheiro sobrevivente e a negativa de assegurar direito real de habitação ou usufruto de parte dos bens (DIAS, 2016, p. 409).
Em 1994 entrou em vigor a lei 8.971 que regulamentava a união estável, mas fixava o prazo mínimo de cinco anos para sua configuração. Por ser esse um ponto muito discutido, dois anos depois a lei foi substituída e o prazo veio a calhar. A Constituição Federal de 1988, ainda em vigor, preocupou-se em reconhecer a união estável entre homem e mulher no seu § 3º, concedendo a proteção do Estado e a viabilidade de convertê-la em casamento (LIMA, 2018, s.p.).
Em meio a essa modificação legislativa, verifica-se que a união estável foi equiparada ao casamento, como todas as entidades familiares, para efeitos legais. “Ao criar a categoria de entidade familiar, a Constituição acabou por reconhecer juridicidade às uniões constituídas pelo vínculo de afetividade” (DIAS, 2016, p. 409). Assim, houve uma demarcação no âmbito jurídico em relação ao afeto que entrou em cena (DIAS, 2016, p. 409).
O dispositivo que generaliza a inclusão das entidades familiares, logo quaisquer uma que apresente afetividade, estabilidade e ostentabilidade, não poderão ser retiradas desse rol de entidades (DIAS, 2016, p. 409-410). Diante disso, é importante trazer que a união estável não concorre com o casamento, não há um pódio entre essas entidades, nenhuma forma de constituição de família está em posição superior ou inferior, estão dispostas horizontalmente como opção (MADALENO, 2018, p. 82).
Mesmo na união estável os companheiros possuem direitos e deveres como respeito, consideração mútua, assistência material e moral recíproca, guarda, sustento e educação dos filhos na forma que descreve o art. 2º da Lei nº 9.278/96 (BRASIL, 1996). A lei em análise traz diversas disposições em relação a união estável, como a divisão de bens, o direito real de habitação e sucessão, mas foi omissa quanto aos casos de prestação alimentícia (LIMA, 2018, s.p.).
[…] é bem verdade que o Supremo Tribunal Federal ao julgar os RE 878.694 e 646.721, na relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, em 10 de maio de 2017, parece haver equiparado os efeitos jurídicos do casamento e da união estável, e não apenas no âmbito do direito das sucessões, mas, espraiando estes mesmos efeitos para a seara do direito familista, restando somente as diferenças presentes na formação e extinção judicial ou extrajudicial das duas entidades familiares (MADALENO, 2018, p. 82).
Apesar da Constituição Federal fazer referência “um homem e uma mulher” ao delimitar a união estável, atualmente, o entendimento que vigora é do STF, sendo totalmente reconhecida a união estável entre pessoas do mesmo sexo. “Foi necessário que o Supremo Tribunal Federal, proclamasse a existência dos mesmos e iguais direitos e deveres às uniões homoafetivas” (DIAS, 2016, p. 410).
Dessa forma, insta salientar a importância do Ato Normativo nº 0002626-65.2013.2.00.0000, os acórdãos da ADPF 132 RJ e ADI 4277DF, como também o julgamento do Resp. 1.183.378/RS. Esses julgados têm como ponto de encontro a inconstitucionalidade de tratamento desigual ao casal do mesmo sexo e decidiram que não poderiam haver obstáculos quanto ao casamento entre essas pessoas. Com base nisso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou uma Resolução de nº 175, de 14 de maio de 2013, vedando a negatória em celebrar o casamento entre indivíduos do mesmo sexo. Traz também a consequência pela inobservância dessa resolução que é a comunicação imediata ao Juiz Corregedor para as providências cabíveis (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2013, p. 01-02).
4 O ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A UNIÃO ESTÁVEL
A evolução tecnológica e científica são traços da sociedade atual, com isso as ideias jurídico-sociais do sistema também sofreram alterações em decorrência desse avanço. Pode-se dizer que havia uma “passagem aberta” para uma nova dimensão jurídica em relação a família, sendo elemento de garantia do ser humano. Assim, há um rompimento de barreiras no sistema jurídico-social clássico (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 36).
O referido rompimento faz com que nasça uma família contemporânea, pluralizada, aberta e multifacetária. Além disso, completamente suscetível a interferência da nova sociedade, surgindo novas necessidades universais. Inclusive o objetivo familiar apresenta-se coerente a filosofia da vida humana (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 36). “A transição da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no afeto” (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 36).
A união estável acostada na Constituição Federal de 1988 teve precedentes históricos de grande desigualdade entre homem e mulher no contexto familiar. Sabe-se que a família era considerada legítima, antes da promulgação da Constituição mencionada, apenas mediante o casamento, somente essa era a forma de ter proteção jurídica. Do contrário, no caso das relações extramatrimoniais, estas eram desprovidas de proteção jurídica (MADALENO, s.d., s.p.).
Devido as construções jurisprudenciais, aos poucos os direitos foram alcançando essas uniões extramatrimoniais até que foi promulgada a Constituição Federal de 1988, reconhecendo a união estável como forma legítima de constituir família (MADALENO, s.d., s.p.). O que houve em âmbito constitucional foi a equiparação das entidades familiares, tanto que o art. 226 da Carta Magna é conhecido como a cláusula geral de inclusão (DIAS, 2016, p. 409).
Assim, no final do século XX, a Doutrina e a Jurisprudência viram-se obrigados a reconhecer a verdadeira entidade familiar formada pelos relacionamentos afetivos extramatrimoniais. Afinal, os próprios juristas que a isto se opunham admitiam, por mais que não fosse sua intenção, que ditos relacionamentos formavam famílias, com a ressalva de serem famílias “ilegítimas” (leia-se: não protegidas pelo Direito). Logo, reconheciam que formavam famílias sociológicas, famílias de fato, embora a legislação a elas não reconhecesse efeitos jurídicos (VECCHIATTI, 2012, p. 183).
Então, a realidade é que a Constituição tratou de normatizar algo que já estava presente no âmbito sociológico das uniões informais, amplamente existente no mundo dos fatos e já protegias, historicamente, em sede jurisprudencial (MADALENO, 2018, p. 82). Dessa forma, os valores constitucionais impactaram o Direito Civil, principalmente no que se refere a dignidade da pessoa humana, princípio que está presente não só na Lei Maior e todo ordenamento jurídico brasileiro, mas também em documentos legais internacionais (FERRARINI, 2016, s.p.).
Sendo assim, o princípio da dignidade da pessoa humana refreia a atitude positiva do Estado e faz com que haja uma despatrimonialização e guia o Direito Civil a uma repersonalização, com foco nos valores existenciais e espirituais (BARROSO, 2005, p. 38, apud, FERRARINI, 2016, s.p.). Esse movimento ensejou um “choque de perplexidade” em relação aos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais (FERRARINI, 2016, s.p.).
A Constituição Federal de 1988 interferiu em matérias que era de normatização exclusiva de lei ordinária. Logo, a ordem civil, mesmo com seu aspecto privado, passou a se submeter aos ditames constitucionais (FERRARINI, 2016, s.p.).
Tal recepção, pela Constituição Federal, de temas que compreendiam, na dicotomia tradicional, o estatuto privado, é reconhecida como a constitucionalização do direito, que muito mais do que um critério hermenêutico formal, constitui a etapa mais importante do processo de transformação, ou de mudanças de paradigmas, por que passou o direito civil, no trânsito do Estado liberal para o Estado social.
Tem-se, portanto, que o marco histórico do novo Direito Constitucional, no Brasil, foi a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar.
[…]
A nova ordem constitucional rompe com a racionalidade dos modelos fechados. É o retrato de uma realidade histórica construída ao nível de um tempo social, “que não é constituído de marcos factuais isolados, mas por um movimento conjunto ao longo de muitas décadas, que vem à tona também no direito legislado (FERRARINI, 2016, s.p.).
Pode-se dizer que a atual Constituição Federal extinguiu o Estado liberal e consolidou o Estado Social, influenciando nas legislações infraconstitucionais. Na família constitucionalizada, os parâmetros de família são baseados no afeto, solidariedade e cooperação, sendo, no seio familiar, que a pessoa busca a sua felicidade (FERRARINI, 2016, s.p.).
A partir desses valores sociais e humanizadores que a Carta Magna se desenvolve, objetivando o desenvolvimento das pessoas no âmbito familiar e servindo de “alicerce fundamental” para que se obtenha felicidade (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 73). Esse modelo de família afasta-se do tradicional, agora na família democrática não existem direitos sem responsabilidades, nem mesmo autoridade na falta de democracia (FERRARINI, 2016, s.p.).
A família contemporânea realça a dignidade de seus membros, sendo incentivada, respeitada e tutelada (FERRARINI, 2016, s.p.). Isso porque a Carta Magna eleva o princípio da dignidade da pessoa humana “sendo a dignidade o vértice do Estado Democrático de Direito e um amparo de sustentação dos ordenamentos jurídicos contemporâneos” (LIMA, 2018, s.p.). Então, os dispositivos constitucionais referentes a família devem ser interpretados de forma favorável, expandindo em maior eficácia possível e alcançando amplamente o interesse social (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 74).
Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 61) fazem uma comparação da família em relação ao contrato e a empresa, destacando seu processo de funcionalização, ou seja, a família também desempenha seu papel social. Assim, analisando sob o aspecto teleológico, a família possui funcionalidade. Dessa forma, o agrupamento familiar é a base da sociedade, por isso deve propiciar para todos os seus membros um ambiente promissor, em que realizem seus projetos de vida, sob a visão filosófica-eudemonista.
Diante disso, percebe-se que o fundamento da família contemporânea é a afetividade, assim, as entidades familiares que possuírem essa característica devem ser protegidas. Bem como aquelas relações em que estão presentes os desejos de constituir uma relação estável e duradoura, pois o único elo em comum entre as entidades familiares é o amor, como será melhor abordado no tópico seguinte (VECCHIATTI, 2012, p. 184).
5 A CONCEPÇÃO MODERNA DE FAMÍLIA
No epicentro da vida emocional estão as relações sociais, as quais sofreram grandes mudanças ao longo do século XX. Assim, o conceito de família anteriormente designado não mais atendia a realidade social, como visto anteriormente. No âmbito da antropologia, são consideradas três espécies de família, a começar pela família tradicional, marcada pela alta densidade de pessoas submetidas a autoridade patriarcal e firmavam-se nas ideias morais e autoritárias vigentes na época (BATTISTELLA, 2015, s.p.).
A família nuclear veio à tona na segunda metade do século XX, consideradas aquelas compostas pelos genitores e seus poucos filhos. Diminui o autoritarismo e família passa a ligar-se ao conceito de lar, tipicamente caseiro. A família moderna, o terceiro modelo abordado pela antropologia, é aquela que nem sempre os membros possuem relação de parentesco, não existe uma regra básica (BATTISTELLA, 2015, s.p.). O que marca a família moderna é a existência de afeto, entre outros sentimentos (BIROLI, 2014, p. 7).
Tocar em família é referir-se a “uma realidade social e institucional, profundamente política tanto nos fatores que a condicionam quanto em seus desdobramentos” (BIROLI, 2014, p. 7). Assim, a família é considerada uma construção social (BIROLI, 2014, p. 7). O modelo familiar sustentado atualmente, difere-se da forma tradicional em vários aspectos, principalmente, com relação a finalidade, composição e função dos membros da entidade familiar (GONÇALVES, 2013, p. 244).
Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 35).
Sendo assim, algumas características foram modificadas no seio familiar, a organização passou de autocrática para democrático-afetiva. Dessa forma, o centro da construção familiar não mais segue o princípio da autoridade, mas sim o princípio da compreensão e do amor (PEREIRA, 2017, p. 55). A família moderna é pautada na promoção da felicidade e dignidade de cada componente, tendo em vista o respeito e a autorrealização (RAMOS, 2016, p. 29-30).
O seio familiar é lugar de abrigo e proteção, onde existe o cuidado, afeto e felicidade de forma mútua, pressupondo a liberdade cada um. Assim, cabe ao Estado promover políticas públicas para efetivar e proteger a família quanto a qualquer tipo de agressão, violência ou violação (RAMOS, 2016, p. 30). Logo, a entidade familiar “recebe inequívoca proteção do Estado, que intervém cada vez mais na medida que os poderes privados declinam” (PEREIRA, 2017, p. 55).
Entende-se que a ideia de família moderna é múltipla, plural, respeitosa e composta por pessoas que detenham laços consanguíneos ou sociopsicoafetivos, com o objetivo de desenvolver a personalidade de seus membros. É local em que os costumes e as culturas são transferidas intergeracionalmente (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 39-40).
Os vínculos de afetividade projetam-se no campo jurídico como a essência das relações familiares. O afeto constitui a diferença específica que define a entidade familiar. É o sentimento entre duas ou mais pessoas que se afeiçoam pelo convívio diuturno, em virtude de uma origem comum ou em razão de um destino comum que conjuga suas vidas tão intimamente, que as torna cônjuges quanto aos meios e aos fins de sua afeição até mesmo gerando efeitos patrimoniais, seja de patrimônio moral, seja de patrimônio econômico (PEREIRA, 2017, p. 57).
O afeto é a essência da família moderna, é a base de construção. Não se pressupõe o amor através apenas de laços biológicos, mas vem da convivência e do cuidado, entre outros sentimentos (RAMOS, 2016, p. 20). Essa mudança oportunizou a estruturação de família nas mais variadas formas e a Constituição Federal de 1988 protege tais relações, sejam matrimonializadas ou não. A família moderna é um “grupo social fundamentado nos laços afetivos, efetivando dessa forma a dignidade humana, com relação ao sentimento e a forma de ser feliz plenamente” (LIMA, 2018, s.p.).
É notório que a família da modernidade possui características que priorizam a dignidade da pessoa humana, sendo esse o superprincípio basilar da entidade familiar. A relação entre familiares passa a ser mais aberta, democrática e plural, sendo um ambiente saudável para o desenvolvimento dos indivíduos (ALVES, 2007, p. 335-336).
[…] a família advinda da Constituição Federal de 1988 tem o papel único e específico de fazer valer, no seu seio, a dignidade dos seus integrantes como forma de garantir a felicidade pessoal de cada um deles. A construção de sonhos, a realização do amor, a partilha do sofrimento, enfim, os sentimentos humanos devem ser compartilhados nesse verdadeiro LAR, Lugar de Afeto e Respeito (ALVES, 2007, p. 336)
O direito das famílias e os direitos humanos estão ligados através do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual traz a garantia de igualdade entre as entidades familiares. Pois não é justo atribuir tratamento diferenciado entre as diversas formas de constituir família e filiação, porque são fenômenos sociais e o Direito deve acompanhar a evolução social (SANTANA, 2015, p. 18).
Foi consagrado no direito brasileiro a pluralidade familiar, assim, como base da sociedade, a família deve ser entendida como uma união de pessoas, desconsiderando-se quantidade e gênero. É considerada família desde que unam-se afetivamente e com propósito de construir família e, por isso, são protegidas pelo Estado. A família moderna destaca-se pela sua democratização, liberdade, igualdade, não discriminação, todos atendendo ao princípio máximo da dignidade da pessoa humana (SANTANA, 2015, p. 18).
Houve um redimensionamento na delimitação de família, uma ampliação, admitindo-se que as mais variadas formas de constituição sejam dotadas de direitos. Atualmente, a família moderna legítima pode ser formada pelo casamento, monoparentalidade, união estável, entre outras variadas formas, independente de quantidade de membros, gênero e consanguinidade, desde sejam ligadas pelo afeto e pelo amor (SANTANA, 2015, p. 18).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante o exposto, verifica-se que a família é um conceito mutável no tempo. O modelo para a constituição de família foi a família romana, a qual possuía traços fortes em que a hierarquização e a patrimonialização eram evidentes. Assim, a retrospectiva histórica feita, mostra que a preocupação com os indivíduos dentro da família não existia, nem mesmo tinham sua dignidade respeitada. A partir daí o conceito de família sofreu várias mudanças, seja por influência do Direito Canônico ou pelas legislações posteriores que adaptavam-se as necessidades dos seres humanos.
Foi verificado que esse conceito inicial de família sofreu várias mudanças decorrentes do avanço social, científico e tecnológico. A família, num contexto atual, passou a ser um ambiente em que, acima de tudo, as pessoas têm sua dignidade respeitada, sendo um local propício para o desenvolvimento pessoal e a autorealização.
Com o passar do tempo, foram surgindo outras formas de constituir família sem ser pelo casamento, assim, nasceu o instituto da união estável e outros demais. Portanto, a Constituição Federal de1988 foi de extrema importância, pois ampliou o conceito de família desvinculando-a do casamento, necessariamente, assim, surgiram outras formas de arranjos familiares.
REFERÊNCIAS
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Data da conclusão/última revisão: 28/08/2020
Oswaldo Moreira Ferreira e Diomar Aparecida Azevedo Melo
Oswaldo Moreira de Oliveira: Professor orientador, Doutorando e Mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade do Norte Fluminense; Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Bom Jesus do Itabapoana-RJ;
Diomar Aparecida Azevedo Melo: Bacharela em Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Unidade Bom Jesus do Itabapoana.
Código da publicação: 10565
Como citar o texto:
OLIVEIRA, Oswaldo Moreira Ferreira; MELO, Diomar Aparecida Azevedo..A família e sua evolução no tempo com enfoque na união estável. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 999. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/10565/a-familia-evolucao-tempo-com-enfoque-uniao-estavel. Acesso em 5 out. 2020.
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