Discutir acerca de princípios e valores éticos absolutos é inútil porque os interlocutores, se os há, se negam a esse tipo de contenda argumentativa. Quando a postura moral alude a valores que alguém tem por universais e eternos, esse algúem não vai dar o braço a torcer baixo nenhuma circunstância: assim se lhe torture, se lhe dê argumentos razoáveis ou se lhe enfrente com as necessidades de outras pessoas; seus valores supremos não sofrerão nenhum câmbio.

Nesse sentido, entrar em polêmicas com a Igreja católica – ou com qualquer outra facção conservadora – resulta uma perda de tempo e até um absurdo de raiz. Se se pensa que a orientação sexual, ainda que constitua parte da dignidade humana, deve seguir o rígido “projeto sexual do Criador” (para usar as palavras ditas em 1986 pelo então Cardeal Ratzinger) e, portanto, não pode ser praticada em nome de nenhum fim que se considera “contra natura”(1), nem de qualquer outra ordem pelo estilo, então apaga tudo e vámo-nos descansar. Nada do que sustentem os cientistas, os políticos, os juristas ou os equivalentes dos sacerdores em outras religiões, fará mover nem um milímetro à opinião da cúpula da Igreja católica sobre este tema, para dizer o mínimo.

Resulta em particular inútil recordar que os valores eternos e absolutos não se mostram nem absolutos, nem por vezes eternos. A consideração de “ser humano”, de “dignidade humana”, foi combiando ao longo da história inclusive por parte da mesma Igreja e, se não fora inútil, seria coisa de recordar algumas encíclicas como aquela na qual o papa Paulo III, referindo-se aos protestantes, assegurava que “enforcarei, matarei de fome, ferverei, esfolarei, estrangularei e enterrarei vivos a esses herejes infames; desgarrarei os estômagos e os úteros de suas mulheres e esmagarei as cabeças de seus filhos contra a parede”.

Salvo que as mulheres e os filhos dos hereges, deixando de lado aos próprios hereges, claro, não sejam considerados seres humanos, parece que há aí um pequeno problema enquanto ao absoluto dos valores. Certo é que sucedia em 1576 mas os valores que querem ser eternos, porque atemporais, não entendem de séculos.

Se não fora inútil, caberia argumentar que os papas fundadores do Santo Ofício tinham suas razões para obrar como obraram, na medida em que os valores não são nem tão eternos nem tão absolutos como para rechaçar os matizes. Opôr-se a Galileu era até razoável em 1633, quando se lhe obrigou a enunciar sua cérebre retratação. Mas não o é hoje, nem ninguém na Igreja católica, que eu tenha notícia, pretende fazê-lo. Sucede que desde 1633 até hoje hão passado quase quatro séculos. Talvez, pois, dentro de quatro mais a Igreja católica brasileira de então – se é que existirá Brasil, porque os sacerdodes seguro que sim – entenda que a união homoafetiva não somente é admissível senão que desejável.

O que passa é que dizer o que estou dizendo é inútil se se crê que os valores implicados são eternos e absolutos. De fato, o mais inútil de tudo é propor a discussão acerca do casamento (e da adoção) homoafetivo tendo em conta o que a Igreja católica possa opinar. Quando algo carece de solução, tampouco é um problema no qual se deva entretener-se.

Deixemos, pois, de lado as discussões inúteis. E em que pese sigam imperando entre as altas instâncias da hierarquia dominante brasileira os esquemas que relacionam de maneira estreita a natureza civil do matrimonio à religiosa, o melhor e mais prudente será sempre centrar-nos diretamente nas razões políticas, jurídicas e sociais do “problema” e reservarmos a questão dogmática para os assuntos próprios do dogma. Como a oportunidade de devolver às mulheres a alma. Porque não recordo quando, nem por parte de quem, mas sim que me parece que lhes foi negada por razões teológicas.

Restituamos aos homossexuais sua condição completa de ser humano, reconhecendo direitos e garantias que até agora lhes têm sido negados, direitos que assegurem (de forma inviolável, autônoma e digna) a capacidade à esse coletivo humano concreto de plena e livre realização pessoal e familiar, isto é, de pôr , no que se refere aos seus legítimos interesses, os direitos humanos e fundamentais ao efetivo serviço da não discriminação, da liberdade como não interferência arbitrária e da igualdade material, como princípios básicos que asseguram a invariante axiológica do respeito incondicional da dignidade da pessoa humana.

Ainda que somente seja por respeito aos valores absolutos.

Notas:

(1) Nesta linha se movem os argumentos mediante os que se condenava ( e segue condenado por um setor amplo da sociedade) as práticas homossexuais desde pensamentos com posições divergentes como os de Tomás de Aquino e o de Kant, mas ambos de uma influência decisiva na elaboração e transmissão ideológica dos valores e pautas morais sociais dominantes. Por exemplo, Tomás de Aquino, quem concluía que a homossexualidade é antinatural por ir contra a lei eterna que definiu nossa biologia e sua função procriadora como única finalidade da atividade sexual. E ainda com base neste fundamento, apenas alterado, se segue mantendo a condena por parte da Igreja católica, cuja influência social resulta inegável. Para kant, em câmbio, já não é a lei eterna, senão nossa própria natureza humana a que converte as práticas homossexuais no mais nefando dos vícios, em um dos mais imorais, inclusive pior que o suicídio, até o extremo de que o melhor seria nem falar dele; e se se decide a fazê-lo é porque ao constituir uma das maiores violações do “imperativo categórico” há que prevenir à gente sobre esta maldade. Kant se pronuncia nestes termos: “Um segundo crime “carnis contra naturam” é o ato sexual entre “sexus homogenii” no qual o objeto do impulso sexual é um ser humano, mas há homogeneidade em vez de heterogeneidade de sexos, como quando uma mulher satisfaz seu desejo com uma mulher, ou um homem com um homem. Esta prática também é contrária aos fins da humanidade, porque o fim desta em relação com a sexualidade é preservar a espécie sem degradar às pessoas, mas neste caso, nao se está preservando a espécie (como ocorria com um crime “carnis secundum naturam”), senão que se despreza à pessoa, se rebaixa ao ser até o nível dos animais e se desonra à humanidade”.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Manuella..União homoafetiva: uma discussão inútil. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 172. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/1154/uniao-homoafetiva-discussao-inutil. Acesso em 3 abr. 2006.

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