1-INTRODUÇÃO

Esse artigo tem como tema FILIAÇÃO AFETIVA NAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA e a sua conseqüente problemática. Enfoca em que medida a carga genética deve ser exclusiva para o reconhecimento da filiação e quais as implicações jurídicas da desconsideração do vínculo afetivo.

Desde a antiguidade os homens indagam sobre a possibilidade da reprodução sem que haja o envolvimento do ato sexual, é o que Aldrovandi; França[1] concluem após analisarem exemplos da mitologia como “Ates – filho de Nana, filha do Rei Sangário, que teria colhido uma amêndoa e colocado em seu ventre (Grécia)” e “Maria - mãe de Jesus (Bíblia)”, ficando visível a importância do nascimento e de descendentes.

Existem relatos de experiências no séc. XVI, porém, foi no século XIX que os cientistas começaram a pesquisar sobre o desenvolvimento embrionário e a fecundação humana.

No Brasil, conforme Sá[2], a evolução do conhecimento científico juntamente com a globalização, o declínio do patriarcalismo e a redivisão sexual do trabalho transformaram a concepção tradicional da família hierarquizada existente até a metade do século passado, deixando de ser a fonte fundamental da economia e da reprodução.

Essa mudança do paradigma ocorreu, também, devido à Constituição Federal Brasileira de 1988, que nos seus artigos 226 e 227, inovou trazendo a previsão da liberdade quanto ao planejamento familiar, incorporando ao ordenamento novos tipos de entidades familiares baseadas no afeto, e não mais inteiramente no aspecto biológico.

O Código Civil de 2002 possui em seu art. 1.597 as hipóteses de presunção de paternidade, sendo esse o primeiro critério para determinação da paternidade, dentre as quais está inserida no inciso V, a inseminação artificial heteróloga; entretanto, não há no Brasil legislação específica regulamentando as técnicas de reprodução humana assistida, por enquanto somente há projeto de Lei no Congresso. O segundo critério é o biológico e o terceiro o sócio-afetivo, mas qual deve prevalecer?

Diante da complexidade dos fatos sociais e da constante atualização na área tecnológica, surgem situações perplexas éticas e jurídicas, como, por exemplo, a utilização de um útero de substituição devido à impossibilidade de gerar de algumas mulheres, inovando a relação parentalidade-filiação sem que exista ainda uma solução correta para cada nova conduta.

Trata-se de um tema de extrema relevância no mundo jurídico, uma vez que representa uma problemática atual e interessante no âmbito da bioética e do direito civil, haja vista o aumento de situações fáticas de reproduções heterólogas que estão acontecendo cotidianamente com a utilização do novo conceito de família vinculado á afetividade.

O objeto de pesquisa pretende aprofundar uma questão pouco discutida, impensada até poucas décadas atrás, de forma a possibilitar outros operadores do direito a observar tal situação e ponderar sobre soluções éticas e morais para a mesma.

Por tudo isso, o tema abordado visa, além de se tornar mais uma fonte de conhecimento para acrescentar no estudo do assunto, levantar uma crítica construtiva, para que se possa avançar no que concerne aos conceitos jurídicos indeterminados, ainda bastante discutidos.

Ao final, é esperado que essa investigação alcance utilidades práticas, implicando na concepção atual de família, e que o afeto seja aceito como satisfatório para determinar vínculos na sociedade pós-moderna.

Ante a discussão, a hipótese dessa monografia defende que, em razão da evolução da biotecnologia estar afetando e transformando drasticamente as relações de família, trazendo novos paradigmas e situações, é necessário ampliar o critério em que essa relação está baseada, não podendo apoiar-se somente na consangüinidade dos membros, mais sim no afeto em que esta se construiu.

Desta forma, a importância do afeto está redimensionando as conseqüências jurídicas das relações materno-paterno-filial, sendo, para tanto, necessário a relativização do conceito de carga genética como fato determinante, olvidando a concepção patriarcal de família.

No caso de ser necessário, para a gestação desse embrião proveniente da reprodução assistida heteróloga, que outra mulher disponha seu útero, mesmo havendo uma troca sangüínea entre essa e o embrião, não haverá criação de nenhum outro vínculo.

Posto isto, nas relações familiares decorrentes das técnicas de inseminação assistida, os contraentes dessa tecnologia, mesmo não tendo a carga genética do futuro filho, terão a vontade de dar afeto á criança ainda por vir, o que é primordial para a evolução de todos os seres humanos.

Esse trabalho acadêmico tem como objetivo geral identificar o nexo entre o material genético e a relação de filiação e verificar em que medida a filiação decorrente da reprodução assistida heteróloga baseia-se no afeto.

Para que seja comprovado o objetivo geral deste trabalho, pretende-se abordar objetivos específicos, que ratificarão a idéia principal defendida, são eles: levantar a discussão acerca da filiação decorrente dos meios de reprodução assistida, descrevendo a importância do afeto na nova concepção de família; assim como as conseqüências e validades do contrato feito; apresentar o afeto como fator primário para definição da relação de filiação, sendo a carga genética condição secundária, de acordo com princípios constitucionais; considerando a possibilidade de afetividade no útero de substituição; estabelecer a relação parentalidade-filiação e averiguar quais as conseqüências na esfera jurídica da desconsideração do vínculo afetivo no mesmo.

2-REFERENCIAL TEÓRICO

 

Desde os tempos dos nossos ancestrais existem lendas, como a de “Ates” e a de “Jesus” já mencionadas, sobre a gravidez sem o ato sexual entre homem e mulher. O presente tema é de tamanha perplexidade e imaginação, até então, que desde a antiguidade vêm povoando historias dos nossos antepassados. Entretanto, nos dias atuais, com o avanço da ciência médica e o surgimento de novas tecnologias essas se tornaram possíveis.

Atualmente, uma das maiores religiões aceita no país e no mundo, a Católica, baseia sua historia em uma reprodução heteróloga (que mesmo só recebendo esse nome milênios depois, já se encontrava em um dos relatos mais importantes para os fiéis). Em Lucas, capítulo 1, versículo 18 da Bíblia encontra-se a prova disso:

27a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi e o nome da virgem era Maria. 28Entrando, o anjo disse-lhe: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo. 29Perturbou-se ela com estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação. 30O anjo disse-lhe: Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. 31Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. 32Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó, 33e o seu reino não terá fim. 34Maria perguntou ao anjo: Como se fará isso, pois não conheço homem? 35Respondeu-lhe o anjo: O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus. 36Também Isabel, tua parenta, até ela concebeu um filho na sua velhice; e já está no sexto mês aquela que é tida por estéril, 37porque a Deus nenhuma coisa é impossível.

Desta forma, ficam comprovados duas essencialidades da reprodução assistida heteróloga: uma em relação á Maria, que o filho concebido não será do marido e ocorreu sem que houvesse ato sexual; e outra em relação á Isabel, que mesmo sendo estéril, conseguiu engravidar, comprovando que nada é impossível.

Apesar do texto expresso da Bíblia, a Igreja Católica para se opõe á esse tipo de concepção.  De acordo com Frazão[3], os argumentos dados pela Igreja baseiam-se no fato de que apenas o matrimônio torna legítima a procriação, sendo necessária a união carnal dos cônjuges unidos em casamento; caso não haja essa harmonia de preceitos, estaríamos diante de uma imoralidade.

Assim, é possível observar na posição da Igreja Católica, frente a sua base teórica, que Maria era virgem, não podendo, portanto, seu filho ter advindo de uma relação carnal, e também não era José o pai biológico do filho a quem ela deu a luz. Isso implica que o filho não surgiu da união desses; conseqüentemente, utilizando os próprios argumentos da Igreja Católica, haveria uma procriação ilegítima sem união carnal que, seria em si, uma imoralidade.

Não obstante para os seguidores dessa religião, não há contradição, pois somente para pessoas tocadas pela divindade, seria acessível essa técnica. Em outras palavras: só Deus pode fazer uso da inseminação artificial, os mortais não.

Entretanto, conforme a história relatada na Bíblia, José primeiro negou o filho, depois, segundo a lenda, ele foi visitado por um anjo que o esclareceu e, então acolheu o filho que estava por vir como se seu fosse e deu-lhe amor e afeto, mesmo sabendo não ser este seu descendente biológico. Assim, por mais retrógrado que seja essa oposição católica às técnicas de reprodução assistida heteróloga na conjuntura atual, por ser realizada pelo homem, devemos considerar que o afeto já existia como fator determinante nas relações paterno-filiais. É o que se pretende demonstrar na referida tese.

A desembargadora Maria Berenice Dias[4] afirma em seu texto:

Ao longo da história, a família sempre gozou de um conceito sacralizado por ser considerada a base da sociedade. As relações afetivas eram primeiro apreendidas pela religião, que as solenizou em união divina, abençoada pelos céus.

Devido á imaginação do homem acerca do assunto e a necessidade da existência de “milagres”, como o da Bíblia, começaram as pesquisas sobre isso em todo o mundo. Em meados do século XIII, alemães, italianos e ingleses produziram experiências com a técnica da inseminação artificial em animais. De acordo com o já mencionado texto de Aldrovadi;França[5], em 1755, Lazzaro Spallanzani (biólogo italiano) obteve resultados positivos na fecundação de mamíferos.

Para José Emílio Ommati[6]:

Apenas no final do séc. XIX os cientistas iniciaram pesquisas a respeito do desenvolvimento embrionário. Nesse período descobriram que o óvulo desempenhava papel importante para a fecundação humana, desmistificando a idéia de que apenas o homem, com seu espermatozóide, era o responsável pela geração de vida humana, sendo a mulher considerada mero receptáculo para o novo ser.

O autor, Guy Durand[7], traduzido por Porphírio Figueira de Aguiar Netto, ensina que:

(...) não se deve esquecer que, no final do século XIX e início do século XX, foi a medicina alemã que proporcionou o modelo para a medicina moderna, relacionando a efetividade de seus implementos à experimentação envolvendo seres humanos.

Conforme Lílian Lúcia Graciano[8], o direito á vida começou a ser pesquisado, não somente pelas ciências médicas, mas também pela Sociologia, Antropologia e, conseqüentemente sendo influenciada pela Ética, visto que a vida humana é o bem jurídico mais importante dos direito fundamentais. A mesma autora em seu texto explica:

As ciências biomédicas necessitavam de um paralelo para discutir e definir até onde a evolução das pesquisas poderia caminhar. Essas ciências tinham dois objetivos, portanto: a evolução biológica cultural e a ética. Foi então que o Van Rens Selaer Potter, em 1971, trouxe o termo Bioética, que se traduz por um conjunto de pesquisas e práticas pluridisciplinares, objetivando elucidar e solucionar questões éticas provocadas pelo avanço das ciências biomédicas.

Surge, deste modo, a engenharia genética ou técnica de reprodução humana medicamente assistida que consiste em métodos científicos empregadas pelos médicos, utilizando gametas femininos e masculinos para constituição de uma nova vida humana em laboratório, visando possibilitar a filiação á casais que são impedidos, pela esterilidade ou infertilidade, de procriar naturalmente.

Essa fertilização feita in vitro é definida por Frazão[9] como: “(...) técnica de fecundação extracorpórea na qual o óvulo e o espermatozóide são previamente retirados de seus doadores e são unidos em um meio de cultura artificial localizado em vidro especial”.

Cientificamente chamada de FIVET (Fecundação in vitro com Embrio-Transfer), pode dar-se de suas formas: homóloga ou heteróloga. A primeira ocorre com a utilização dos gametas do casal interessado (espermatozóide do marido e óvulo da esposa). A segunda, entretanto, utiliza material genético doado por terceiros anônimos devido à impossibilidade ou dificuldade de reprodução de uma ou ambas as pessoas do casal.

O Código Civil de 2002, apesar de sua desatualização nascente, engloba as possibilidades de FIVET, tanto homóloga, quanto heteróloga, no art. 1.597, incisos III á V, abaixo transcrito:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

A técnica de reprodução artificial heteróloga é singular porque em decorrência da revolução biológica nos deparamos com o fato possível da paternidade e maternidade múltipla. Entretanto, o progresso cientifico, em seu ritmo célere, trouxe consigo a solução às necessidades da sociedade em conseqüência dos avanços médicos e, também, a desatualização do Direito.

Não há, no Brasil, nos dias presentes, nenhuma lei vigente que regule o assunto. Há resoluções médicas (como a 1.358 do CFM), porém essas não abordam a FIVET juridicamente, o que nos leva a observar uma lacuna normativa e a necessidade de legislação especifica devido “as clínicas especializadas em reprodução humana assistida estarem atuando a todo o vapor, em face do volume de pessoas inférteis que anseiam por filhos”, conforme ensina José Roberto Moreira Filho[10] .

O autor supracitado complementa em seu texto:

Apenas para não sermos omissos, foi publicada, em 05 de janeiro de 1995, a Lei 8.974, também chamada de Lei de Biossegurança, que estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética e que condena, como crime, em seu artigo 13º, quaisquer manipulações de células germinativas humanas, justamente como precaução à clonagem e eugenia e que levou o Conselho Nacional de Saúde a editar a Resolução 196/96, que dispõe sobre as normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, e que foi, posteriormente, complementada pela Resolução 303/00, do mesmo órgão, para se incluir o tema especial da reprodução humana.

Douglas Augusto Fontes França[11] ao analisar um caso concreto, transcreve o parecer de Andressa de Oliveira Lanchotti, representante do Ministério Público Estadual:

(...) a promotora de Justiça afirmou: “o direito tem a função precípua de regular as relações sociais. Todavia, os avanços tecnológicos muitas vezes não são acompanhados pela adequada regulamentação. Quando tal ocorre, cabe ao jurista, ao analisar o caso concreto, conferir as normas jurídicas uma interpretação em consonância com os valores vivenciados pela sociedade, colmatando as lacunas porventura existentes e garantindo a coerência e a legitimidade do sistema jurídico.

Assim, o melhor recurso é o exame de cada caso concreto. A técnica em questão da fecundação in vitro heteróloga, na opinião de Alberto Silva Franco[12], é a que traz os mais sérios problemas:

No que tange a figura do doador, as questões referentes às cautelas que devem cercar o ato de doação e, em particular, nessa área, a questão da necessidade de preservação ou não do anonimato. Ainda nesse contexto não se pode perder de vista a ocorrência da "dupla paternidade", ou seja, a existência de um pai genético e de um pai legal. Se não bastasse, há ainda a ser objeto de consideração a situação do filho gerado: a necessidade de explicitação das relações que devem existir entre o filho e o pai legal ou entre o filho e o pai genético; não se podendo excluir, de todo, o direito do próprio filho de conhecer sua identidade genética.

Desta forma, a complexidade trazida pela questão é visível, posto que a identidade genética do doador deve permanecer confidencial, conforme o principio do anonimato, sendo essa uma garantia ética por estar na Resolução 1.358/92; assim como a identidade da criança e do casal deve permanecer em sigilo para o doador. Esse princípio confronta uma garantia constitucional da pessoa gerada, o direito à identidade biológica, que visa investigar quem foi o doador de material genético. Ambos os princípios são direitos personalíssimos e visam a proteção familiar dos recorrentes á esse método.

Importante é salientar que tanto pode ocorrer a doação do gameta masculino, espermatozóide, quanto do gameta feminino, óvulo. Essa última é chamada de ovodoação, o que desmistifica o conceito de que a mãe é sempre certa.

O sigilo da pessoa do doador difere do princípio do sigilo profissional, esse é necessário para o exercício da atividade médica, assegurado pela Constituição Federal Brasileira, art. 5, inciso XIV, e também pela Resolução 1.358/92, capítulo IV:

2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.

3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas

exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

Para Alejandro Bugallo Alvarez[13]:

(...) o anonimato garante a autonomia do doador e dos pais que assumem a paternidade, mas certamente, nega a autonomia na relação da filiação, ao menos a partir do momento em que o filho adquire maioridade. Não procede, igualmente, a afirmativa de que a paternidade biológica esteja ultrapassada porquanto superada pela paternidade afetiva. Uma coisa é que se reconheça a relevância da paternidade afetiva porque o importante é criar condições para o desenvolvimento da personalidade da criança (lado psicológico e moral da paternidade) e outra é sacrificar, em função da ênfase na paternidade afetiva, o direito à identidade, mesmo que não tenha qualquer efeito patrimonial.(...)

Andrea Aldrovandi e Danielle Galvão de França[14] citam em seu texto dois posicionamentos de autores que concordam com a quebra de sigilo da pessoa do doador:

Defendendo o direito à identidade genética, leciona Tycho Brahe Fernandes (18): "... ao se negar a possibilidade do aforamento de ação investigatória por criança concebida por meio de uma das técnicas de reprodução assistida, em inaceitável discriminação se estará negando a ela o direito que é reconhecido a outra criança, nascida de relações sexuais.

            No mesmo sentido posiciona-se Álvaro Villaça de Azevedo (19), ao defender que o filho gerado através de uma das técnicas de reprodução assistida poderá, a qualquer tempo, investigar a sua paternidade, devendo os responsáveis pelos dados do doador, fornecê-los, em segredo de justiça.

Apesar de haver corrente a favor e contra o anonimato do doador, os doutrinadores que crêem ser possível a investigação do material genético pouco atentam que nos dias atuais a paternidade afetiva prevalece à biológica, pois não mais como o Código Civil discriminador de 1916, a presunção da paternidade se estabelece no seio da familia.

Maria de Fátima Freire de Sá[15] cita João Baptista Villela:

Pensar que a paternidade possa estar no coincidir de seqüências genéticas constitui, definitivamente, melancólica capitulação da racionalidade critica neste contraditório fim-de-século.

Para Maria Berenice Dias[16]:

A nova ordem jurídica introduzida em 1988 pela Constituição Federal priorizou a dignidade da pessoa humana e proibiu qualquer designação ou discriminação relativa a filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificações aos filhos havidos ou não da relação de casamento, como também ao vínculo gerado pela adoção.

Especialmente na técnica de reprodução assistida heteróloga a paternidade é estabelecida pelos vínculos afetivos, não no vínculo sanguíneo, pois o ato de procriar não ocorreu da forma natural, porém da mesma forma decorreu de ato de amor.

De acordo com Jacqueline Figueiras Nogueira[17]:

A afeição que nutre as relações pessoais, notadamente na seara das relações familiares e, em especial, o amor e o afeto incondicionais entre os pais e filhos, é ingrediente presente, notadamente, nas relações parentais oriundas da inseminação artificial heteróloga e da adoção, haja vista que o elo parental formado nestas espécies de filiação é engendrado, precipuamente, a partir de uma nova ordem: a filiação fundada sobre a vontade, que emana do fundo do coração de que deseja um filho, dos sentimentos, e se estabelece sobre a promessa da verdade afetiva, relativizando a verdade genética da filiação.

A mesma autora ainda conclui, na mesma obra que “pai tem que ser muito mais que simplesmente pai jurídico ou biológico, tem que ser pai de coração, de adoção e de doação”.

Concordando com o pensamento da autora supracitada, Maria Berenice Dias, no seu texto “Entre o ventre e o coração” ensina que:

O desafio dos dias de hoje é buscar o toque diferenciador das estruturas familiares que permita inseri-las no Direito de Família. Mister isolar o elemento que enseja delimitar o conceito de entidade familiar. Para isso, é necessário ter uma visão pluralista das relações interpessoais. Induvidosamente são o envolvimento emocional, o sentimento de amor, que fundem as almas e confundem patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos, que revelam a presença de uma família. Assim, não se pode deixar de reconhecer que é o afeto que enlaça e define os mais diversos arranjos familiares. Vínculo afetivo e vínculo familiar se fundem e se confundem.

A desembargadora Maria Berenice Dias[18], no texto “Paternidade homoparental” afirma que:

A moderna doutrina não mais define o vínculo de parentesco em função da identidade genética. A valiosa interação do Direito com as ciências psico-sociais ultrapassou os limites do direito normatizado e permitiu a investigação do justo buscando mais a realidade psíquica do que a verdade eleita pela lei. Para dirimir as controvérsias que surgem – em número cada vez mais significativo – em decorrência da manipulação genética, prevalece a mesma orientação. Popularizaram-se os métodos reprodutivos de fecundação assistida, cessão do útero, comercialização de óvulos ou espermatozóides, locação de útero, e todos viram a possibilidade de realizar o sonho de ter filhos.

A consangüinidade nem sempre trouxe convívio social e prestigio nas relações familiares. Desta forma, a afetividade, muitas vezes, não era alcançada quando a verdade biológica era descoberta, o que fez o paradigma mudar. Passou-se a buscar a família com a finalidade de felicidade.

De acordo com Paulo Luiz Netto Lobo[19]:

O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue. A história do direito à filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado à consangüinidade legítima. (...) A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida.

Mister se faz também abordar outra questão sobre o rompimento do princípio mater semper certa est, devido a existência da mãe de substituição, chamada também de “barriga de aluguel”. Com esse procedimento, o óvulo de uma mulher (a esposa do casal que procurou tratamento ou uma terceira) é fertilizado e transferido para outra, que irá gestá-lo.  Essa necessidade para abrigar e desenvolver o bebê no útero de outrem não pode decorrer de contrato.

De acordo com a reportagem de Cristiane Segatto,com Sergio Adeodato (Recife) e Jorge Pontual (NovaYork)[20], “Os filhos de contrato - Primeiros quíntuplos de proveta nascidos no Brasil reacendem a discussão sobre o empréstimo de úteros” publicada no dia 21 de junho de 1999 na Revista Época, “Essa situação atinge apenas 2% dos casais que não conseguem ter filhos naturalmente. Resta a eles recorrer às mães de aluguel ou aos úteros emprestados”.

Para o médico Paulo Eduardo Olmos[21] “outro motivo é a questão do anonimato, que não é possível nos procedimentos de barriga de aluguel”. O autor supracitado ainda conclui que “(...) é necessário que haja traços sanguíneos entre as duas mulheres. (...) Deve ser parente de até segundo grau: mãe, irmã, prima ou sobrinha; e a condição é que o empréstimo do útero não seja um “serviço pago”, visto que a onerosidade desse contrato é proibida pela Resolução Médica 1358/92 do CFM.

Entretanto, é concreto o fato de que muitas vezes a onerosidade ocorre. No site[22] do Diário Popular, jornal veiculado na Internet, na terça-feira, 30.01.2001, saiu a seguinte reportagem de Jarbas Tomaschewski:

 

 Cidade: Barriga de aluguel causa espanto na cidade

 

O anúncio surpreendeu os pelotenses. A fotógrafa M.W. (iniciais fictícias escolhidas por ela) anunciou nos classificados do Diário Popular o aluguel de sua barriga a um casal que não pode ter filhos: "Barriga - (humana) para inseminação artificial". Um dia depois de publicada a nota, ela já foi procurada por interessados daqui e de outros estados.

M.W. relata ao Jornal que decidiu alugar sua barriga para ajudar pessoas que não podem chegar a paternidade e desejam muito ter um filho e por causa do dinheiro.

Mãe de três filhos, sendo um adotivo, pretende fazer um contrato com o casal, cobrando entre R$ 20 mil e R$ 30 mil - o valor pode ser negociado, mais os gastos durante a gravidez. O aluguel é pelo útero, enfatiza, não pretendendo doar óvulos. Em seu último parto, ela ligou as trompas.

A fotógrafa se defende das críticas que vem recebendo: "Não estou prejudicando ou matando ninguém, nem destruindo meu corpo. Pai e mãe são aqueles que olham para a criança e o amam. Fazer filho é muito fácil, qualquer um faz".

Para a filha mais velha, P.W.L.R, de 14 anos, a mãe está fazendo algo diferente. "Acho legal. Não é loucura", diz. O lado material desta decisão tem um peso bastante forte, admite M.W., que afirma ter dívidas feitas em seu nome, mas que pretende pagar.

De acordo com o doutrinador Guilherme Calmon Nogueira da Gama[23]:

(...) podem ser encontradas três mulheres no cenário formado no âmbito da técnica conhecida como maternidade-de-substituição: a) a fornecedora do óvulo que não deseja se tornar mãe; b) a que engravida, por solicitação normalmente de um casal que pretende receber a criança na sua família; c) aquela que deseja ter um filho, ainda que não haja qualquer vinculo biológico (nem o óvulo, tampouco a gravidez). A doutrina tem considerado que na eventualidade da maternidade-de-substituição se efetivar – ainda que contrariamente ao ordenamento jurídico –, para o Direito a mãe da criança será determinada pelo parto e, conseqüentemente, aquela que desejou receber a criança na sua família – ainda que seja fornecedora do óvulo que foi fecundado – não terá qualquer vínculo jurídico com a criança diante do critério do parto(...)

José Manuel Borges Soeiro[24] explicita que apesar de não concordando com a utilização da maternidade-de-substituição, o caso é complexo se posto nas condições das técnicas da reprodução assistida heteróloga:

Também á luz das recomendações do Conselho da Europa, e, acolhido na generalidade das legislações, é interdita a chamada “maternidade de substituição”, considerando nulo e de nenhum efeito o contrato pelo qual a mulher se obrigue a suportar a gravidez por conta de outrem e a entregar a criança depois do parto. Vem-se entendendo a maternidade como “estrutura primordial do parentesco” e que, conseqüentemente, é inadmissível uma renuncia previa à maternidade. Onde, no entanto, não é pacífica a opção do legislador é relativamente a toda a problemática que se prende com a inseminação artificial heteróloga.

Alexandre Gonçalves Frazão[25] questiona o caráter ético da figura da “barriga de aluguel”: “Não seria mais uma vez intervir na liberdade do feto que passará 9 meses se nutrindo biológica e afetivamente por uma mulher que não será sua mãe? O que é, diante dessas novas possibilidades, ser mãe?”.

Alberto Silva Franco[26] também ingada “até que ponto um ser humano pode ser objeto de uma transação?”. José Emílio Medauar Ommati[27], analisando essa situação conclui que “Essa prática tem tido repercussões bastante negativas, pelo fato de, muitas vezes, a mãe substituta se afeiçoar ao ser que vai gerar, descumprindo a obrigação contratual de devolver o recém-nascido à mulher que a contratou.”.

Lílian Lúcia Graciano[28] cita Eugenio Carlos Callioli, pois este pondera no sentido que:

(…) essa terapia da fertilidade, que se utiliza algumas seres humanos como instrumentos para satisfação pessoal de outros, exprime um subjetivismo levado às últimas conseqüências. Por mais justificável que possa ser o desejo de paternidade ou maternidade, não é eticamente admissível que sejam instrumentalizados valores pessoais, de modo a se colocar em posição privilegiada, aqueles que desejam um filho a qualquer preço e em situação inferior aqueles que participam do processo.

Por pensar também que essa é uma condição degradante á mulher gestante, José Emílio Medauar Ommati[29], conclui que “Essa prática da mãe de substituição, não deve ser acolhida no Brasil porque o direito de ter filhos entra em choque com o princípio da dignidade da pessoa humana, alicerce do nosso Texto Fundamental.”.

A respeito do assunto Sérgio Ferraz[30] afirma que:

na conformidade das pautas constitucionais vigentes no Brasil, acreditamos inviável falar-se em contrato, bem como em remuneração (e, pois, em aluguel), na espécie: pessoas, presentes ou futuras, não podem ser objeto de contrato.

O enunciado 22 do CEJ (Centro de Estudos Judiciários) fixou que: “A função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”.

Por sua vez o enunciado 23 do CEJ interpretou que:

A função social do contrato, prevista no art. 421. do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.

Portanto, o Código Civil de 2002 rege essa posição desfavorável á maternidade de substituição por não haver legislação específica que o faça, estabelecendo qual objeto é plausível de contrato:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Diante a perplexidade e complexidade do referido tema na atualidade e suas implicações jurídicas, que devido a existência de lacunas normativas, situações decorrentes da técnica de reprodução medicamente assistida heteróloga devem ser analisadas caso á caso. A relação familiar está envolvida diretamente na intervenção biológica do progresso científico baseada no amor entre os seus membros.

Não obstante, há quem não aceite a utilização da técnica abordada nessa monografia. Alexandre Gonçalves Frazão[31] explica que esses fundamentam-se no:

caráter anti-ético de se recorrer a gametas e embriões de terceiros é o fato de que essa prática fere a liberdade e dignidade do embrião e do indivíduo dele resultante, pois este teria sua origem biológica diferente da sua origem social..

José Manuel Borges Soeiro[32] traz a posição do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida:

(...) este Conselho defende que nem tudo o que é tecnicamente possível é necessariamente desejável para a vida e para a dignidade humana. E a crescente procura de reprodução heteróloga não pode considerar-se como argumento válido a seu favor, já que a maioria desses casais, num desejo exacerbado de terem o filho pretendido, não tem espaço psicológico suficientemente liberto para debater como objetividade questões éticas e acabam por serem iludidos nas suas verdadeiras pretensões.

REFERÊNCIAS

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ALVAREZ, Alejandro Bugallo. Princípios informativos da relação de filiação: indagações à luz dos progressos da biotecnologia. Disponível em: <http://www.puc-rio.br/sobrepuc/ depto/direito/revista/online/rev15_aalejandro.html>. Acesso em: 20 ago.2005.

DIÁRIO POPULAR. Cidade: Barriga de aluguel causa espanto na cidade. Disponível em:  <http://www.diariopopular.com.br/30_01_01/jt290101.html>. Acesso em: 20 out. 2005.

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Como citar o texto:

GRANJA, Aline Ferraz de Gouveia..Filiação afetiva nas técnicas de reprodução assistida heteróloga. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 196. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/1521/filiacao-afetiva-nas-tecnicas-reproducao-assistida-heterologa. Acesso em 20 set. 2006.

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