A usucapião, vem do latim capio = “tomar” e usu = “pelo uso”, tomar pelo uso, é uma situação fática de aquisição primária de propriedade. Adentrou no Direito mediante o procedimento de juridicidade, ou seja, a usucapião foi regulamentada pela Carta Magna e infralegislações como instituto, o que lhe conferiu valor e segurança jurídicos.

A usucapião, como a etimologia mostra, é a aquisição do domínio de um bem material ou imaterial pelo uso, posse prolonga. A posse da usucapião vislumbra a combinação de alguns requisitos comuns entre si, idoneidade do bem a sujeitar-se a usucapião, posse mansa, pacífica e contínua, lapso temporal, ou comuns com os específicos, justo título e boa-fé.

A usucapião está insculpida nos arts.1238 a 1247 e Art.1260 a 1262, os quais primeiramente remetem a aquisição de bens imóveis e, por último os bens móveis.

Os bens móveis e os bens imateriais não admitem modalidades de aquisição, o que permite a conversão da posse em domínio com mais celeridade. Já os bens imóveis, por ter como fundamento a função social, encontram mais complexidade na obtenção do domínio, que precisa ser resultado de uma das modalidades de usucapião.

¹ANA CAROLINA CARNEIRO: Advogada, Bacharela em Direito pela Unicap. Pós graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Superior de Advocacia - ESA, da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Pernambuco/ Faculdade Joaquim Nabuco.

Recentemente uma nova modalidade de usucapião foi inserida no corpo normativo do Código Civil de 2002, por uma alteração na Lei 11.977/2009, referente ao programa federal de habitação popular, pela Lei 12.424/2011, que acresceu um novo suporte fático, o abandono de lar, como se verá na redação do Art. 1240-A, a seguir:

Art. 9o. A Lei no. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 1.240-A: Art. 1.240- HYPERLINK "http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm" HYPERLINK "http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm" HYPERLINK "http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm"A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.  § 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 2o (VETADO). (Grifo nosso)

A usucapião por abandono de lar tomou para si como espelho o alcance do objeto de aquisição da modalidade especial urbana, área urbana com metragem de 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), os requisitos comuns  de idoneidade do bem a sujeitar-se a usucapião, imóvel fruto de moradia própria ou da família; posse mansa, pacífica e contínua e que o usucapiente não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural; com vedação de se reconhecer ao mesmo possuidor o direito de usucapião por mais de uma vez; combinados ao lapso temporal reduzido de 2(dois) anos apenas e os requisitos específicos da boa-fé, do justo título, modalidade especial prevista no Art. 183 da CF/88, e o abandono de lar, que lhe é característico.

A usucapião familiar se processa na Vara da Família, logo após o reconhecimento da relação de casamento ou união estável e o prazo bienal exigido, seguindo o rito ordinário à luz do Art.271 do CPC.

                 A razão primordial do Art.1240-A, usucapião especial por abandono de lar, ou mesmo usucapião familiar é bem clara, dar moradia a quem não tem. Na prática a iniciativa não pareceu demasiadamente convincente para alguns estudiosos do Direito, por que afasta a aplicabilidade das normas cogentes de direito alheio ao campo dos direitos reais, o direito das famílias.

A norma instituída no Código Civil por meio do Art.1240-A interfere na estabilidade das normas, desestruturando todo instituto com sua aplicabilidade, ou seja, as normas preexistentes competentes para reger um instituto ficam suspensas pela incidência de uma norma especial de outro instituto.

O instituto diretamente atacado pela usucapião foi do regime de bens, por que ao instituir a usucapião por abandono e conceder o domínio integral do bem exclusivamente a um dos ex-conviventes, desrespeita a escolha, na época dos contraentes de núpcias, da partilha, se optado regime diverso da separação obrigatória, como a comunhão universal, parcial e até a participação final nos aquestros, favorável a ambos, ou, ainda, o direito a metade dos bens adquiridos onerosamente por esforço em comum do ex-companheiros, fazendo surgir à interpretação da ressurreição da culpa, expurgada com EC 66/2010, pelo fato do ex-convivente, em certos casos, exercer sua liberdade de sair voluntariamente do lar.                                 

O benefício da usucapião do imóvel que servia como moradia para ambos conviventes, com ou sem família, gera pela norma um status de predileção pelo ex-convivente abandonado e um desprezo pela conduta “reprovável” do outro, ficando esse a própria sorte e aquele garantido pelo domínio do imóvel, como compensação pela evasão do ex-convivente e o fim de uma relação desgastada, que se dera presumidamente por culpa do mesmo.

Doutrina a parte desconsidera que a norma do Art.1240-A tenha evocado a culpa, por ser um retrocesso, como critério para beneficiar o domínio exclusivo do imóvel pelo abandonado, tratando-se, apenas da união dos elementos objetivos da usucapião por fluência do lapso temporal.

 O legislador teve a intenção, ao transferir o domínio integral do imóvel, de punir o ex-convivente pela evasão voluntária do lar, pondo em dúvida seu desempenho harmonioso com os deveres de convivência, atribuindo-lhe culpa, isso deu margem ao locupletamento do ex-convivente abandonado, ferindo, assim, o princípio constitucional da igualdade.

Nem sempre o abandonado, resguardado pela norma do Art.1240-A, é o injustiçado, pode-se atentar para situações como de violência, em que é sabido ser a mulher, na maioria das vezes, obrigada a deixar a casa onde mora para evitar consequências mais desastrosas a si mesma e aos filhos, contribuindo para a aquisição pelo ex-convivente de sua quota parte ; evasão da casa por um dos ex-conviventes para evitar que o episódio de “guerra” declarada se sustente ao clímax, pondo a perder o resto da dignidade de um pelo outro e o respeito pelo fim da união, ou ainda; quando um dos ex-conviventes expulsa o outro da residência para configurar o abandono, a fim de se garantir patrimonialmente. A solução para essas celeumas é mover ação cautelar de separação de corpos a fim de garantir dentre outros, direito em relação ao imóvel, como defendem alguns doutrinadores.

Das situações alhures podemos afirmar que houve abandono? Se entendêssemos como hermenêutica do Art. 1240-A, certamente a resposta seria positiva, mas compartilhamos do pensamento que a saída voluntária do lar pelo ex-convivente durante o lapso temporal de 2 (dois) anos, nas situações indicadas acima, não caberia o abandono, por que a saída do lar não se deu voluntariamente, mas de forma viciada, coagida.

 A saída voluntária de um dos ex-conviventes é um critério frágil para representar o abandono, visto que pode ocasionar o cometimento de injustiças incalculáveis, não só a pessoa que deixou o lar, mas também para a família como um todo, devendo a doutrina e a jurisprudência perceber, analisando caso a caso, o abandono.

Os apontamentos referentes à aplicabilidade do Art. 1240-A demonstra a insegurança jurídica de adequar a modalidade de usucapião familiar a prática dos casos de família, posto que o procedimento mais salutar é a partilha, quando possível, por apontar uma saída amigável para os ex-conviventes e não uma solução  precipitada de ganho patrimonial a compensar um desgaste natural da convivência, apontada como consequência pelo usucapião familiar.

REFERÊNCIAS:

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AMORIM, Ricardo Henriques Pereira. PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE A USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA FAMILIAR E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO DE FAMÍLIA. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2948, 28 jul. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19659/primeiras-impressoes-sobre-a-usucapiao-especial-urbana-familiar-e-suas-implicacoes-no-direito-de-familia>.

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Boaventura Siqueira, Heidy Cristina. Usucapião Especial Urbano por abandono de lar: comentários ao 1.240-A do Código Civil Brasileiro. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,usucapiao-especial-urbano-por-abandono-de-lar-comentarios-ao-artigo-1240-a-do-codigo-civil-brasil>

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol 4: Direito das Coisas. 23ªEd. rev. Atualizada e ampliada de acordo com a Reforma do CPC e com o Projeto de Lei nº 276/2007. São Paulo, Saraiva, 2008. 

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VOLTOLINI, Gabriela C. Buzzi. A nova forma de aquisição de propriedade: a usucapião familiar. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/novosite/artigos>.

 

 

Elaborado em outubro/2013

 

Como citar o texto:

CARNEIRO, Ana Carolina..Sobre o Novo Artigo 1240-A do Código Civil Brasileiro: Usucapião Familiar: resenha crítica a partir de: Albuquerque Júnior, Roberto Paulino de; Gouveia Filho, Roberto Pinheiro Campos. Usucapião Famili. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1240. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/3535/sobre-novo-artigo-1240-codigo-civil-brasileiro-usucapiao-familiar-resenha-critica-partir-albuquerque-junior-roberto-paulino-de-gouveia-filho-roberto-pinheiro-campos-usucapiao-famili. Acesso em 16 mar. 2015.

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