Da equiparação do companheiro ao cônjuge para fins de Direito Sucessório
INTRODUÇÃO
As relações afetivas entre pessoas não casadas remontam a tempos antigos, sendo condenadas ou aceitas pelos povos remotos. Um exemplo é a Roma antiga, onde tais relações eram tidas como comuns, prevendo, inclusive, direitos legais aos concubinos. Entrementes, com a superveniência da Idade Média e do direito canônico, o casamento, com todas suas solenidades, ganhou supervaloração em detrimento da união estável, que veio a ser condenada e considerada ilegal, sem qualquer tutela jurídica.
A queda do feudalismo, bem como a modernização, evolução e aumento na complexidade das relações humanas, fez com que a sociedade aceitasse cada vez mais outros tipos de relacionamentos afetivos, incluindo-se a união estável. Assim, importantes foram as alterações legislativas nesse sentido. Nesse bojo, a Carta Magna de 1988 reconheceu a união estável como entidade familiar, equiparando-a ao casamento para fins de direitos e deveres, inclusive sucessórios, nos termos de seu artigo 226, §3º. Posteriormente, sobreveio o Código Civil de 2002, regulando, em seu artigo 1.790, os direitos sucessórios aplicáveis ao aludido instituto.
Entretanto, a legislação civil apresentou um retrocesso em relação à Constituição Federal. Destarte, a Lei Civilista de 2002 feriu os princípios da dignidade humana e da igualdade, uma vez que trouxe tratamento inferior ao companheiro em relação ao cônjuge para fins de direitos sucessórios. Nesse sentido, a discussão do tema repercutiu na seara judicial e doutrinária, com diversos posicionamentos e decisões.
Portanto, o objetivo desse trabalho é analisar a possível inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002, que estabelece regime sucessório diferenciado entre companheiros e cônjuges, a despeito de o texto constitucional ter equiparado ambos os institutos. Almeja, também, demonstrar a evolução do conceito de união estável na sociedade brasileira, bem como sua gradativa aceitação e proteção legal, logrando-se espelhar os avanços legais, doutrinários e jurisprudenciais sobre o referido tema.
MATERIAL E MÉTODOS
Em razão do modelo de trabalho adotado e dada sua característica sui generis, o material empregado será a análise de bibliografia, por meio de artigos científicos e sites eletrônicos da web, comparando-a com a legislação nacional, principalmente com a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 e o Código Civil de 2002. Dada sua característica, por evidente que esse trabalho não pretende, de forma alguma, esgotar o tema, ao contrário, essa será apenas uma breve explanação do assunto que guarda consigo uma gama de vertentes passíveis de maiores análises e discussões.
DESENVOLVIMENTO
A união estável, que sempre foi vista como um fato jurídico, possui, na sociedade brasileira atual, status de entidade familiar. Destarte, a modernização, o estilo de vida apressado, o aumento do custo de vida e a necessidade de, primeiramente, buscar uma condição financeira e profissional estável, têm levado as pessoas a optarem por este tipo de relação, ao invés do matrimônio (TARTUCE, 2017, p. 195). A união estável, desde os tempos medievais, foi duramente discriminada, uma vez que ia de encontro à relação conjugal, instituição considerada pura e sagrada pelo Estado, Igreja e sociedade. Por vários anos foram negados aos companheiros quaisquer direitos familiares ou sucessórios (TARTUCE, 2017, p. 195).
A situação supramencionada, no Brasil, só veio a ser revertida com o advento da Carta Magna de 1988, que trouxe proteção a tal instituto de forma legalmente expressa. Assim, a Lei Maior reconheceu, em seu artigo 226, § 3º, a união estável como entidade familiar, equiparando-a ao casamento, em termos de direitos e deveres, inclusive sucessórios. Tais direitos vieram a ser regulamentados em legislação posterior (MASNIK, 2003, s. p.). Assim descreve o aludido dispositivo legal:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [omissis]
§3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (BRASIL, 1988).
De igual forma, houve evolução no campo do direito sucessório. Segundo Silva (2013, s. p.), o Código Civil de 1916 não trazia qualquer menção sobre direitos hereditários do companheiro, reconhecendo estes apenas em relação aos cônjuges. Entrementes, o atual Código Civil trata de forma expressa, em seu artigo 1.790, dos direitos sucessórios dos conviventes. A despeito da tutela legal acima referenciada, algumas especificidades do atual Código conflitam com o tratamento perquirido pela Constituição em relação à união estável. Assim, a Lei Civil vigente restringe a herança do convivente aos bens adquiridos de forma onerosa pelo casal durante a vigência de sua relação (SILVA, 2013, s. p.).
Além disso, não inclui o companheiro, como fez com o cônjuge, no rol de herdeiros necessários. Igualmente, a atual legislação civilista destoa da Lei 9.278, de 1996, que outrora regulava os direitos e deveres dos conviventes, juntamente com a Lei 8.971, de 1994, no sentido de não prever em seu texto o direito real de habitação do convivente, como o fazia a lei retro (SILVA, 2004, s. p.). Diante desse quadro, parte considerável da jurisprudência e da doutrina (HIRONAKA, 2011; VELOSO, 2012; TARTUCE, 2017) sustentam que o presente Código Civil foi de encontro à finalidade constitucional almejada. Fundamentam seu posicionamento no fato de ter sido conferido aos companheiros tratamento inferior em relação aos cônjuges, ignorando os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana (RIBEIRO, 2016, s. p.).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Tocantemente aos direitos sucessórios do companheiro, houve real avanço trazido pela Constituição Federal de 1988, que reconheceu expressamente, em seu artigo 226, §3º, já refenciado, a união estável como espécie de entidade familiar (TOLEDO, 2017, s. p.). Destarte, houve grande avançao em relação ao Código Civil de 1916, que, possuindo uma visão hermética do conceito de família, reconhecia apenas aquela advinda do casamento, consoante dicção da redação do artigo 229: “Criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos” (BRASIL, 1916). Por conseguinte, a união estável passou a ser aceita como uma nova realidade jurídica, e não meramente como mais um fator social. Assim, foram removidos deste instituto seus esteriótipos e preconceitos, uma vez que o texto constitucional o colocou sob as asas da proteção do Estado (PEREIRA, 2017, p. 682).
Posteiormente à Constituição Federal de 1988 sucederam, no âmbito legislativo, no intiuto de regular os direitos concernentes à união estável, a Lei n° 8.971, de 1994, a Lei n° 9.278, de 1996, e, finalmente, o Código Civil de 2002 (TOLEDO, 2017, s. p.). A Lei n° 8.971, de 1994, trouxe, em seus artigos 2° e 3º, respectivamente, o direito ao usufruto vidual e à meação do companheiro, consoante redação abaixo transcrita:
Art. 2º As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:
I - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos ou comuns;
II - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;
III - na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.
Art. 3º Quando os bens deixados pelo(a) autor(a) da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do(a) companheiro, terá o sobrevivente direito à metade dos bens (BRASIL, 1994).
Após à Lei retro, sobreveio a Lei n° 9.278, de 1996, que estabeleceu o direito real de habitação do convivente supérstite, em seu artigo 7º, parágrafo único:
Art. 7° Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta Lei será prestada por um dos conviventes ao que dela necessitar, a título de alimentos.
Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família (BRASIL, 1996).
Finalmente, o advento do Código Civil de 2002 passou a tratar de forma específica a união estável na parte reservada ao direito de família, prevendo em seu artigo 1.790, os direitos hereditários aplicáveis no âmbito da união estável (GAIOTTO FILHO, 2013, s. p.). Assim prevê o respectivo dispositivo legal:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança (BRASIL, 2002).
A despeito da evolução em relação ao Código de 1916, que não previa nenhum direito sucessório ao companheiro, o Código Civil de 2002 deixa a desejar em relação ao objetivo perquirido pela Carta Magna, uma vez que traz discrepâncias entre os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro (GONÇALVES, 2013, p. 29). Como exemplos desse tratamento desigual, observa-se a não inclusão dos companheiros no rol de herdeiros necessários, nem na ordem da sucessão legítima, como o fez em relação ao cônjuge. É o que se verifica da leitura dos artigos 1.829 e 1.845, do Código Civil de 2002:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais
[omissis]
Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge (BRASIL, 2002).
Além disso, decidiu o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida nos Recursos Extraordinários n° 878.694/MG e n° 646.721/RS, sobre a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002. A decisão equiparou o companheiro ao cônjuge para fins de direito sucessório, conforme depreende-se do acórdão, abaixo transcrito, proferido no RE 878.694/MG:
DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.
1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.
2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988.
3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso.
4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.
5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002” (RE 878.694/MG Rel. Ministro ROBERTO BARROSO, julgado em 10/05/2017, DJe 06/02/2018).
Tais julgados foram proferidos em maio de 2017, possuindo repercussão geral. Reconheceram a aplicação, tanto para o companheiro como para o cônjuge, das regras de direitos sucessório circunscritas no artigo 1.829, da Lei Civil, que trata da sucessão legítima. Inobstante aos julgados supra, ainda resta divergência de posicionamento em relação ao tema, tanto na doutrina, como na jurisprudência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, diante de tudo o que fora explanado no presente estudo, observa-se a evolução conceitual e legislativa tocantemente ao reconhecimento e proteção jurídica do instituito da união estável, especificamente em relação aos seus direitos hereditários. Entendimento este corroborado por parte expressiva da doutrina e jurisprudênica, principalmente com o julgamento dos Recursos Extraordinários 878.694/MG e 646.721/RS, já referenciados.
Desse modo, claramente perceptível a evolução da legislação e jurisprudência no sentido de resguardar os direitos dessa classe, principalmente os sucessórios, visto sua grande importância e repercussão no patrimônio, qualidade de vida e dignidade humana do companheiro sobrevivente.
REFERÊNCIAS
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Data da conclusão/última revisão: 20/5/2018
Priscila Alves Pinto e Tauã Lima Verdan Rangel
Priscila Alves Pinto: Graduanda do 9º Período do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) Unidade Bom Jesus do Itabapoana (RJ)
Tauã Lima Verdan Rangel: Professor Orientador. Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF - Linha de Pesquisa: Conflitos Socioambientais, Rurais e Urbanos. Mestre em Ciências Jurídica e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especialista em Práticas Processuais Civil, Penal e Trabalhista pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Professor do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos.