O cuidado familiar como parâmetro de responsabilidade civil no dever de tutela jurídica do idoso
A pessoa idosa, como detentora de direitos e deveres constitucionalmente previstos, demanda proteção especial. Não é à toa que o suprimento da carência de uma legislação específica que regulamentasse os direitos das pessoas com idade igual ou acima de 60 anos (art. 1º da Lei 10741/03) só foi possível com a promulgação do Estatuto do Idoso no ano de 2003.
Decerto, esse transcurso até a existência do referido Estatuto teve como consequência uma visão estigmatizada da velhice, pautada em fragilidades, marginalização e decadência. Tal instituto “resgata a postura de respeito ao idoso e a consideração que a sociedade politicamente organizada deve ter em face da acumulação de experiência que atinge o apogeu na velhice [...]” (TAVARES, 2006, p. 6).
Por isso a relevância do Estatuto do Idoso, que além de ser o marco concretizador de um processo de conquistas para a terceira idade, é também um “verdadeiro microssistema legislativo” (RODRIGUES, 2016, p. 15), fundamentado na defesa dos interesses da pessoa idosa, assim como também na garantia do seu bem-estar e qualidade de vida.
Ressalta-se ainda que, malgrado a Constituição Federal de 1988 disponha em seu texto sobre direitos e garantias fundamentais, além da obrigação de amparo erga omnes às pessoas idosas (art. 230 da Constituição Federal), a necessidade de se ter uma lei que recuperasse a importância histórica do idoso para a sociedade foi, de fato, imprescindível para o reconhecimento da dignidade humana na velhice.
Sendo, portanto, a pessoa idosa, assim como qualquer pessoa natural, sujeito de direito, a ela deve ser dado condições mínimas e dignas para um viver saudável. Mais que isso: devem ser previstas regras especiais que enfatizem sua participação ativa na sociedade e garantam proteção integral e prioritária na fase do envelhecimento (RODRIGUES, 2016).
Por isso que o papel de envidar esforços para que as normas constitucionais sejam efetivadas cabe primeiramente à família. É função precípua da família o desenvolvimento das potencialidades e proteção dos seus integrantes. Nesse sentido, prevê o art. 230 da Constituição Federal o dever solidário entre a família, o Estado e a sociedade de amparo e assistência ao idoso:
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
Em tais circunstâncias, a dignidade da pessoa humana, princípio basilar da Constituição Federal, se faz presente com vistas a resguardar a pessoa idosa direitos imprescindíveis para o seu bem-estar:
Não obstante a inevitável subjetividade envolvida nas tentativas de discernir a nota de fundamentalidade em um direito, e embora haja direitos formalmente incluídos na classe dos direitos fundamentais que não apresentam ligação direta e imediata com o princípio da dignidade da pessoa humana, é esse princípio que inspira os típicos direitos fundamentais, atendendo à exigência do respeito à vida, à liberdade, à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado da igualdade em dignidade de todos os homens e à segurança. (MENDES; BRANCO, 2016, p.138).
Conclui-se, pois, que o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à proteção integral, à saúde, e ao respeito integram a dignidade da pessoa humana como elementos caracterizadores à sua finalidade.
Diante da gama de deveres constitucionais, o art. 229 traz em seu bojo o dever recíproco de cuidado nas relações familiares, sendo cabível ao idoso o direito de assistência na velhice:
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Nestes termos, a possibilidade de indenização por dano moral face a violação do dever familiar constitucionalmente previsto merece notoriedade, dada a relevância da temática do abandono nessas relações e a preocupação do ponto de vista social no que se refere as ações do Estado quanto ao tratamento do idoso nos dias atuais.
A partir desta perspectiva, é possível estabelecer um liame entre a inação do dever jurídico de cuidado e a proteção integral a pessoa idosa: como um dos princípios protetivos da fase de envelhecimento, a proteção integral sacramenta o respeito pleno à situação de vulnerabilidade do idoso, garantindo-o condições especiais para um envelhecer digno.
Assim, merecem todos, mesmo que idosos, mecanismos que efetivem o cumprimento de todos os direitos inerentes as suas peculiaridades. Com efeito, o cuidado, estabelecido como dever jurídico recíproco nas relações familiares (art. 229 da Constituição Federal), traz como fundamento o princípio da solidariedade. E ao mesmo em que confere direito fundamental ao assistido, dispõe sobre o dever de amparo e assistência por parte do cuidador.
Nessa esteira, o abandono dos pais na velhice repercute não somente no campo social e econômico, mas também no jurídico, tendo em vista o seu viés constitucional à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Essa inobservância dos deveres paterno-filiais atrelado a falta de afeto caracterizam-se como abandono afetivo, em que o vocábulo “inverso” intitula-se como a omissão do dever de cuidado dos filhos para com seus pais idosos, que segundo o Desembargador Jones Figueirêdo Alves (PE), define-se como:
A inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família. (IBDFAM, 2013).
Ademais, é imperioso mencionar que o Instituto Brasileiro do Direito de Família – IBDFAM em seus enunciados 8 e 10, reconhece a temática do abandono nas relações paternos-filiais e a possibilidade de reparação civil pelo dano causado em virtude do abandono e evidenciam os ascendentes idosos como sujeitos vulneráveis a essa prática.
Incontroversas, porém, são decisões judiciais acerca da pretensão indenizatória decorrentes desse tipo de situação jurídica familiar, como os julgados REsp 1087561-RS e REsp 1159242-SP. Para essas questões, houve a necessidade de uma análise minuciosa acerca das peculiaridades de cada caso concreto, pois em que pese ambas as situações tratassem da mesma temática – abandono afetivo – a justificativa para condenação por dano moral deu-se por motivos diversos: de um lado, o fundamento para a reparação civil foi desencadeado pela falta de assistência material do pai e não necessariamente pela falta de afeto (STJ, Ac. Unân., 4º T., REsp. 1.087.561/RS, Rel. Min. Raul Araújo, j. 13.6.2017, DJe 18.8.2017, p. 30). Do outro lado, o fator ensejador da ilicitude para o reconhecimento da pretensão indenizatória foi caracterizado pelo descumprimento do dever de cuidado do pai para com sua filha (STJ, Ac. 3º T., REsp 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24.4.2012, DJe 10.5.2012).
Há de se ressaltar que as regras de Responsabilidade Civil no âmbito familiar necessitam da caracterização de um ato ilícito para que haja possibilidade de indenização do dano causado (CHAVES; ROSENVALD, 2018). Entretanto, é inegável a importância do afeto e as sequelas de ordem emocional e psicológica decorrentes da falta dele. E muito embora, a ausência de afeto não seja parâmetro suficiente para a ocorrência da ilicitude (STJ, Ac. Unân., 4º T., REsp. 1.087.561/RS, Rel. Min. Raul Araújo, j. 13.6.2017, DJe 18.8.2017, p. 30), o descaso quanto aos deveres jurídicos mútuos nas relações paterno-filiais carece de punição normativa como uma forma de repelir práticas reiteradas de abandono.
Com vistas a reconhecer o abandono afetivo inverso como objeto de reparação civil, tramita na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) o Projeto de Lei nº 4229/2019, apresentado pelo Senador Lasier Martins. O objetivo do referido projeto é alterar o Estatuto do Idoso no sentido de responsabilizar civilmente o infrator, tornando ato ilícito a prática do abandono afetivo.
Diante desse cenário, torna-se evidente que embora a viabilidade acerca da pretensão indenizatória por abandono não preserve o status a quo da vítima, é de suma importância o seu reconhecimento para que seja dada a devida proteção normativa àquela pessoa que encontra-se em situação de vulnerabilidade, impondo assim quando da ocorrência do abandono afetivo, a reparação civil por danos morais face a violação dos deveres jurídicos nas relações familiares, de modo a minimizar esse tipo de ilicitude e responsabilizar o infrator por seus atos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: Acesso em: 21 jun. 2019.
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______. Senado Federal. Projeto de Lei nº 4229/2019. Altera a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para dispor sobre o direito da pessoa idosa à convivência familiar e comunitária, bem como para prever a hipótese de responsabilidade civil por abandono afetivo. Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137919>. Acesso em: 15. ago. 2019.
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______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.159.242/SP. Civil e Processual Civil. Família. Abandono Afetivo. Compensação por Dano Moral. Possibilidade. Relat. Min. Nancy Andrighi. 3º Turma. j. 24.4.2012, DJe 10.5.2012. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200901937019&dt_publicacao=10/05/2012>. Acesso em: 21 jun. 2019.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: famílias. 10. ed. rev. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.
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MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
RODRIGUES, Oswaldo Peregrina. Direitos da Pessoa Idosa. 1. ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2016.
TAVARES, José de Farias. 1ª ed. Estatuto do Idoso. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006.
Data da conclusão/última revisão: 15/8/2019
Luana Caroline Nascimento Damasceno
Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade Martha Falcão | Wyden. Pós-Graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Escola Brasileira de Direito - EBRADI. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.