A evolução conceitual de família e a expansão de direitos advindas da Constituição de 1988

Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar uma breve exposição quanto a evolução da concepção do conceito de família, sua evolução histórico-social e suas relações com o mundo jurídico no decorrer dos tempos. Assim, o trabalho discorre sobre a família no Direito Romano antigo e, posteriormente, as transformações advindas com a hegemonia do cristianismo e, por consequência, do Direito Romano. A família, antes pautada por interesses patrimoniais e existencialistas, passa a ter um cunho religioso e espiritual. No Brasil, o Direito de Família a partir do Código Civil de 1916 passa a ter especial regulamentação, contudo, pautado por preceitos familiares adquiridos do antigo Direito Romano e do Direito Canônico, não refletindo, já aquela época, a realidade diversa do cenário familiar brasileiro. Após a promulgação da Constituição de 1988 o Direito de Família no Brasil ganhou novos contornos, mais amplos e inclusivos, permitindo-se uma extensão da interpretação do conceito de família bem como permitindo também uma extensão prática dos direitos relativos à família. Para a consecução deste estudo foi utilizado como método de pesquisa o analítico, de forma qualitativa e indutiva, com base em pesquisas bibliográficas através da análise de doutrinas e jurisprudências, artigos científicos e legislações sobre o tema proposto, retirados da rede mundial de computadores ou mesmo de materiais físicos, para que ao final, fosse possível chegar com relevância à conclusão do tema aqui explorado.

Abstract

This article aims to present a brief exposition on the evolution of the conception of the concept of family, its historical-social evolution and its relations with the legal world over time. Thus, the work discusses the family in ancient Roman Law and, subsequently, the transformations that came with the hegemony of Christianity and, consequently, of Roman Law. The family, once ruled by patrimonial and existentialist interests, has a religious and spiritual nature. In Brazil, the Family Law from the Civil Code of 1916 now has special regulation, however, based on family precepts acquired from ancient Roman and Canon Law, not reflecting, at that time, the different reality of the Brazilian family scene . Following the promulgation of the 1988 Constitution, Family Law in Brazil gained new, broader and more inclusive contours, allowing for an extension of the interpretation of the concept of family as well as allowing for a practical extension of family rights. For the accomplishment of this study was used as research method the analytical, qualitative and inductive way, based on bibliographic research through the analysis of doctrines and jurisprudence, scientific articles and legislation on the proposed theme, taken from the world wide web or even of physical materials, so that in the end, it was possible to reach with relevance the conclusion of the theme explored here.

INTRODUÇÃO

A família possui especial relevância para toda uma a sociedade. Os grupos familiares podem, até mesmo, ser considerados como o início da própria vida em coletividade, haja vista que, para muitos, a família é o núcleo básico da sociedade, sendo assim, inclusive, reconhecida pela própria Constituição Federal do Brasil. A origem da família está intimamente conectada à história da civilização, visto que apareceu como um fenômeno natural, advindo da necessidade do ser humano em firmar relações afetuosas de forma sólida (PEREIRA, 1997, p. 28).

No decorrer dos tempos, a família, no que tange ao seu conceito jurídico, foi um dos organismos que mais sofreu modificações e ampliações, em virtude da volubilidade natural do homem e da vida em sociedade. Em referência à evolução da família, Noé de Medeiros (1997, p. 24) afirma que, a organização familiar partiu do patriarcado, em que os filhos e a mulher se sujeitavam ao poder do pai. Entretanto, existem teorias diferentes em relação à formação dos núcleos familiares.

Medeiros (1997, p. 24), afirma que, dentre essas teorias, existe uma que entende que nos primórdios da civilização humana os homens uniam-se às mulheres sem qualquer vínculo social ou civil, vivendo de forma promíscua. Posteriormente, as sociedades passaram a se organizar em tribos, quando só aí passou a se evidenciar a formação dos primeiros núcleos familiares estáveis, porém, em toro da figura feminina. Para essa corrente, a origem da família se deu com base no matriarcado e não no patriarcado como majoritariamente se vê em estudos sobre o tema. Nesse matriarcado, pouco importava a figura masculina, muitas vezes até mesmo desconhecida. Os filhos herdavam o nome e os parentes apenas das mães.

Com as inúmeras evoluções e alterações no conceito de família, destaca-se entre elas a família na Roma antiga, em que a família era estruturada conforme o princípio da autoridade. O próprio pai detinha em relação a sua prole direito a vida e morte, bem como podia comercializá-los como escravo, além de aplicar castigos físicos. O pai, na realidade, chamava-se pater e era incumbido de exercer todas as atividades da casa, ao passo que a mulher era somente uma figurante submissa à autoridade do marido (PEREIRA, 1997, p. 31).

A partir do século V, com o desfazimento de uma ordem estável que perdurou durante séculos, ocorreu a transferência do poder de Roma para as mãos do chefe da Igreja Católica Romana que criou o Direito Canônico organizado em um conjunto normativo dualista (laico e religioso) que se manteve até o século XX (CORRÊA, 1999, p. 62).

O direito canônico potencializou as causas que motivaram impedimentos e nulidades para o casamento, inserindo as causas embasadas na incapacidade de um dos nubentes, quais sejam: a idade, casamento anterior, infertilidade, diferença de religião; as causas relacionadas com a falta de consentimento, ou derivadas de uma relação anterior (parentesco, afinidade) (WALD, 2004, p.14).

Em seguida, com a entrada em vigor do Código Civil de 1916, a família passou a ter uma imagem matrimonializada. Isto é, apenas era considerada e socialmente e civilmente aceita a constituição da família pelo casamento, de maneira que o direito das famílias comandava a celebração do casamento, sua validade e os efeitos provenientes deste ato, bem como todas as relações pessoais e econômicas advindas da da sociedade matrimonial (WALD, 2004, p. 14).

Por fim, devido às modificações naturais do decurso histórico e dos princípios e garantias concebidos ao direito de família, foi conferido ao Estado desempenhar o seu dever de assegurar a proteção da família brasileira, segundo o texto legal da Constituição Federal de 1988 que traz em sua redação, mais precisamente no artigo 226, que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. (BRASIL, 1988).

Mais recentemente, contudo, o direito brasileiro passou a admitir extensiva interpretação ao conceito de família, haja vista que a própria Constituição garante que a família é a base da sociedade e, também, o próprio texto constitucional determina que a democracia brasileira se funda sob a isonomia formal e material, bem como não deve promover quaisquer discriminações que sejam, além de preservar a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais da república (FERREIRA, RIDOLPHI, DA SILVA, 2019, s.p.).

Deste modo, não faz sentido manter-se à margem do direito grupos sociais que existem, de fato, e escolhem constituir-se em núcleos familiares, com a pretensa justificativa de preceitos morais/filosóficos particulares que em nada se afetam ao direito civil e à vida individual de cada cidadão. Deste modo, a democracia brasileira permite a coexistência de diferentes núcleos familiares, sem qualquer interferência, seja pública ou privada em seu seio. A família contemporaneamente é pautada, principalmente, pelo princípio da afetividade entre seus membros. A extensão da concepção de família no ordenamento jurídico é mais uma forma do Estado brasileiro garantir o pluralismo político concebido como um dos fundamento da república (FERREIRA, RIDOLPHI, DA SILVA, 2019, s.p.).

A temática em questão é de grande relevância jurídica e social e muito importante de ser abordada, uma vez que se mostra atual e com ampla discussão jurídica. Tecidas tais considerações, imperioso destacar que objetivo central deste artigo visa apresentar a construção histórica e social do conceito de família, bem como sua evolução diante das transformações da sociedade. A evolução e a transformação são processos inerentes a qualquer sociedade e com reflexos direito em toda a sua estrutura.

Para a consecução deste estudo foi utilizado como método de pesquisa o analítico, de forma qualitativa e indutiva, com base em pesquisas bibliográficas através da análise de doutrinas e jurisprudências, artigos científicos e legislações sobre o tema proposto, retirados da rede mundial de computadores ou mesmo de materiais físicos, para que ao final, fosse possível chegar com relevância à conclusão do tema aqui explorado.

1.    DESENVOLVIMENTO

Apresentadas estas considerações iniciais, este trabalho se desenvolverá abordando os conceitos de família no Direito Romano, no Direito Canônico e a família sob a égide do Código Civil de 1916, bem como a sua reestruturação após a promulgação da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988.

1.1.       A Família no Direito Romano

No direito romano, o termo família tinha diversas acepções: apontava, via de regra, o chefe da família e o grupo de pessoas comandadas perante o poder dele. A propósito, a família associa-se a famulus, escravo, que, em Roma, tinha um valor econômico. Interessa, aqui, de modo específico, a família como significado de um grupo de pessoas associadas pelo liame direto. Interessante observar que no que se refere aos princípios familiares, a família romana exibia traços de parentesco, pátrio poder, matrimônio e tutela. (WALD, 2000, p. 10).

Consoante Arnoldo Wald (2000, p. 10), no Direito Romano a família era um grupo de pessoas do mesmo sangue, denominadas cognados, e havia pessoas que não eram consanguíneas, porém, eram unidas por terem o mesmo pater, chamadas de parentesco masculino por consanguinidade. O pater familias era quem chefiava e detinha a autoridade sobre aqueles que estavam sob seu poder.

Em Roma antiga, a família era conhecida como uma associação de pessoas que estavam sob o poder parental que é aautoridade conferida ao pai para tutelar, educar os filhos e para assegurar os seus interesses. A definição de família não derivava de laços sanguíneos, estritamente. O patriarca da família desempenhava a sua autoridade sobre as pessoas que estavam debaixo do seu controle (WALD, 2000, p. 09).

A família romana era norteada por um ascendente idoso, o homem mais velho da família tinha o poder do paters família, poder este que devia ser desempenhado no âmbito religioso, visto que a família tinha que ser adepta a religião e crenças do pater. No quesito financeiro, o pater possuía o monopólio de todos os bens da família, ocorre que na política o senado romano era formado por um grupo de chefes de famílias (WALD, 1990, p. 22).

Além disso, de acordo com que Caio Mario da Silva Pereira ensina: O pater era quem chefiava tudo, chefe político, sacerdote e juiz. Governava, realizava o culto dos deuses domésticos (penates) e compartilhava a justiça. Detinha sobre os filhos o direito de vida e de morte (ius vitae ac necis), podia aplicar-lhes pena corporal, bem como vendê-los (PEREIRA, 2012, p. 28). Entende-se, assim, que a família romana era completamente subordinada ao poder do pai, isto é, era uma entidade familiar fundada na figura masculina, haja vista que o pai poderia ainda tirar a vida dos filhos quando bem quisesse.

Compreende-se, então, que o casamento em Roma se tornou mais maleável. Com o decorrer dos anos e os acontecimentos antecedentes ao Império, a concepção de família mudou para os romanos e estes deram início a inúmeras transformações sociais, como admitir que caso acontecesse o abuso de poder do pater, a mãe toma o lugar do pai podendo ficar com a guarda dos filhos para si e ainda passa a ter direito na herança deles, se estes não tivessem descendentes e irmãos. Com o advento do império a mulher se torna mais autossuficiente e começa a fazer parte da vida social e política, ainda que de forma restrita, mas já significava um avanço para os costumes familiares da época (WALD, 1990, p. 22).

O casamento no direito romano antigo era uma associação privada, não era escrita, tampouco solene. Era uma situação que decorria de efeitos de direito e de dois pressupostos para existir: “a affectio maritalis (intenção de ser marido e mulher) e a honor matrimonii” (ARIÈS; DUBY, 2009, p. 43-44). As pessoas se casavam para exercer o dever patriótico de ter filhos legítimos a quem transmitir o direito à herança e, desta forma, eternizar a família, os bens, assim como para adquirir o dote.

Ademais, no quesito casamento era evidente que os direitos não eram os mesmos, pois, no momento em que a filha casava, esta deixava sua família para integrar a família de seu marido. Assim, a mulher que se casava era levada para dentro de casa do homem como se fosse parte da família, afastando-se completamente de seus familiares antigos, passando a integrar o patrimônio daquela família. Acerca do tema, expõe a passagem a seguir:

Se, porém, um homem pede em casamento sua vizinha, para ele vai muito além do que passar de uma casa para outra. A mulher abandona o lar do pai, para viver dali em diante o lar do marido. Trata-se de mudar de religião, de praticar outros ritos e de pronunciar outras orações. Abandona o deus da sua infância para se coloca sob o império de um deus desconhecido. Espera aqui permanecer fiel um honrando o outro, pois nessa religião não se pode ter dois lares nem duas séries de antepassados (COULANGES, 2005, p. 46).

No entanto, com o tempo passou a ser introduzido pelo direito romano o divórcio com o consentimento das duas partes, sendo assim, “da mesma vontade que fizeram o casamento, pensavam os romanos, podiam desfazê-los” (WALD, 2000, p. 12). Inúmeros são os direitos dos tempos passados que vigoram até o presente, que hoje é tido como direito dos noivos, como, por exemplo, o divórcio, que somente era concedido quando ocorria algum motivo para o término do casamento.

O divórcio era relaxado no que se refere ao casamento e havia uma grande frequência de divórcios:

Como os maridos enganados são mais ultrajados que ridículos e as divorciadas levam o dote consigo há na classe alta grande frequência de divórcios (César, Cícero, Ovídio, Cláudio casaram-se três vezes) e talvez também na plebe citadina (ARIÈS; DUBY, 2009, p. 49).

Assim, tanto o casamento como o divórcio não seguiam pressupostos e requisitos, não haviam papeis, tampouco cerimoniais na Roma Antiga e todas as relações sociais e políticas da família governada pelopater familias,eram mais relevantes do que o vínculo de uma família convencional. Interessante destacar que, na antiguidade romana, não existia uma religião única, como durante o Império. Cada família era governada por sua filosofia religiosa baseada em seus ancestrais e essa religião familiar era o pilar das regras e costumes de uma família (WALD, 2000, p. 12).

1.2.       A Família no Direito Canônico

A chegada do Direito Canônico trouxe uma enorme influência para o direito de família brasileiro, haja vista que atualmente ainda existem vários princípios que são oriundos de Direito Canônico e que influenciaram o direito de família brasileiro. Assim, observa-se a família sob outra perspectiva nesse Direito Canônico que seria: O homem se desliga de sua família natural e se une com a mulher para poder constituir uma nova família com a simples intenção de se procriarem (GAMA, 2001, p. 18).

Naquela época, o casamento era considerado como algo sagrado, divinizado, do qual não poderia se desligar, não se autorizando o divórcio por decisão de uma ou ambas as partes. Em conformidade com o assunto, Arnoldo Wald entende que:

Na doutrina canônica, o matrimônio é concebido como sacramento, reconhecendo-se a indissolubilidade do vínculo e só se discutindo o problema do divórcio em relação aos infiéis, cujo casamento não se reveste de caráter sagrado (WALD, 2000, p. 13).

Ademais, conforme Orlando Gomes:

A autoridade do direito canônico em matéria de casamento foi conservada até a lei de 1980, que instituiu o casamento civil. [...]. A lei civil reproduziu várias regras do direito canônico, e algumas instituições eclesiásticas se transformaram em instituições seculares, tal como ocorreu, nos países católicos. Sob influência religiosa, por exemplo, mantém-se o princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial, adotando-se o desquite como forma de dissolução da sociedade conjugal. A separação da Igreja do Estado criou prevenções contra o casamento religioso, mas foi restabelecida sua eficácia, uma vez observadas certas exigências (GOMES, 2002, p.09).

Por este motivo, a maior parte dos preconceitos familiares atuais, que existem desde aqueles tempos romanos (a partir do império, principalmente), começou com influência da Igreja Católica, visto que não aprovavam uniões que não fossem nos padrões estipulados por eles, como por exemplo, as uniões de pessoas do mesmo sexo (GOMES, 2002, p. 09).

Ao longo da Idade Média, o Direito Canônico se consolidou, foi absoluto na maior parte do mundo ocidental e, de acordo com ele, o único casamento admitido era o religioso que era visto como um sacramento, pois, para ser celebrado deveria ter a anuência das partes e a benção da igreja. Com o decorrer dos tempos, a Igreja começou a estipular impedimentos como o “acordo dos noivos e as relações sexuais voluntárias” (WALD, 1990, p. 26).

No que se refere aos impedimentos matrimoniais atuais, é importante destacar que estes foram praticamente reproduzidos do antigo Direito Canônico, consoante o texto a seguir:

Sua relevância é tão grande que o Código Civil, a exemplo de diversas leis a respeito do casamento, acompanhou a tendência canônica de citar as exigências de invalidade do casamento ao invés de listar os pressupostos que devem ser cumpridos para a valida ser finalizada (GOMES, 2002, p. 09).

Essas regras eram sagradas, posto que o matrimônio tinha a finalidade de gerar e criar a prole dentro dos preceitos e costumes da igreja. Não havia a discussão se o casamento trazia ou não felicidade para o casal, isso era irrelevante. Cabe mencionar, ainda, que era obrigatório o cumprimento de tais regras pela sociedade e não podia ser desrespeitada, em razão de sofrer graves punições em caso de desobediência (GOMES, 2002, p. 09).

Acerca do assunto, segue o entendimento:

O direito de família canônico era constituído por normas imperativas, inspiradas na vontade de Deus ou na vontade do monarca. Era constituído por cânones, regras de convivência impostas aos membros de família e sancionadas com penalidade rigorosas (VENOSA, 2007, p. 09).

Desta forma, é de essencial importância apontar os pilares do direito de família brasileiro, haja vista que há pouco tempo atrás eram cumpridas regras rigorosas, onde de forma gradativa o conservadorismo vem sendo abandonado, dando lugar a novas concepções e filosofias no tocante ao direito de família.

 

1.3.       O Direito de Família a partir do Código Civil de 1916

O Código Civil de 1916, apesar de promulgado no século XX, vinha com todas as concepções de direito de família baseadas no século antecedente. Em nenhum instante se preocupou com os direitos dos filhos havidos fora do casamento e com os relacionamentos sem matrimônio, ou divórcio. Foi considerado um código muito bem feito, mas que já entrou em vigor desatualizado, já que se utilizava, em grande parte, as premissas advindas do Direito Romano e do Direito Canônico em relação à regulamentação dos direitos de família (WALD, 2000, p. 20).

O Direito de família no Código Civil de 1916 era disciplinado no Livro I, Parte Especial. Não era a melhor opção pedagógica e de técnica legislativa, haja vista que o correto era estudar a matéria não só depois da parte geral, mas sim após conhecer os princípios dos direitos reais e das obrigações. (GOMES, 2002, p. 14).

O legislador de 1916 deixou de lado a família “ilegítima”, ou seja, aquela formada sem o matrimônio, fazendo apenas raríssimas referências ao concubinato, exclusivamente com a intenção de resguardar a família legítima matrimonializada, pois, jamais reconheceu os direitos à união de fato, trazendo um viés preconceituoso acerca desse instituto (MIRANDA, 2007, p. 17 apud VENOSA, 2007, p. 21).

O estágio social da época impossibilitou que o legislador enxergasse que a grande parte das famílias brasileiras eram ligadas sem o elo do matrimônio. No passado, o estudo convencional do direito de família evitava abordar sobre a proximidade entre o casamento e a união concubinária. Muitos entenderam, até as últimas décadas, que a união sem matrimônio era um acontecimento incomum no direito de família, produzindo somente resultados obrigacionais (MIRANDA, 2007, p. 17 apud VENOSA, 2007, p. 21).

Pontes de Miranda (1971, apud VENOSA, 2007, p. 21) chegou a asseverar que:

O concubinato não constitui, no direito brasileiro, instituição de direito de família. A maternidade e a paternidade ilegítimos o são. Isso não quer dizer que o direito de família e outros ramos do direito civil não se interessem pelo fato de existir, socialmente, o concubinato (MIRANDA, 1971, apud VENOSA, 2007, p. 21).

No Código de 1916, o pai/marido ficava incumbido de todas as decisões familiares, ele quem dava a palavra final. Ao se casar, a mulher/esposa deixava de ter alguns de seus direitos de mando e comando, ficando o marido responsável pela cônjuge, filhos e manutenção do lar. Já o filho havido fora do casamento não tinha direito algum (WALD, 1990, p. 29).

No Brasil, até a promulgação da Constituição de 1988, existia somente dois modelos de família, a saber: A primeira era a família resguardada pela Carta Magna com suas garantias, qual seja, o casamento; e a segunda era o concubinato, que era dividido em duas categorias: o concubinato puro, realizado entre pessoas solteiras que podem vir a se casar e o concubinato impuro que ocorria pelo relacionamento casual de pessoas impossibilitadas de casar (GOMES, 2002, p. 14).

Ademais, a família era heteroparental, isto é, constituída por indivíduos de sexo diferente, sendo que àquela época, seria inimaginável discutir a inclusão de uma família entre pessoas do mesmo sexo no âmbito do direito familiar. O elo de criação era apurado com o vínculo biológico e a adoção não tinha o prestígio e o respeito que tem atualmente (GOMES, 2002, p. 14).

O casamento era de suma importância para o legislador de 1916, o qual impossibilitava seu rompimento, fazendo diferenciações entre seus membros e intitulava de forma preconceituosa às pessoas unidas sem matrimônio, bem como os filhos havidos fora dele. As menções feitas às relações extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram de penalidades e serviam unicamente para eliminar direitos e segregar socialmente tais pessoas, tudo na tentativa de manutenção da família formada pelo casamento, apenas (WALD, 1990, p. 29).

1.4.       A reestruturação do Direito de Família em razão da promulgação da Constituição Federal de 1988

Não há como negar que o direito de família disposto no Código de 1916 foi modificando-se com o passar dos anos. Todavia, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, inevitavelmente, houve uma nova interpretação da definição de família, haja vista que o Código Civil doou espaço para a Constituição, em um movimento que a doutrina têm configurado como a “Constitucionalização do Direito Civil”, que têm por escopo garantir direitos civis básicos sob a proteção constitucional (GONÇALVES, 2011, s.p.).

Observa-se que a presente realidade não acomodava um conceito tão restringido para o termo família, pois o processo de evolução, a realidade das famílias e da sociedade brasileira em geral, já vinha se transformando e se diversificando. A Constituição Federal de 1988 simboliza um marco evolutivo, pois tornou essa entidade menos hierarquizada, bem como causou um importante efeito sobre tais concepções, através dos princípios constitucionais que repercutiram fortemente no Direito de Família (RODRIGUES, 2002, p. 1).

Os tabus encarados no passado em razão de se ter um filho homossexual ou sobre como cuidar de um filho com o pai ausente, a questão do casamento e do divórcio, são questões muito menos discutidas e socialmente reprováveis hoje em dia, apesar dos significativos esforços em contrário advindo de grupos ultraconservadores. Quem se destaca, atualmente, é o casamento, que antes era visto como a exclusiva maneira de formar uma família entre homem e mulher, porém hoje pode ocorrer até entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo existir a formação de família sem o vínculo do matrimônio, frisa-se ainda que o matrimônio, em muito perdeu a noção de sagrado, sob as bençãos da religião, focando-se, principalmente, nos laços matrimoniais civis (DIAS, 2005, p. 43).

Atualmente, uma das famílias que mais sofrem discriminação não é aquela formada pela mãe e o filho, mas aquela formada por pessoas de sexos comuns. Nesta lógica, Maria Berenice Dias, em sua visão, defende a sexualidade como direito fundamental por ser aquele que segue o ser humano desde o nascimento:

A sexualidade integra a própria condição humana. É um direito fundamental que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza. Como direito do indivíduo, é um direito natural, inalienável e imprescritível (DIAS, 2005, p. 43).

Desta forma, com a evolução histórica da família, o conceito dessa instituição vem se modificando em razão da inserção de novos hábitos e valores que existem na sociedade atual. Nessa linha, Rodrigues (2002, p. 1) destaca que “a família evolui à medida que a sociedade muda e cria novas estruturas adaptadas às novas necessidades, decorrentes de novas realidades sociais, políticas e econômicas. O Direito deve acompanhar as mudanças às quais sofre a família”.

Na compreensão de Brandão, entende-se que:

O novo texto Constitucional provocou verdadeira revolução no Direito brasileiro. Com ele inaugurou-se um novo Direito de Família no país. Seu art. 226 ampliou o conceito de família, ao reconhecer outras formas de constituição familiar, como a união estável e a família monoparental, garantindo a elas a proteção do Estado (BRANDÃO, 2010, p. 1).

Em conformidade com o tema, preconiza a nova redação do artigo 226 da Carta Magna de 1988:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado [...] § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento; § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (BRASIL, 1988).

Ademais, mais recentemente, houve uma grande evolução no Direito de Família, haja vista que há algum tempo a Justiça se posicionou e têm reconhecido vários tipos de família, dando a oportunidade de a sociedade assumir sua real condição no que tange aos seus arranjos familiares. Desta forma, cabe destacar a seguir as modalidades de família que já foram admitidas no nosso ordenamento jurídico:

A família Matrimonial, que é aquela originária do casamento, sendo a única espécie existente até 1988, onde as pessoas se uniam por sua própria escolha, tornando-se nulo o casamento realizado por meio de coação (GONÇALVES, 2011, p. 27).

A monoparental, aquela formada por um dos pais e seus descendentes, ou somente o pai ou a mãe coabitando com os filhos. Ela surge de várias maneiras, ora pelo divórcio do casal, permanecendo um deles com guarda dos filhos, ora pela morte de um dos pais, bem como pela adoção por pessoa solteira, ou ainda pela geração independente (MADALENO, 2016, s.p.).

A família multiparental, é definida pela estrutura e ocorrência da vários vínculos afetivos, ou seja, um dos pais ou ambos já vem de uma relação anterior, e se unem a uma nova família e levam seus filhos, algumas vezes também possuem filhos em comum (MADALENO, 2016, s.p.).

Já a família anaparental, que é formada por pessoas sem grau de parentesco, ou são ligadas pelo parentesco, porém, ausentes os pais. É constituída pela coabitação entre parentes na mesma casa, seja por afinidade ou por algum interesse econômico, como exemplo, irmãos ou primos que moram juntos (DIAS, 2016, s.p.).

A família eudemonista, por outro lado, prioriza a comunhão de afeto, consideração e respeito recíproco entre as pessoas que a integram, independentemente de vínculo biológico. Já a família substituta é aquela advinda da adoção, podendo ser provisória ou definitiva. Os membros dessa modalidade de família não possuem elos sanguíneos, mas possuem empatia, carinho, compaixão e amor, isto é, mesmo que não sejam biologicamente pais, atuam como se fossem (DIAS, 2016, s.p.).

A Homoafetiva, que é uma modalidade de família composta por indivíduos do mesmo sexo, ligados por um elo afetivo. O STF reconheceu o direito das pessoas de sexo comuns a formarem família por meio da equiparação ao instituto da união estável, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277-DF.

A União Estável, que se refere à união de pessoas coabitando sobre o mesmo teto, inexistindo formalidades, isto é, não há qualquer registro, apesar de poder ser registrada em cartório. Com o advento da Constituição de 1988[1] essa espécie foi expressamente admitida como entidade familiar no texto Constitucional, bem como o Código Civil[2] passou a regular esse instituto.

Vale ressaltar ainda que existem várias outras concepções de família, inclusive já reconhecidas pelo ordenamento jurídico, sendo essas citadas apenas uma das mais recorrentes no atual contexto social.

CONCLUSÃO

Como visto, a família é uma entidade social formada pela aglutinação de pessoas e que passou por profundas transformações ao longo dos séculos. Trata-se de uma construção histórico-social, formada por diversos motivos, seja por necessidades de sobrevivência, ou mesmo pelo afeto. A família já se estruturou por interesses patrimoniais e existenciais, como ocorreu no antigo Direito Romano, por questões religiosas, como no Direito Canônico, ou mesmo por questões afetivas, como tem sido muito explorado e valorizado no atual contexto do direito de família.

Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 e, por consequência, o Código Civil de 2002 tiveram especial significado quanto a ampliação e evolução relativa ao conceito e aplicabilidade prática do Direito de Família no Brasil, valorizando princípios e fundamentos Constitucionais, expressos ou não, como a dignidade da pessoa humana, pluralismo político, democracia e autonomia da vontade. Assim, inclui-se na proteção estatal, pessoas e núcleos familiares historicamente excluídos da sociedade e do direito, confirmando assim o que preceitua o artigo 226 da Constituição Federal, que é justamente conferir à família (e seja ela qual for, como for, de quem for) especial proteção do parte do Estado.

Ante o exposto, ressalta-se que, atualmente, não importa em que tipo de família as pessoas estejam enquadradas, o que realmente é relevante é o elo de afinidade que existe entre seus integrantes, visto que uma família feliz é aquela que oportuniza aos seus componentes amor, afeto, alegria e respeito recíproco (respeito para com a família e para com a sociedade como um todo). Assim, devem ser reconhecidas e respeitadas, haja vista que o respeito é intrínseco ao indivíduo, devendo ser valorizado, além do mais, nunca é excessivo lembrar que o Estado é Democrático e preceitua a pluralidade político-filosófica.

REFERÊNCIAS

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BRANDÃO, Sylvia Lúcia de Souza. A união estável no Código Civil de 2002: considerações sobre o novo paradigma de família no Brasil contemporâneo e suas implicações no ordenamento jurídico. 2010. Disponível em: . Acesso em: 08 ago. 2018.

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[1]Art. 226, §3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento;

[2]Art. 1.723 - É reconhecida como entidade familiar a união entre homem e mulher, configurada na convivência pública, continua e duradoura e estabelecida com o objeto de constituição de família.

Data da conclusão/última revisão: 7/9/2019

 

 

 

Oswaldo Moreira Ferreira; Alencar Cordeiro Ridolphi e Brena Pedrosa da Silva

Oswaldo Moreira Ferreira - Professor orientador: Doutorando e Mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF; Especialista Lato Sensu em Direito Civil pela Universidade Gama Filho – RJ; Especialista Lato Sensu em Gestão Educacional pela Faculdade Metropolitana São Carlos de Bom Jesus do Itabapoana – RJ - FAMESC; Pós-Graduando em Direito de Família pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante – FAVENI; Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo – ES; Servidor Público do Tribunal de Justiça do Estado do Espirito Santo; Professor do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos de Bom Jesus do Itabapoana – RJ - FAMESC; Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5173427276292456.

Alencar Cordeiro Ridolphi - Graduando do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Unidade Bom Jesus do Itabapoana. Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Candido Mendes – Unidade Campos dos Goytacazes. 

Brena Pedrosa da Silva - Graduada do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Unidade Bom Jesus do Itabapoana.