A postura omissa do governo e hostil da igreja católica em relação ao matrimônio entre pessoas de um mesmo sexo pode entender-se de muitas maneiras diferentes, especialmente quando intuímos a hipótese de um casamento com matizes religiosos: os usos católicos não amparam tais liberdades. Mas não é assim. O que se deveria tratar de legislar, e logo, tem que ver com as normas civis e suas correspondentes conseqüências legais. Se refere, pois, ao acordo entre duas pessoas capazes e sem impedimento legal algum para unir suas vidas com fins que não incluem a possibilidade biológica de ter filhos mediante a fórmula habitual de fecundação de um óvulo por parte de um espermatozóide.
Mas na medida em que está claro que o matrimônio inclui uma infinidade de relações diferentes à de procriar e que tem a ver, fundamentalmente, com a felicidade e a capacidade de autodeterminação e realização do indivíduo no âmbito de sua peculiar existência, a omissão do governo somente pode ser devida ao fato de que, até hoje, seguem imperando entre as altas instâncias da hierarquia dominante brasileira os esquemas que relacionam de maneira estreita as conseqüências civis do matrimônio às religiosas. Parece mais que evidente que estamos tratando de outra coisa. Se se aprova uma lei para regulamentar essas inegáveis e freqüentes situações de fato e dois homens ou duas mulheres se unem, graças a essa norma, em matrimônio exclusivamente civil, não levam a cabo nenhum ato contrário as normas de qualquer religião e, em especial, as da igreja católica .
De fato, existem crenças religiosas que autorizam matrimônios não simétricos e resultaria ridículo legitimar, em seu nome, por exemplo, a bigamia. Algo parecido sucede com os matrimônios entre pessoas do mesmo sexo. Se há uma lei que os ampara, é absurdo opor-se a essas uniões em nome dos costumes ou de qualquer religião. Depois, a Constituição da República, na ordem dos valores incondicionais, coloca em lugar de destaque o “interesse humano” ( do ser humano, do sujeito-cidadão) como princípio e fim dos valores nela consagrados: o interesse humano pela liberdade, o interesse humano pela não discriminação , o interesse humano pela igualdade, o interesse humano pela segurança, enfim, o interesse humano por uma sociedade justa, igualitária e fraterna.
E o interesse humano, como valor prioritário na ordem dos valores, vem a converter-se, desde a perspectiva da dignidade humana, em um convite a viver igual e livremente nossa existência a partir do reconhecimento do interesse do “outro” como um legítimo outro na realização do seu ser, que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo próximo. Este convite nos leva ao entendimento de que a mera existência de outros seres humanos com “interesses diferentes” impõe a um Estado dito democrático obrigações morais e legais iniludíveis de reconhecer-lhes o direito a plena e livre realização pessoal e familiar .
Porque falta de liberdade – de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir – é a que padecem os homossexuais que suportam o estigma estatal e social da dependência de valores arcaicos e paroquianamente espúrios, e que, por essa razão , para dizer em uma frase, ainda vivem com a permissão e sob o olhar discriminante daqueles que se crêem guardiões da “fé da tribo”. Com efeito, a responsabilidade do Estado para com esses cidadãos, que emana de sua mera existência, reside na ingente e inegociável obrigação de assegurar-lhes um conjunto de direitos de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos mesmos como indivíduos plenamente livres.
Afinal, uma vida justa e ética significa estar e se preocupar com o interesse dos outros dentro de um quadro institucional que afirme a todos na condição de cidadão: um governo completo, ética e responsavelmente comprometido com a igualdade social, é o governo virtuoso que combina a procura da felicidade pessoal dos seus cidadãos (cristãos ou não )com a exigência da solidariedade social , sob a égide de instituições justas .
Assim que é de todo legítimo o reconhecimento de um direito que até agora tem sido negado a um coletivo humano concreto de nossa sociedade. Mas antes de tudo, é um reconhecimento a um direito universal, ao direito à igualdade de todos os seres humanos para que possam fazer uso de sua liberdade e viver da forma que creiam mais conveniente , tendo como único limite a liberdade dos demais. Não se trata, pois, de um simples reconhecimento ao direito de uma minoria senão da consolidação de um sistema de liberdades que se fundamenta no respeito e desenvolvimento dos direitos humanos como norma para a convivência social. Um sistema que, pouco a pouco, se vem reconquistando, ou implantando, nas sociedades modernas desde a recuperação da democracia.
Uma eventual reforma da lei que venha a permitir o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo implicará, neste sentido, o fim de uma discriminação que hoje, afortunadamente, não tem razão de ser em nossa sociedade. Implicará, também, em um passo decisivo para acabar com um prejuízo que é tão antigo como a humanidade e que ao longo da histórico deu lugar a uma constante e perversa repressão. Não faz muito tempo que os homossexuais podiam ir à prisão só pelo fato de mostrar sua diferença. Por fortuna, a sociedade deu um giro copernicano e desde há alguns anos, e com caráter geral, passou a respeitar a união de fato, qualquer que seja a forma em que se ampara.
A lei que permita o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo não fará mais do que dar corpo legal a uma circunstância de fato que já está ( embora timidamente em alguns casos) socialmente admitida. O reconhecimento das uniões de fato foi o primeiro passo, ao que seguiram outros não menos importantes até chegar a real viabilidade e necessidade de legalização do casamento homoafetivo. Desde há alguns anos que os companheiros de um mesmo sexo já não têm que esconder-se ou, pelo menos, sabem que não serão legalmente perseguidos como antes. A possibilidade de casar-se não abre, portanto, nenhuma nova porta, salvo – e não é pouco – a do legítimo reconhecimento jurídico da liberdade de contrair vínculo matrimonial, qualquer que seja sua natureza ou forma. Quer dizer, uma igualdade de direitos com o resto da sociedade.
Frente a este direito fundamental, a Igreja e determinados setores conservadores, vêm condenando ou se opõem intransigentemente a que pessoas do mesmo sexo possam vir a casar-se. Aduzem, como se fosse óbvio, que pessoas do mesmo sexo não têm direito a casar-se por ser contrário a natura. Um prejuízo que as mais diversas áreas da ciência, há muito tempo, já desacreditou. Em realidade, a homossexualidade não pode ser tratada como uma patologia senão como uma opção pessoal que deve ser respeitada como todas as demais. Não afeta em absoluto ao resto da população senão somente aos que pretendem exercer este direito, mas que, por outro lado, consagra a liberdade e a igualdade de todos.
É ingente a necessidade de se derrubar, o quanto antes, outro muro da vergonha. A Constituição da República eliminou em seu dia qualquer discriminação por razao de raça, sexo ou condição social. Pouco a pouco se está cumprindo, ainda que algumas instituições (como a Igreja) persistam na desumana manutenção de discriminações deste tipo, e não somente sobre uns coletivos que possam ser mais ou menos minoritários, senão inclusive contra a própria mulher , quer dizer , contra mais da metade de seus próprios fiéis. Mas os critérios religiosos, por muito respeitáveis que sejam, estão limitados aos assuntos da fé. A esta cabe apenas ditar normas para uso de seus fiéis e velar para que sejam cumpridas.
Em definitivo, trata-se simplesmente, no caso do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, de reconhecer a esses seres humanos direitos que assegurem (de forma livre, inviolável, autônoma e digna) a capacidade de produzir, reproduzir e desenvolver suas vidas em comunidade, uma vez que, afetados por uma situação de intolerante morte existencial, continuam excluídos da participação social igualitária e da própria discussão democrática no que diz respeito a garantia de um legítimo interesse: o de amar os mais iguais.
Atahualpa Fernandez e Manuella Fernandez
Atahualpa Fernandez:Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da Unama/PA e Cesupa/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado) ; Advogado.Manuella Fernandez:Acadêmica de Direito da Unaerp/RP e Bolsista do Laboratório de Sistemática Humana/ UIB.
Código da publicação: 908
Como citar o texto:
FERNANDES, Atahualpa; FERNANDES, Manuella..Casamento homoafetivo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 153. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/908/casamento-homoafetivo. Acesso em 21 nov. 2005.
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