Introdução
Os estudos do regime jurídico-administrativo delatam a mister preocupação com a responsabilidade extracontratual do Estado. Por certo que os estudos acerca da temática exigem empenho de profundidade, especialmente, no que tange a uma perfeita elaboração de seus conceitos e correntes doutrinárias mais fortificadas.
O presente ensaio não possui o inconcebível alcance dão esgotamento da matéria. Muito antes, ao contrário, vislumbra fornecer uma breve introdução à temática, de modo a permitir um contato inicial àqueles que, certamente, buscam aprofundamento em pontos específicos.
1. Delimitação do tema
A “Responsabilidade do Estado”[2] a qual se refere o tema abrange as três funções estatais. Porém, quando se vai tratar do tema, costuma-se dar mais ênfase à responsabilidade resultantes da atuação da Administração Pública. Vale ressaltar que a responsabilidade é do Estado- pessoa jurídica-, sendo ela de ordem pecuniária. Isso, justamente, porque é o Estado (ou as pessoas que o representem em sua atuação finalisticamente pública) quem tem capacidade de arcar com os eventuais prejuízos (de ordem sempre civil) causados aos administrados.
A Responsabilidade extracontratual do Estado pode decorrer de atos jurídicos, atos ilícitos, comportamentos materiais ou omissão do poder público, bastando que haja um dano causado a terceiro por comportamento omissivo ou comissivo de agente do Estado.
Sendo assim, definindo “responsabilidade”, como o vínculo obrigacional existente entre o ato e sua conseqüência; a “responsabilidade extracontratual do Estado” é a obrigação gerada por seus atos, sendo eles lícitos ou ilícitos que deve reparar os danos causados.
2. Evolução
Em tempos antigos, devido à política do The king can do no wrong, havia a “Teoria da Irresponsabilidade” do Estado, vez que a figura do Estado era confundida com a de um Rei que era enviado por Deus (Estado Absolutista).
No decorrer dos anos, evoluiu para a da responsabilidade subjetiva vinculada à culpa: ao Estado poderia ser imputada responsabilidade, desde que comprovada a sua “culpa”. Mais adiante, chega-se à Teoria da Responsabilidade objetiva, na qual se enquadra, preferencialmente, o direito brasileiro.
DI PIETRO[3], costuma subdividir as teorias sobre responsabilidade do seguinte modo:
1. teoria da irresponsabilidade
2. teoria civilista
- teoria dos atos de império e de gestão
- teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva
3. teorias publicistas
- teoria da culpa administrativa ou culpa do serviço público; e
- teoria do risco integral ou administrativo ou teoria da responsabilidade objetiva.
2.1. Teoria da irresponsabilidade
Pela idéia de “soberania”, tal; como concebida na era moderna, o Rei estava acima da própria lei, não podendo ser igualado a seus súditos (“aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei”). Devido à injustiça decorrente dessa teoria, logo começou a ser combatida.
Nos EUA, a partir do Federal Tort Claim Act, de 1946, passou-se a adotar a “Teoria da Responsabilidade subjetiva”. A partir de então, ao cidadão se abriu às possibilidades de acionar o funcionário causador de dano ou, diretamente ao Estado. Nesta última hipótese, deverá ser apurada a culpa, de maneira tão ou mais aprofundada que a ocorrida entre particulares.
2.2. Teorias civilistas
2.2.1. Teoria civilista da culpa
Distinção entre atos de império (atos praticados pelo Estado em sua posição de supremacia- prerrogativas, privilégios, autoridade ,vez que o cidadão comum jamais poderia exercer essas atividades)
Atos de gestão (praticados pela administração em pé de igualdade com o cidadão comum)
A responsabilidade do Estado passou a ser admitida, então, mas apenas com relação aos atos de gestão. Foi evidente distinção entre o Rei (que praticava atos de Império) e o Estado (que praticava os atos de gestão).
A oposição à teoria fundamentou-se em dois pontos sendo eles, a impossibilidade de se dividir a personalidade do estado e a extrema dificuldade de enquadrar como atos de gestão “todos aqueles praticados pelo Estado na administração do patrimônio público e na prestação de seus serviços.”
Embora abandonada a teoria dos atos de império e de gestão continuou o apego à teoria civilista passando-se a equiparar a responsabilidade do estado à do patrão pelos atos dos empregados. Foi a chamada teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva.
2.3. Teorias publicistas
Com o conflito de competência entre os órgãos julgadores, ocorridos no caso Blanco, em que se entendeu que o Tribunal administrativo deveria ser o adequado, por se tratar de responsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público.
O Direito civil não seria o adequado a reger as relações que envolvessem o Estado, dado que as relações decorrentes da prestação de serviços são muito mais complexas que aquelas que envolvem cidadãos comuns, vez que o Estado deve conciliar os interesses públicos com os privados.
Daí surgiram teorias publicistas da responsabilidade do Estado: teoria da culpa do serviço (ou culpa administrativa) e a teoria do risco (esta última subdividindo-se em do “risco administrativo” e do “risco integral”).
3. Direito positivo brasileiro
A evolução da Teoria da Responsabilidade civil do estado perpassou por autores de peso que contribuíram, em muito, para os entendimentos até hoje firmados na doutrina e nos Tribunais.
É o caso v.g. de Rui Barbosa[4] que, ao discutir o alcance da responsabilidade quando da inércia do Estado (ato omissivo), defendeu que o Estado deveria arcar com prejuízos decorrentes da falta de atuação da polícia local que não haveria impedido danos ao jornal ‘O Comércio de São Paulo’. Para tanto, afirmou em parecer[5]:
Princípio corrente foi sempre o de que o poder em cujas mãos se ache a autoridade policial responde pelo dano cometido no seu território pelos ajuntamentos armados ou desarmados.
Por isso, já a legislação do período revolucionário, na França, nos fins do século passado, estatuía para as comunas essa obrigação, em vigor até hoje, além daquele país, em todos os outros onde a polícia é municipal, inclusive a Inglaterra e os Estado Unidos. Em São Paulo, é o Estado que exerce a polícia. A esta, logo, incumbe a responsabilidade pela culpa ativa ou passiva dos seus agentes.
A posteriori, Pedro Lessa[6] defendeu a Teoria do risco integral, como fundamento da responsabilidade civil do Estado; pari passu, leciona Arnold WALD[7] que:
vários acórdãos consagravam o dever da União Federal de indenizar os prejuízos ocorridos por ocasião dos bombardeios de Manaus e Salvador e nos distúrbios que danificaram empresas alemãs, por ocasião da 1ª Guerra Mundial, e do afundamento de navios brasileiros, que precedem a entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial.
Cumpre esclarecer que a doutrina brasileira, além de consagrar a Teoria da responsabilidade objetiva e Teoria do risco administrativo como fundamentos da responsabilidade extracontratual do Estado, reconhece que, “havendo mau funcionamento do serviço, o Estado é responsável pelos danos causados, salvo se fizer prova da existência, no caso, de força maior.”[8]
Nessa esteira, Amaro Cavalcanti esclareceu que:
A responsabilidade civil da administração pública ou do Estado, pelo contrário, parte das condições objetivas do dano [...] se podia dizer que a indenização, por parte da administração pública, também se dá sem o concurso da voluntariedade e pela só condição de haver um dano verificado ... na responsabilidade civil específica da administração pública ou do Estado, o que prepondera é o caráter objetivo da mesma responsabilidade[9].
Pacífico na doutrina o entendimento de que vige no direito positivo brasileiro a “Teoria objetiva”, baseada no risco, o que se torna notório quando consultados Hely Lopes Meirelles[10], Seabra Fagundes[11], Caio Tácito[12], “não apenas como simples aspiração num direito in fieri, e lege ferenda, mas, sim, como norma concreta consolidada no Direito Positivo e com categoria de regra constitucional” [13].
As relações entre as pessoas jurídicas de direito público e os particulares seriam regidas por essa Teoria do risco; no entanto, a responsabilidade do funcionário diante do Estado continuaria vinculada à idéia de culpa.
“Em defesa da noção de segurança das pessoas e dos bens, admitiu-se que qualquer violação de direito devia ser indenizada, só se excluindo a responsabilidade no caso da força maior e de culpa exclusiva da vítima ou do lesado.”[14]
O ponto fundamental de diferença entre a “Teoria do risco” e a culpa presumida repousa no fato de que, enquanto naquele caso, só se exclui a responsabilidade na hipótese de força maior; nesse último (culpa presumida), reconhecem-se como causas de exoneração o caso fortuito e o fato de terceiro[15]
4. Excludentes e atenuantes
Há plena compreensão de que existem hipóteses que podem atenuar e, até mesmo, excluir a Responsabilidade do Estado. São elas, notoriamente: a força maior e a culpa da vítima.
Antônio Chaves[16] menciona que a Administração não responde por danos ocorridos por culpa da vítima ou por motivo de força maior. Já na hipótese de caso fortuito a Administração responde, “por estar este último no risco do serviço", "aparecendo no caso fortuito, a vontade na organização e funcionamento do serviço”[17].
Destaque-se que no que diz respeito à ocorrência de força maior, os pretórios compreendem em sua maioria que ao réu cabe provar a sua ocorrência, o que leva a crer que “o critério jurisprudencial adotado no Brasil é o do risco administrativo”[18].
Em casos de depredações por multidões e enchentes uma parte da doutrina continua exigindo a prova da culpa da Administração. Arnold Wald costuma mencionar:
Em tais hipóteses, entendemos que a culpa é anônima, constituindo o que se denominou ‘falta de serviço’, que não necessita ser provada, presumindo-se pelo simples fato do mau funcionamento do aparelho administrativo, como, aliás, decidiu a jurisprudência no acórdão líder de 1958. A ocorrência do dano comprova, por si só, que os serviços não funcionaram ou funcionaram mal, caracterizando, assim, a falta de serviço que justifica a indenização.
No que tange à culpa da vítima, é de se esclarecer que se a culpa for exclusiva da vítima, o Estado fica exonerado de responsabilidade; vindo, no entanto a ter esta atenuada, no caso de culpa concorrente.
5. Responsabilidade por atos legislativos
A regra que prevalece é da irresponsabilidade, fundamentada no argumento da soberania, no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais e que os próprios cidadãos que elegeram os legisladores, não podendo responsabilizar o estado pelos seus atos.
Os contra argumentos são:
- mesmo exercendo parcela da soberania, o Legislativo deve se submeter à constituição; logo se a lei é inconctitucional. Há a responsabilidade do Estado;
- os efeitos gerados pela lei, nem sempre, são gerais e abstratos, sendo que algumas dessas leis podem atingir diretamente algumas pessoas mais que a outras;
- quando se elege um parlamentar ele o é para fazer leis constitucionais.
6. Responsabilidade por atos jurisdicionais
São quatro os argumentos que refutam a responsabilidade do Judiciário por seus atos:
- O Poder judiciário é soberano;
- Os juízes têm que ter independência para exercício de suas funções, sem temor pela responsabilidade que possa ser gerada ao Estado;
- O magistrado não seria funcionário público;
- Haveria infringência à regra da imutabilidade da coisa julgada, numa implicação ao reconhecimento de que houve violação da lei.
No entanto, DI PIETRO aponta os contra argumentos, assim arrolados:
- Os poderes não são soberanos por deverem obediência à Constituição
- não se pode falar em independência exclusiva do Judiciário, pois essa é atributo inerente a todos os poderes do Estado. O mesmo temor de causar dano poderia pressionar o Executivo e o Legislativo;
- O juiz é funcionário público, sim, conforme se extrai da Constituição em seu art. 37, §6º;
- Não se discute a validade ou não da coisa julgada; apenas, requer-se que o Estado repare os danos causados, não havendo desvinculação das partes ao processo.
Lamentável, no entanto, que a jurisprudência não aceite a responsabilidade do Estado por atos de seus juízes, mesmo tendo a Constituição admitido a Teoria da responsabilidade nos casos de erros judiciários criminais.
7. Reparação do dano
Pode ser feita tanto no âmbito administrativo (desde que a Administração reconheça sua responsabilidade ab initio e haja entendimento entre as partes); ou no judicial, caso a coisa se torne litigiosa, através de ação de indenização, contra a pessoa jurídica que causou o dano.
DI PIETRO[19] aponta que:
Quando se trata ação fundada na culpa anônima do serviço, ou apenas na responsabilidade objetiva decorrente do risco, a denunciação não cabe, porque o denunciante estaria incluindo novo fundamento na ação: a culpa ou dolo do funcionário, não argüida pelo autor;
Quando se trata de ação fundada na responsabilidade objetiva do Estado, mas com argüição de culpa do agente público, a denunciação da lide é cabível como também é possível o litisconsórcio facultativo (com citação da pessoa jurídica e de seu agente) ou a propositura da ação diretamente contra o agente público.
8. Abordagem conclusiva
Como proposto ab radice a presente incursão não possui a pretensão de aprofundar sobre os infinitos temas circundantes da Responsabilidade extracontratual do Estado. Visa, tão somente e de maneira, a um só tempo, singela e didática conceder as diretrizes introdutórias às futuras incursões e dissertações sobre suas temáticas específicas.
Notas:
[2] DI PIETRO subdivide o tema “Responsabilidade civil do Estado” em “Responsabilidade extracontratual do Estado” e “Responsabilidade contratual”. (in Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2003. p. 523)
[3] op. cit., p. 524.
[4] ‘Obras Completas de Rui Barbosa’, ed. da Casa Rui Barbosa, vol. XXV, Tomo IV/168, ‘Trabalhos Jurídicos’, e vol. XXVII, 1900, Tomo II, 1211, ‘Trabalhos Jurídicos’, e, ainda, Arnoldo Wald, ‘A Responsabilidade Civil e seus Antecedentes Doutrinários no Direito Brasileiro’, in Revista do Serviço Público, março, 1955, p. 540
[5] idem
[6] ‘Do Poder Judiciário’, Rio, 1915, p. 166/167.
[7] WALD, Arnold. Os fundamentos da Responsabilidade civil do Estado. Disponível em CD-Rom “Jurisplenum”. 2000 s.n.t.
[8] WALD, Arnold. Op. cit.
[9] Responsabilidade Civil do Estado’, nova ed., Rio, 1957, p. 345.
[10] In Direito Administrativo Brasileiro’, São Paulo: Malheiros, 2002.
[11] In ‘O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário’, Rio de Janeiro: Forense.
[12] In ‘Direito Administrativo’. São Paulo: Saraiva.
[13] WALD, Arnold. Op. cit.
[14] WALD, Arnold. Op. cit.
[15] sobre o assunto conferir LAUBADERE. Traité Élémentaire de Droit Administratif. 4. ed., Paris, 1967, p. 632.
[16] In Responsabilidade no direito ambiental brasileiro. S.n.t.
[17] CAVALCANTI, Themístocles B., "Tratado de Direito Administrativo", p. 415
[18] WALD, Arnold. Op. cit.
[19] op. cit. p. 537.
Ana Flávia de Aguiar Melo Garcia
Advogada e Consultora Jurídica em Belo Horizonte;Professora e tradutora de textos jurídicos em inglês;
Autora de diversos artigos jurídicos.
Código da publicação: 1224
Como citar o texto:
GARCIA, Ana Flávia de Aguiar Melo..Responsabilidade Extracontratual do Estado: introdução didática aos aspectos fundamentais do instituto. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 176. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-responsabilidade-civil/1224/responsabilidade-extracontratual-estado-introducao-didatica-aos-aspectos-fundamentais-instituto. Acesso em 4 mai. 2006.
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