Tolerância aos intolerantes?

Análise da liberdade de expressão, a preservação do Estado democrático de Direito frente a imunidade parlamentar. Até que ponto a liberdade de expressão somada a imunidade parlamentar podem caminhar juntas? Uso da metologia doutrinária para o debate acendido por vídeo postado e veiculado em rede social.

As discussões sobre a liberdade de expressão, a ofensa a honra e a defesa da democracia são objetos de estudos dos juristas pelo dinamismo social, fluxo de informações e não se encerrarão. Esses três valores são caros às sociedades conduzidas pelos princípios republicanos. Reacende a leitura de Karl Popper em seu livro “A sociedade aberta e seus inimigos”: deve-se ser tolerante aos intolerantes?

Não há dúvidas quanto à necessidade da manutenção da liberdade de expressão: a Constituição Federal de 1988 nasceu do clamor popular do rompimento da Ditadura Militar que naquele momento a censura era a regra a ser aplicada. 

Não se tem exatamente – de forma matemática- quando termina a liberdade de expressão e começa a ofensa da honra de terceiros ou ao início de rompimento com a ordem democrática. 

O Estado democrático de Direito pressupõe que as leis são a fonte expressa da vontade popular através de seus representantes. A Lei de Segurança Nacional (LSN) foi criada em 1978 e utilizada como um dos instrumentos de cassar a liberdade de expressão e perseguir quem lutasse contra o Golpe militar. 

Com a retomada da democracia, em 1985-1988, e a implantação do regime constitucional atual, a LSN foi recepcionada pelo Texto constitucional e mantida de forma amenizada, pois alguns principais artigos específicos que orientavam a perseguição política foram retirados. A recepção da LSN foi justificada pelo fato de crimes com motivação política podem ferir a segurança do Estado e, por essa via, deve ter tratamento especial, em que pese várias condutas estão tipificadas também no Código Penal.

No ordenamento jurídico brasileiro atual, percebe a permanência de várias disposições legais que sua origem histórica se deu por motivação autoritária. Assim, como é possível a manutenção de dispositivos legais desse peso permanecer num sistema democrático e republicano? Pode-se tolerar num sistema jurídico democrático crime de opinião?

O intolerante é marcado por reagir veementemente contra os modos de pensar diversos, luta contra o diferente – não é apenas reação de uma crítica: ele vai além. Ele quer se impor, perseguir e aniquilar a existência de pensamentos plurais, modos de viver e agir distintos dele. Esse intolerante está inserido numa ordem democrática que protege a liberdade de expressão, a honra, a privacidade, a vida, a segurança, dentre outros princípios caros.

Nesse mesmo plano, Karl Popper aponta para uma sociedade de tolerância ilimitada, ou seja, que não reaja a esse indivíduo intolerante. Uma sociedade tolerante a qualquer título, tudo livre ilimitadamente, já que a democracia deve, em tese, suportar todas as formas de visões de mundo, até mesmo aquela ideia de perseguir grupos, pessoas ou instituições que protegem o Estado democrático de Direito. 

A não reação ao intolerante dessa monta é ameaça potencial da integridade dos tolerantes: aquele intentando sobre a vida de outros ou instituições de preservação do poder constituído poderá desencadear ao desaparecimento do tolerante. Assim, para até o mesmo o tolerante ter o direito de permanecer, será necessário limitar o intolerante. 

Através de argumentos racionais, os movimentos de intolerância devem ser combatidos, de tal forma que os mesmos não sejam aniquilados, mas mantidos sob controle dos tolerantes. É uma dinâmica sensível. Essa reserva dada aos tolerantes desse direito de suprimir; já que se prega a exigência que os intolerantes fiquem à margem da lei e a incitação à perseguição seja considerada criminosa.

O sistema democrático exige de todos a tolerância ao diverso. O xeque-mate contra os intolerantes é necessário para a manutenção do próprio ambiente de igualdade, antiautoritário. O “paradoxo da liberdade total” leva a aniquilação do fraco pelo forte e o “paradoxo da democracia” que decida ser governada por um tirano, argumento Popper. 

Não há dúvidas que o parlamentar testa o limite de sua imunidade e da sua liberdade de opinião. Sabe-se que também não é ilimitada, por isso, a existência de Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, a qual tem a função institucional de avaliar a conduta que eventualmente extrapolarem os limites impostos pelo Regimento da Casa; assim como, do abuso de palavras que desvalorizem as instituições democráticas. 

A conduta chamada de “politicamente correto” jamais será uma imposição constitucional. Assim, como há espaço constitucional para a existência do ignorante, do rude, do chulo. Crime de opinião deve ser combatido pela ordem constitucional. Para o intolerante – aquele inspira o aniquilamento do diferente e apologia ao encerramento de qualquer instituição constituída democraticamente – o remédio amargo é a mitigação de sua conduta antidemocrática para a proteção da própria ordem constitucional.

Ressalva-se que a ordem processual aplicada ao caso do parlamentar deve ser protegida: contraditório, ampla defesa, o foro privilegiado, poder judicante imparcial, julgamento justo, dentre outros. Eventualmente, se em algum julgamento não for obedecida a ordem constitucional democrática preestabelecida deve ser anulado de pronto o ato; e, em última instância, recorrer as Cortes internacionais que tutelam o mínimo existencial humano.

Não há dúvidas sobre a necessidade da manutenção da liberdade de expressão e, no mesmo viés, da tutela da diversidade, da vida privada e da honra, inclusive ao sustentáculo dos princípios que preservam a dignidade da pessoa humana, qual seja o próprio Estado democrático de Direito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Regimento Interno da Câmara dos Deputados inclui Código de ética e Decoro Parlamentar Comum do Congresso Nacional. 21. ed. 2020. Acesso em 19 de fevereiro de 2021. 

Popper, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. 3.ed.

Data da conclusão/última revisão: 01/03/2021

 

 

 

Ilnah Toledo Augusto

Doutora em Direito pela Instituição Toledo de Ensino, Mestre em Direito e Especialista. Professora de Direito Constitucional. Advogada e parecerista.