A criança em conflito com a lei

O presente trabalho tem como objetivo demonstrar a situação da criança em conflito com a lei à luz da legislação estatutária. Necessário se faz conhecer a perspectiva histórica que envolveu o direito infanto-juvenil, além de entender a fundo o tratamento hoje concedido. Enfoca-se o ato infracional e as medidas aplicadas à criança autora de ato ilícito. Objetiva, ainda, esclarecer para a comunidade que não existe punição ou retribuição para a criança, pois como pessoa em formação o tratamento diferenciado é determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente com o fito de proteger a criança das ameaças e violações de seus direitos. A punição não serve como medida educativa, porque apenas retribui o mal causado. Entendido como é vista a criança em conflito com a lei, é destacado os meios de execução das medidas de proteção e a sua efetivação. Concluir-se-á pela prevalência do respeito aos direitos das crianças, pessoas que por tanto passaram até se tornarem sujeitas de direito e, portanto atingiram a plenitude do princípio constitucional da dignidade humana.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O aumento da criminalidade é causa suficiente para qualquer discussão que envolva o direito sancionador. No entanto, a prática de atos análogos à delitos por crianças, pessoas com idade abaixo de doze anos incompletos, provocam uma maior atenção às suas condutas e causam maiores repercussões jurídicas.

A criança que pratica fato tipificado como crime ou contravenção na legislação penal pratica ato infracional, atribuição dos ilícitos praticados por criança ou adolescente. E é nesta questão que se situa o presente trabalho, em entender as consequências da prática do ato infracional pela criança.

O Estado é pressionado pela sociedade para responder às ações infracionais praticadas pelos jovens. Entende a sociedade existir um salvo conduto para essas práticas por crianças ou adolescentes. Contudo, a ausência de informação esconde a realidade. Não existe punição e retribuição dentro do direito infanto-juvenil. Perdura a política de educação e proteção aos direitos das crianças e adolescentes com o fim de evitar tais condutas.

É importante entender o tratamento legislativo à criança que entra em conflito com a lei. Para essa percepção, é essencial compreender a evolução histórica até o advento da Constituição Federal no ano de 1988, bem como a publicação do Estatuto da Criança e Adolescente no ano de 1990, pelos quais foram rompidos paradigmas e preconceitos relativos às pessoas com menos de dezoito anos de idade. 

Soma-se a esse trajeto, a necessidade sobre o conhecimento dos direitos das crianças e adolescentes elencados no ECA, da autoridade competente para atender a criança em conflito com a lei - o Conselho Tutelar, da teoria do ato infracional e como as medidas de proteção, que envolvem a ameaça ou violação de direitos das crianças e adolescentes, são também aplicadas nos casos de autoria de ato infracional por àquelas. 

 

1. ESBOÇO HISTÓRICO

No decorrer do século XX a situação da criança e adolescente sofreu incríveis transformações. Em 1989 a Organização das Nações Unidas, já consolidada no plano internacional, encabeçou, após duas grandes guerras mundiais e ameaças da Guerra-Fria, tratado suficiente para provocar uma divisão de águas com relação aos tratamentos direcionados as crianças e aos adolescentes: a Convenção dos Direitos da Criança. Na verdade, a convenção é uma continuação do documento elaborado em 1959, a Declaração dos Direitos da Criança.

Conforme comenta Sérgio Augusto (2002) “a Convenção cria um sistema segundo o qual não existe efetiva proteção sem que se garanta todos os direitos essenciais”. Assim, o foco da norma internacional é a doutrina da proteção integral. Busca-se o interesse integral da criança, com foco no seu correto desenvolvimento. Serve, desse modo, como orientação da comunidade internacional no tratamento com crianças e adolescentes. No Brasil a convenção foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 28 de 14 de setembro de 1990 e promulgada pelo Decreto n. 99.710 de 21 de novembro de 1990.

Quanto à legislação interna no Brasil, entretanto, o direito infanto-juvenil se iniciou de forma contrária à natureza protetiva. O Código de 1927, conhecido como Código Mello Mattos, em razão do magistrado titular do primeiro Juizado de Menores criado em 1924, José Cândido Albuquerque Mello Mattos, tratava de duas classes de menores protegidos: os abandonados e os delinquentes. Entendia-se, na época, que a ausência, pobreza e a desestrutura familiar seriam os causadores da situação do menor. Assim, enquanto não fosse combatida a exploração econômica não seria útil a lei. 

Considerada como segundo Código de Menores do Brasil, a Lei Federal n. 6.697 de 12 de outubro de 1979, fundamentou-se na doutrina da situação irregular do menor.  As situações irregulares são definidas por Paulo Lúcio Nogueira, citado por Tânia da Silva Pereira (2008), “como situações de perigo que poderão levar o menor a uma marginalização mais ampla, pois o abandono material ou moral é um passo para a criminalidade”. São, deste modo, ocorrências taxativas, bastando a adequação do fato à hipótese de incidência prevista. 

Cavallieri citado por Kaminski (2002) sintetiza a divisão legal em relação às classes de menores em “a) abandonados – (materialmente, intelectualmente e juridicamente), b) vítimas – (de maus-tratos, em perigo moral, desassistidos e explorados) e os c) infratores ou inadaptados”. A legislação não fazia, por outro lado, diferenciação etária para fins de aplicação de medidas de assistência e proteção. 

Porém, a imposição de medidas era do Juiz de Menores, o qual abraçava conflitos de caráter penal (aqui entendidos como infracionais) e tutelares (relacionados a pobreza problemas sociais). Dessa maneira, tudo estava no controle do titular do Juizado de Menores e as decisões, como destaca Tânia da Silva Pereira (2008), “tomadas em nome da lei, tantas vezes arbitrárias, eram fruto de critérios subjetivos, marcados pela discriminação, desinformação, ou ainda, pela falta de condições institucionais que melhor viabilizassem a apreciação dos conflitos.”

Portanto, o Estado não efetivava os direitos de um sujeito, mas prestava sua assistência a buscar a proteção do menor abandonado ou infrator. Exercia-se o direito paternalista e era concedida a criança e ao adolescente, denominados menores, a benção de receber do Estado uma proteção que objetiva o fim de uma situação irregular, ou seja, só merece apoio estatal aquele enquadrado nas situações irregulares, quer por abandono ou por prática de ilícito penal. 

A alteração desse paradigma, todavia, só foi possível com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O artigo 227 da CRFB introduziu a doutrina da proteção integral, consistente na transformação de visão em relação à criança e ao adolescente, a transmutar a situação enxergada de menores irregulares em sujeitos de direitos. Igualmente, além de romper os antigos paradigmas, reservou dentro do capítulo sobre a família um artigo que explicita os direitos que devem ser garantidos as crianças, adolescentes e jovens. 

Cumprindo as inovações e determinações trazidas pelo artigo 227 da CRFB, surgiu a Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, que regulamentou o novo direito da criança e do adolescente. Tal normatização abraça a doutrina da proteção integral e continua em vigor. Inovou no cenário jurídico ao prever como criança a pessoa de até doze anos incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Fixou, por consequência, previsões diferentes em relação às crianças e aos adolescentes autores de atos infracionais. 

Nota-se, portanto, um patamar de direitos atingido pela criança, não visualizado nos séculos passados. Chamado de menor, abandonado, infrator, guri e outras tantas nominações, é hoje abraçado e protegido pela ECA, considerado agora como sujeito de direitos e deveres e não apenas como menor sem qualquer tutela do Estado. 

Ponto importante é artigo 3º do ECA. Deixa claro o dispositivo que às pessoas em formação são garantidos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana sem que seja prejudicada a proteção integral tratada pelo estatuto.

Portanto, com o ECA o Brasil encerrou o seu processo histórico-jurídico de evolução normativa do direito da infância. Com a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente não reside a discussão em como se deve tratar as crianças e os adolescentes, mas sim se estão sendo tratados corretamente. 

 

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADOS A CRIANÇA E AO ADOLESCENTE

Celso Bastos citado por Roberto João Elias (2005, p.7) entende que os direitos fundamentais “são prerrogativas que o indivíduo tem em face do Estado, ressaltando que o Estado tem limites para sua atuação, não podendo invadir a defesa jurídica do cidadão”. Estão, assim, garantidos os meios fundamentais da vida e do desenvolvimento físico e moral da própria existência, reconhecidos pela Constituição Federal.

Com a adoção pela Constituição Federal de 1988 da doutrina da proteção integral, as crianças e os adolescentes passaram de objeto de direito para sujeitos de direito. A doutrina da proteção integral é um princípio regente de toda a aplicação do ECA. Roberto João Elias (2005, p.2) resume a proteção integral como sendo “o fornecimento, à criança e ao adolescente, de toda a assistência necessária ao pleno desenvolvimento de sua personalidade”. Guilherme Freire de Melo Barros (2010, p.22) entende por proteção integral como “um conjunto amplo de mecanismos jurídicos voltados à tutela da criança e do adolescente”. Sendo assim, será aplicada a proteção integral a todos àqueles que não completaram dezoito anos, prezando por garantir que todo o procedimento relativo à infância e adolescência esteja de acordo com este princípio norteador.

O artigo 3º do ECA reforça o gozo de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral. Já em especifico aos atos infracionais, cinco direitos assegurados pelo ECA são essenciais: vida, dignidade, respeito, liberdade e convivência.

A vida é o direito mais importante, o basilar de todos os outros, pois sem vida não há ser humano. Garantido constitucionalmente, direito à vida é continuar vivo e ter vida digna. Pedro Lenza (2009, p. 78) explica que se desdobram desse direito “a proibição da pena de morte e a segurança de assegurar as necessidades vitais básicas do ser humano”. Do direito a vida decorrem todos os outros direitos fundamentais. Sueli Roriz Moreira (2010, p. 60) entende ser a vida “pressuposto da personalidade, sendo que a integridade corporal é condição de energia e eficiência do indivíduo”. Assim, o direito à vida não é nada mais do que a garantia dada pelo Estado de que a criança viverá com a sua integridade física protegida e não terá tão importante objeto jurídico ameaçado, a estar, assim, assegurado uma vida digna as crianças e adolescentes.

A dignidade, por sua vez, decorre do direito à vida. Referencia-se ao princípio da dignidade humana. O Estatuto detalha as vertentes deste direito ao colocar a criança e o adolescente a salvos de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. 

A ponderação feita pelo artigo 18 da Lei n. 8.069/90, a respeito do princípio da dignidade, vem ao encontro dos anseios de se evitar que os menores de dezoito anos sofram tratamentos indignos ou sejam alvos de condutas que não priorizam a sua condição de pessoas em desenvolvimento. Sendo assim, a sociedade, Estado e genitores devem atuar de maneira a preservar o mínimo de dignidade a estes sujeitos.

Direito importante é a liberdade. Posicionado logo após a vida no caput do artigo 5º, a liberdade possui previsão específica no artigo 16 do ECA. Em análise simplificada, o direito à liberdade pode ser entendido como a autonomia de poder ir e vir, agir e não agir, pensar ou não pensar, sem qualquer impedimento legal ou pessoal.

Uma peculiaridade do direito a liberdade, não muita abordada, mas de extrema importância, contida no final do §1º do artigo 101 do ECA, deve ser lembrada, a não aplicação à criança de medidas que possam implicar em sua privação de liberdade. Assim, independentemente da situação da criança em conflito com a lei, não se deve aplicar qualquer conduta resultante em privação de liberdade. 

Relevante como o direito à vida, dignidade ou liberdade, o respeito à criança e adolescente envolve a proibição de ação que possa ferir a sua integridade física, psíquica e moral. Assim, deve-se tratar as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos fundamentais, os quais impedem o tratamento desumano e irresponsável. Ressalte-se, ainda, a necessidade de preservação da imagem, identidade, autonomia, valores, ideias e crenças, espaços e objetos pessoais quando da aplicação de medidas de proteção ou socioeducativas.

O legislador do ECA previu, por outro lado, o ensinamento de que a pessoa deve viver em família, seu ambiente conhecido, para assim atingir o pleno desenvolvimento. O conceito de família é lato sensu, com prioridade para proteção das crianças e adolescentes. A família é o primeiro núcleo de proteção integral, uma instituição social existente desde tempos remotos, representativa de um ambiente maior, a comunidade e a sociedade e que deve consubstanciar aos seus membros regras de conduta, com o fim de evitar prejudicar os outros núcleos componentes da sociedade humana.

 

3. CONSELHO TUTELAR 

Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente foi introduzida na realidade jurídica brasileira a figura de um órgão administrativo, mas com competências relevantes em relação às crianças e aos adolescentes: o Conselho Tutelar. 

É o Conselho Tutelar composto por várias pessoas, uma verdadeira assembleia que toma a frente na proteção dos direitos da criança e adolescente. Constitui-se de cinco conselheiros eleitos pelo mandato de 4 (quatro) anos. Exige-se idade superior a vinte e um anos, idoneidade moral e residência no Município. Caracteriza-se, ainda, pelo atendimento direto com a criança ou adolescente.

A criação do órgão Conselho Tutelar é uma tentativa de auxiliar o judiciário, pois antes esse cumulava a função jurídico-social. Como consequência, havia uma maior morosidade nos assuntos relacionados à infância e juventude. Mesmo sendo esta justiça especializada, se fazia necessário a desjudicialização de certas matérias, as quais poderiam estar na incumbência de outro órgão, mesmo de natureza administrativa. Assim, o ECA atendeu aos anseios da época, trazendo ao cenário jurídico brasileiro uma nova autoridade competente.

No panorama atual o Conselho possui suas atribuições e competências bem delimitadas. As questões judiciais estão a cargo do juiz da infância e juventude e na alçada dos Conselhos Tutelares estão as problemáticas administrativas, socioassistenciais e atendimento da criança envolvida com ato infracional.

Sobre o Conselho Tutelar, do próprio artigo 131 da lei n. 8.069 de 1990, destacam-se algumas características. É órgão permanente, autônomo, não jurisdicional, zelador dos direitos da criança e do adolescente e caracterizado como serviço público relevante. Não está dentro do aparelho jurisdicional estatal. É órgão administrativo vinculado ao Poder Executivo Municipal

O caráter permanente está relacionado a sua existência. Uma vez instalado não poderá deixar de existir. Integra o quadro das instituições públicas municipais, embora seus membros possuam mandatos transitórios. Autônomo por não estar subordinado a qualquer autoridade. Pode exercer livremente suas atribuições. Foi instituído para ser independente nas matérias pertinentes, a agir sem estar preso a qualquer orientação. Cumprirá, assim, o papel fiscalizador do sistema de proteção integral, decidindo às matérias de sua competência. Suas decisões estão sujeitas somente a revisão pelo judiciário, mas com respeito ao mérito, em semelhança aos atos administrativos regulares.

A função de zelador decorre da função tutelar. Cabe ao colegiado cuidar e fiscalizar para que a família, a comunidade, a sociedade e o Estado cumpram os seus deveres e atendam aos direitos da criança e adolescentes como foram regulamentados pela lei, com prioridade para os direitos à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e a convivência familiar e comunitária.

Por fim, o serviço dos conselhos constituirá serviço público relevante. O texto do artigo 135 do ECA é claro ao estabelecer essa característica, além de estabelecer a presunção de idoneidade moral e garantia de prisão especial, em caso de crime comum, até o julgamento definitivo. A natureza de serviço relevante encontra guarida, pois o conselheiro tutelar é agente público investido de mandato concedido pela comunidade.

Os conselhos estão restritos a circunscrição de um município. O ECA determinou a municipalização do atendimento à Criança e Adolescente. Prevê o fortalecendo da relação dos conselheiros já habitantes da localidade com as pessoas que serão abraçadas pelos conselhos. A formação será plural, necessitando-se de cinco membros, atuando de forma coletiva, como assembleia ou conselho.

A competência dos conselhos segue a mesma determinação para o juízo. Apesar de não exercer função jurisdicional, o legislador ao estabelecer a área de atuação do conselho preferiu utilizar a mesma regra, conforme o artigo 147 do Estatuto.

Dessarte, será a competência apenas territorial e material. A existir mais de um conselho tutelar (não há vedações à quantidade), a determinação da alçada se dará primeiro pelo domicílio dos pais ou responsáveis e na falta deste pelo lugar onde se encontra a criança ou adolescente. 

Os Conselhos Tutelares são ainda órgãos que possuem duas funções específicas, aparentemente contraditórias, no entanto, necessárias para a correta integração operacional estabelecida pela lei: aplicar medidas de proteção às crianças que cometeram ato considerado como infracional e zelar pelos direitos das crianças e dos adolescentes.

 

4. TEORIA DO ATO INFRACIONAL

O conflito entre uma criança e a lei toma forma com a prática de um ato infracional. O Estatuto conquanto não tenha especificado ou conceituado essa espécie de ilícito, resolveu considerar como ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.

Nessa vereda, quando uma criança ou adolescente pratica algum crime ou contravenção penal, não está a praticar ilícitos penais, mas sim uma espécie nova, definida apenas pela Lei n. 8.069/90. Kaminski traz a discussão doutrinária acerca da definição do ilícito juvenil:

Em nossa busca, encontramos três tentativas de conceituação do ato infracional, uma entendo-o como sinônimo de crime (ação típica, antijurídica e culpável); outra vendo-o apenas como fato típico e antijurídico, e a terceira, em busca de uma sistematização científica do Direito da Criança e do Adolescente, propondo-o como simplesmente um fato típico. (KAMINSKI, 2002, p. 51)

A grande maioria da doutrina abraça a equivalência ao conceito de crime (fato típico, antijurídico e culpável), o que traria à interpretação do ECA conhecimento do direito penal, já que o crime é o objeto de estudo de tal ramo do direito. Porém, se utiliza o direito juvenil de suas ideias consolidadas na análise do ato infracional. 

Ressalte-se, nesse sentido, que a Carta Política proibiu a responsabilização penal dos menores de dezoito anos, sujeitando-os as disposições da legislação especial, determinação acompanhada pelo Código Penal e pelo ECA. Não significa ausência de qualquer responsabilização, mas sim a sujeição às medidas específicas do ECA, quais sejam medidas de proteção e socioeducativas. 

O Estatuto trouxe a determinação de que considerar-se-á a idade do adolescente à data do fato, o qual dita, portanto, a aplicação do ECA à criança ou  ao adolescente quando pratica o ato infracional. Desse modo, tanto para o ECA como para o Código Penal, é importante o momento da ação ou omissão e não do resultado.

Embora a discussão na maioria das vezes se restrinja ao adolescente praticante de ato infracional, a criança em conflito com a lei não é imune de responsabilização. Determina o artigo 105 do ECA que às crianças autoras de ato infracional são aplicadas as medidas de proteção previstas no artigo 101 do ECA.

Assim, dada à situação de ainda em desenvolvimento como pessoa da criança e a todo o contexto especial a qual está submetida, foi previsto pelo legislador a aplicação de medidas de proteção por serem mais brandas, bem como relacionadas ao caráter educativo e de acompanhamento. Evita-se, à vista disso, qualquer retribuição do Estado à prática do ilícito, diferentemente do caráter retributivo e punitivo inerente ao direito penal.

 

5. MEDIDAS DE PROTEÇÃO

As medidas de proteção possuem sua aplicação condicionada a dois principais fatores: ameaça ou violação de direito concernente à criança ou adolescente, além da prática de ato infracional por criança. 

O estatuto delimita três hipóteses para aplicação das medidas de proteção. Conforme leciona o art. 98 serão aplicadas as medidas sempre que os direitos forem ameaçados ou violados (I) por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; (II) por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis e (III) em razão de sua conduta. Percebe-se, assim, que as medidas de proteção estão condicionadas a essas três singulares situações, seja por parte do Estado, sociedade, genitores, responsáveis ou ainda em em razão da própria conduta da criança.

A essência da aplicação das medidas de proteção está na potencial ou efetiva ameaça a direito da criança ou adolescente. Ao comentar a legislação, Guilherme Freire de Melo Barros (2010, p. 154) associa “a violação ou ameaça dos direitos à situação de risco”. Ou seja, ao se verificar alguma ameaça ou violação à criança ou do adolescente, tem-se a situação de risco ou irregular, a ensejar a aplicação de medidas de proteção. 

Segundo o pensamento do autor, ao se possibilitar a aplicação de medidas de proteção enquanto se está diante de uma ameaça, está a se atuar em tutela preventiva e protetiva de extrema importância. Evita-se, assim, a reparação tardia da transgressão ao direito. 

Como dito, a prática de atos infracionais, devido à previsão legal (artigos 98, inciso III e 105, ambos do ECA), sujeita as crianças à aplicação de medidas de proteção em razão da sua conduta, as quais estão elencadas no artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Por outro lado, a Lei n. 12.010 de 2009 inseriu no bojo do artigo 100, parágrafo único, do ECA, doze princípios que regem a aplicação das medidas de proteção. Esses devem permear todo o Estatuto, todo o sistema jurídico da criança e do adolescente. Tais princípios podem assim ser resumidos:

  1. Condição do jovem como sujeito de direitos: importante fixação legal, a relembrar a atual situação da criança e adolescente no ordenamento jurídico como sujeitos de direitos. Não está adstrito apenas deveres às pessoas em formação, mas também a direitos constitucionalmente atribuídos.
  2. Proteção integral e prioritária: o estatuto faz questão de destacar novamente a doutrina da proteção integral, com a especificação da aplicação total e prioritária proteção aos direitos, buscando garantir, quando da aplicação das medidas, a proteção outorgada pela Carta Maior.
  3. Responsabilidade primária e solidária do Poder Público: responsabiliza o legislador prioritariamente o Poder público em assegurar os direitos das crianças e adolescentes. Não há hierarquia, mas sim divisão de competências, consoante a predominância de interesses, entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, solidariamente garantidores. Pode haver, ainda a colaboração das entidades não governamentais.
  4. Interesse superior do jovem: ressalta a primazia dos interesses dos jovens, para que não sucumba dentro da pluralidade de interesses que envolvem a administração da coisa pública.
  5. Privacidade: como encravou a Constituição-Cidadã em seu artigo 5º, inciso X, a privacidade está asseverada às pessoas menores de dezoito anos, seja a intimidade, imagem e reserva da vida privada.
  6. Intervenção precoce: diz respeito às situações de perigo que possam envolver as crianças e adolescentes. A precocidade consubstancia na rapidez no atendimento e conhecimento de ocasiões atentatórias aos direitos das crianças e adolescentes.
  7. Intervenção mínima: quanto menor seja a intervenção desnecessária das autoridades, maior será a promoção dos direitos. Somente deve existir atuação estatal se necessária à proteção ou nas hipóteses previstas pela lei.
  8. Proporcionalidade e atualidade: a ação deve ser precisa e corresponder à situação atual da criança e do adolescente, seja para a aplicação de medidas de proteção ou socioeducativas, além de respeitar a necessidade, adequação e proporcionalidade.
  9. Responsabilidade parental: o Estado não é o substituto da família e esses não estão eximes de responsabilidade. O espírito do legislador é auxiliar os pais, mas sempre colocando acima do Estado a responsabilidade da família, como bem preconiza o artigo 227 da CRFB.
  10. Prevalência da família: os jovens não devem ser privados da convivência familiar. Toda e qualquer medida tomará como norte manter ou reintegrar o sujeito em formação a sua família natural ou extensão e somente não havendo esta possibilidade, aproximá-lo de uma família substituta.
  11. Obrigatoriedade da informação: inspirado pelos direitos fundamentais (artigo 5º, inciso XIV da CRFB), é imposto o fornecimento de informação aos jovens, principalmente de seus direitos. Pode e devem ser informados os pais ou responsáveis. Sempre, como determinado pela lei, deve ser respeitado o estágio de desenvolvimento e capacidade de compreensão da criança e do adolescente no fornecimento da informação.
  12. Oitiva obrigatória e participação: Como qualquer sujeito de direito, importa a opinião da criança e do adolescente, porquanto serão ouvidos e poderão participar das intervenções relativas a promoções dos direitos e de proteção, sendo sua opinião considerada pela autoridade competente. Faz-se necessária uma ressalva, já que o magistrado aplicará o direito não apenas com fundamento na lei e outras fontes, mas também analisando o pensamento e sentimento da criança e do adolescente.

Dessa maneira, vê-se que buscou o legislador ao formular tais princípios orientadores, reforçar a proteção em relação às crianças e adolescentes. Não seriam aplicados os princípios de forma isolada. São sim aplicados em conjunto, para que quando da aplicação de qualquer medida ou efetuado algum procedimento relativo às crianças e adolescentes, sejam esses também respeitados.

 

5.1 MEDIDAS ESPECÍFICAS DE PROTEÇÃO

Como a criança não está sujeita a medidas socioeducativas, o ECA prevê a aplicação das medidas de proteção para as crianças que entrem em conflito com a lei praticando ato infracional. Estão as medidas estabelecidas nos incisos do artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente, intervenções numerus apertus, pois são permitidas a aplicação de outras, levando sempre em conta as hipóteses previstas no artigo 98 da mesma legislação. 

Possibilita o Estatuto a aplicação isolada ou cumulativamente das medidas específicas de proteção, além da substituição a qualquer tempo (art. 99). Determina ainda, a necessidade de atender pedagogicamente os destinatários, optando por aquelas que venham fortalecer os vínculos familiares e comunitários (art. 100), visto a intenção legislativa de manter em meio a família e a comunidade as crianças e os adolescentes. São as espécies de medidas de proteção:

 

5.1.1 Encaminhamento aos pais ou responsáveis

A medida protetiva inicial está resumida à entrega das crianças ou adolescentes aos seus genitores ou responsáveis, cumprindo o preceito constitucional de responsabilidade pela família. Demonstra-se uma alternativa mais simples, realizada pela assinatura de termo de responsabilidade pelo genitor ou outrem, no momento do encaminhamento. 

Esclarece Wilson Donizeti Liberati (2010, p. 33) que “a permanência da criança e do adolescente em seu meio natural depende das condições apresentadas pelo ambiente familiar, se são propícias ao desenvolvimento da pessoa, existência de conflito familiar, desajustes entre os pais”. É de grande valia a avaliação do contexto familiar pela equipe interprofissional do Juizado da Infância e Juventude ou do Conselho Tutelar, evitando assim que seja a criança ou adolescente devolvido à um espaço prejudicial ao seu desenvolvimento e, por consequência, impedir a colocação em uma futura situação de risco, que possa requisitar nova atuação do Conselho Tutelar. 

 

5.1.2 Orientação, apoio e acompanhamento temporários

Trata-se de um auxílio efetuado pelos conselheiros aos jovens. É caracterizado pela assistência também a família, dada a íntima relação entre as condutas e os conflitos familiares.  Conceição Mousniter citado por Tânia da Silva Pereira (2008) comenta “de modo geral são solicitados pelos próprios responsáveis, declarando-se estes interessados em uma ajuda suplementar, posto que, sozinhos, não se julgam capazes de disciplinar e orientar o filho”. Pode muitas vezes estar essa medida ligada as políticas de assistência social, sendo executadas pelos componentes do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

 

5.1.3 Matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental

A medida reafirma a importância da educação na base da criança ou do adolescente. Não só base, mas direito de todos e dever do Estado e da família, como bem afirma o art. 205 da CRFB. A verificar o Conselho Tutelar não estarem os atendidos matriculados em estabelecimento oficial de ensino fundamental, o curso natural é de efetuar a orientação para que receba o ensino a criança ou adolescente. No caso de evasão, é reforçada a atuação do órgão tutelar para evitar o comportamento de ausência à escola. Ainda, pode se tornar autor de infração administrativa os pais que não cumprem a determinação, dado o caráter de decisão administrativa emanada das deliberações tutelares. 

 

5.1.4 Inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente

Nesta medida o Estado reparte o ônus do cuidado com a sociedade e comunidade. Jason Albergaria citado por Wilson Donizeti Liberati expõe, in verbis:

(...) o programa comunitário é um dos instrumentos da comunidade, por meio do qual se efetua a participação ativa da sociedade com o Estado na execução da política social de proteção à infância e à adolescência. O programa comunitário é destinado à promoção do bem-estar humano e social da população marginalizada. Na execução desses programas, realiza-se se a participação mais ampla da comunidade, mediante a contribuição dos recursos comunitários. (Albergaria apud Liberati, 2010, p. 446)

No entanto, não está restrita a medida à inclusão em programas comunitários. Poderão ser os jovens e seus familiares inseridos em programas oficiais, situação atinente à Assistência Social. São direitos sociais e exigíveis sem a aplicação de medidas. A título de exemplos, pode-se citar os programas de transferência de renda, erradicação do trabalho infanto-juvenil, enfrentamento à pobreza, fortalecimento de vínculos familiares e comunitários entre outros.

 

5.1.5 Requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial

Relacionada a saúde de modo geral. Evidencia o caráter de zelador dos direitos da criança e adolescente atribuído ao Conselho Tutelar. Verificada a situação carecedora de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, deverá agir o órgão visando concretizar o direito de acesso a saúde também pelos jovens. É também parte integrante da doutrina da proteção integral, tendendo a assegurar a assistência integral, universal e igualitária (art. 11 da Lei n. 8.069/90), e prioridade de atendimento nos serviços públicos. 

 

5.1.6 Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos

Estão o álcool e os tóxicos estritamente ligados a criminalidade. Em se tratando de pessoa em formação, não bastaria uma medida sem o devido tratamento. Desta maneira, priorizou a lei tutelar em garantir a reabilitação dos dependentes químicos para que assim fosse prevenida a prática de atos infracionais. Melhor caminho está em evitar acontecimentos criminosos e ou infracionais, do que lidar com crianças e adolescentes que vieram a praticar típicos penais em virtude do uso de drogas em gerais. Constitui a medida em incluir os jovens em centros públicos de tratamento de toxicômanos e alcoólatras. Ausentes estes locais, cabe ao Executivo garantir a mais rápida criação ou arcar com o custeio do tratamento em instituições particulares. Efetiva-se assim o direito à saúde (art. 296 da CRFB), transcrito e reafirmado pelo ECA em seu artigo 7º.

 

5.1.7 Acolhimento institucional

Com o advento da lei 12.010 de 2009, a antiga medida abrigo em entidade passou a ser chamada acolhimento institucional. Consiste essa na retirada da criança ou adolescente do seio familiar, inserindo-o em uma instituição destinada a sanar dificuldades de convívio, para que seja possibilitado um retorno ao lar. Estabelece o §1º do art. 101 do ECA, que tanto o acolhimento institucional quanto familiar são provisórios e excepcionais, usados como meio de transição para reintegração familiar e nunca como decisões privativas de liberdade. 

O caráter excepcional reside na drasticidade que permeia o acolhimento. Tal medida é excepcional ao objetivo do Estatuto da Criança e Adolescente, já que este prioriza o convívio familiar e comunitário. Surge, no entanto, como alternativa à situação insustentável envolvendo o jovem e sua família. A provisoriedade está resumida ao menor tempo possível, dada à situação prejudicial não recomendável para a formação da personalidade de pessoa em situação peculiar de desenvolvimento.

O jovem só pode ser encaminhado ao acolhimento através de ordem da autoridade judiciária, via guia de acolhimento, o qual consiste num documento que deverá conter obrigatoriamente identificação, endereço, nome de parentes para uma possível guarda e motivos da retirada ou não reintegração ao convívio familiar. 

Nessa linha, também determina o estatuto a elaboração de Plano Individual de atendimento (art. 101, §4º), que visará a reintegração familiar. Para Eduardo Rezende de Melo, citado por Wilson Donizeti Liberati (2010, p. 458) “o plano individual de atendimento é o instrumento regrador das atividades voltadas à garantir de direitos de crianças e adolescentes em regime de acolhimento institucional”. Deve o plano ser elaborado pela mesma equipe que atende os acolhidos, levando-se em conta a opinião do atendido e oitiva dos pais ou responsáveis (§5º do art. 101 do ECA). 

O parágrafo sétimo reforça o objetivo de manutenção da família. O acolhimento prioriza por ocorrer em local mais próximo à residência dos pais ou responsável, sendo facilitado o contato com a criança ou adolescente acolhido. Entretanto, a situação problemática impossibilitadora de reintegração familiar enseja a comunicação à autoridade judiciária, com vistas ao Ministério Público, para se dar início ao processo de colocação em família substituta (art. 101, §§8º e 9º do ECA).

 

5.1.8 Inclusão em programa de acolhimento familiar

O acolhimento familiar segue o mesmo procedimento do institucional, com a diferença de que em vez de ser executado em um instituto, será aplicado em meio a uma família. O legislador demonstrou sua preferência ao dispor no art. 34, §1º do ECA, a preferência de inclusão no acolhimento familiar ao acolhimento institucional. Nos ditames de Myrian Veras Baptista citada por Wilson Donizeti Liberai (2010, p. 477) “o acolhimento familiar não perde seu caráter institucional, uma vez que deverá ser planejada, executada e acompanhada sob a responsabilidade de uma instituição, governamental ou não credenciada para fazê-lo”. A mesma autora comenta que não são perdidos os vínculos com a própria família, ao contrário são acrescidos novos vínculos e são construídas novas referências familiares. 

 

5.1.9 Colocação em família substituta

Não alcançando êxito o acolhimento em qualquer de suas modalidades, o caminho escolhido pelo legislador foi o da colocação da criança ou adolescente em família substituta. Isto não representa a retirada total do jovem da família, pois podem ser considerados como responsáveis parentes próximos. A última medida protetiva, nos termos do art. 28 do ECA, será efetuada através da guarda, tutela ou adoção. Ressalte-se, que tal aplicação desta medida está fora da alçada do Conselho Tutelar, estando restrita a competência do Juízo da Infância e Juventude.

A guarda é a obrigação de prestar assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente (art. 33 do ECA). É conferir à um responsável a obrigação transitória de cuidado imediato do menor de dezoito anos, podendo ser deferido liminar ou incidentalmente (§1º) para atender situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável (§2º).

Diferentemente da transitoriedade da guarda, a tutela pressupõe a prévia decretação da perda ou suspensão do poder familiar e implica necessariamente o dever de guarda (art. 36, Parágrafo Único, do ECA). Será concedida apenas para pessoas de até dezoito anos incompletos. A tutela trata de um ânimo definitivo, ou seja, o tutor está se preparado para cuidar da criança ou do adolescente até a maioridade.

A adoção conforme o art. 39, Parágrafo Único, do ECA é medida excepcional e irrevogável, e só se deve recorrer se esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família.  Nesta espécie, o adotando passará a ser filho do adotante, inclusive com efeitos no registro civil. Confirma-se assim a total colocação do jovem em família substituta.

Com relação a generalidade dessa medida, importa destacar que a criança ou adolescente devem ser ouvidos por equipe interprofissional e em se tratando de maior de doze anos é necessário o consentimento colhido em audiência. Quando da apreciação é importante levar em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, mantendo-se juntos os irmãos, além de ser necessário para o desenrolar do procedimento, a preparação gradativa acompanhada pela equipe interprofissional do Juizado. Dispõe ainda o estatuto em seu art. 29 que não será colocada em família substituta pessoa incompatível com a natureza da medida ou ambiente familiar. Resume-se a adoção por uma nova vida com novos pais que é assegurada ao jovem que não consegue continuar dentro do ambiente familiar original.

A colocação em família substituta possui procedimento próprio previsto nos artigos 165 a 170 do ECA. Quando envolver perda ou suspensão do poder familiar, deve haver a decretação judicial em procedimento contraditório (art. 24 do ECA). Podem os pais concordarem com a transferência familiar, ouvidos pela autoridade judiciária e pelo representante do Ministério Público. A família substitua receberá orientação da equipe interprofissional do Poder Judiciário, a fim de garantir o direito à convivência familiar. Finalizado o processo, no caso de guarda e tutela será prestado compromisso pelo responsável (art. 32 do ECA) e em se tratando de adoção, será proferida sentença judicial constituindo o vínculo. Ocorre, então, a inscrição no registro civil, cancelando o registro original do adotado, com a produção de efeitos após o trânsito e julgado.

 

5.2 APLICAÇÃO DAS MEDIDAS 

Aos Conselhos Tutelares cabe a aplicação das medidas de proteção, quer protetivas ou punitivas, com exceção do acolhimento institucional ou familiar e a colocação em família substituto, restritas ao Poder Judiciário pelo caráter excepcional e drástico a essas inerentes. Foi deferida pelo Estatuto aos Conselhos Tutelares à atribuição de atender as crianças na hipótese de prática de ato infracional, aplicando as medidas de proteção previstas no art. 101 do ECA. 

 O ato de aplicar medida de proteção configura-se como ato administrativo, já que se trata de órgão não jurisdicional. Não existe possibilidade dos Conselheiros Tutelares se utilizarem de força coercitiva para o cumprimento da medida instituída. Mas dentre as medidas elencadas pela legislação, excetuando àquelas simples que não necessitam de execução complexa, valem-se os conselhos de outras entidades de atendimento para execução das medidas específicas de proteção.

É seguido, portanto, um padrão imposto pela legislação da infância, ou seja, a integralização entre diversos órgãos afetos as crianças e adolescentes. As entidades responsáveis pelo cumprimento dessas medidas poderão ser governamentais ou não governamentais, como disposto no artigo 86 do ECA.

Com a previsão legislativa ocorre a colaboração de diversas organizações públicas ou privadas no atendimento das crianças e adolescentes. Mas o Estado não deve aguardar a iniciativa não-estatal, necessitando estar garantido pelos órgãos da Administração Pública direta o cumprimento das medidas. Dada a diretriz de municipalização do atendimento, recai sobre o Município a competência de promover uma rede interorganizacional entre seus diversos órgãos relativos à infância e juventude e o Conselho Tutelar. O estado-membro e a União têm a obrigação de auxiliar tecnicamente e financeiramente. O Município está nessa posição em razão do contado mais direto com a população, lhe permitindo atender às peculiaridades de cada localidade.

Assim, as medidas relacionadas com os incisos do art. 90 do ECA serão atribuição preferencialmente das entidades governamentais (municipais) e posteriormente das não-estatais (ONGs, fundações privadas), objetivando uma melhora na prestação dos serviços públicos. Contudo, o atendimento esbarra na falta de local estabelecido para execução das medidas. Restringe-se a discricionariedade do administrador para utilizar políticas públicas relacionadas à infância, destinando recursos humanos e materiais, além de instituições especialmente a este fim.

Porém, a lei tutelar põe a salvo a execução das decisões do Conselho Tutelar, a poder requisitar serviços públicas ou representação ao Judiciário em caso de descumprimento injustificado de suas deliberações. Ademais, o descumprimento de suas de suas determinações foi elevado ao nível de infração administrativa, conforme determina o artigo 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não obstante, a efetivação das decisões tomadas pelo órgão, busca-se a desjudicionalização e menor burocracia no atendimento à criança e ao adolescente, como expõe Korzen (2012). No entanto, como insculpido no art. 5º, inciso XXXV da CRFB, não será excluído do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, cabendo a quem tenha interesse bater as portas do Estado-Juiz e requerer manifestação sobre as decisões do órgão administrativo.

Outrossim, cabe o emprego das medidas pelo Judiciário. Prevendo a lei estatutária a lenta transição entre o sistema antigo de proteção e o atual, insculpiu no art. 262 do ECA a competência substitutiva da autoridade Judiciária. Dar-se-á, porém, restrita aos casos da ausência de Conselho Tutelares, uma vez que presente será competente tal instituição. Desta maneira, nas cidades onde ainda não existirem Conselho Tutelares, os juízos responsáveis pela infância e juventude, atuarão de forma subsidiária com relação às atribuições dos Conselhos Tutelares até que estes sejam instalados na forma de lei municipal.

Como não são os Conselhos Tutelares órgãos jurisdicionais, não possuem autonomia para impor e fazer cumprir as medidas por eles aplicadas.  Ainda, as medidas aplicadas poderão sofrer revisão pelo judiciário, como previu o art. 137 da Lei n. 8.069/90. 

Recorda-se, por outro lado, a natureza administrativa dos atos emanados dos Conselhos Tutelares. Segundo a melhor doutrina, as decisões constituem ato vinculado e motivado, a estar o juiz restrito a examinar apenas a legalidade, jamais podendo substituir a medida (LIBERATI, 2010, p. 1056). Ouse-se, porém, discordar. Um ato administrativo vinculado está previsto em lei, mas não possui liberdade para escolha do emissor, deve apenas cumprir o estabelecido pela lei sem avaliação de cunho subjetivo. Já o ato discricionário envolve o chamado mérito administrativo, isto é, oportunidade e conveniência. Dessa forma, quando de uma decisão para aplicação de medida específica de proteção à uma criança em conflito com a lei, não será estritamente cumprido o disposto no ECA. Os Conselheiros Tutelares levarão em conta a melhor medida a ser aplicada, o que perfaz uma análise de conveniência e oportunidade, consubstanciando um ato de natureza discricionário e não meramente compulsório, vinculado a uma disposição legal. Relembre-se que o ato discricionário é aquele também previsto em lei, carente dos cinco requisitos essenciais (finalidade, forma, agente competente, objeto e motivo).

Há de se concordar, todavia, com a opinião da doutrina sobre a possibilidade restrita do Judiciário a analisar apenas a legalidade dos atos dos Conselhos Tutelares. Como todo ato discricionário, será apenas examinado a legalidade e nunca o mérito administrativo. Ademais estará preservada a autonomia do colegiado e o princípio constitucional da separação dos poderes, privando o Judiciário de adentrar ao campo de competência do Executivo. Embora remanesçam discussões, o ECA foi claro ao submeter a revisão das deliberações tutelares ao juízo competente da comarca onde está instalado o Conselho.

Não obstante o exposto, destaca-se que de acordo com a interpretação do artigo supralegal, não cabe revisão das deliberações conselhares ex officio. Em respeito ao princípio processual de inércia da jurisdição, cumulado com o texto do artigo 137 do ECA, deve o juiz ser provocado por aquele quem detenha legítimo interesse, nestes casos incluídos as crianças representadas, pais ou responsáveis e Ministério Público, fiscalizador da lei.

A legislação tutelar não confere procedimento específico para a análise pelo Poder Judiciário. Murillo José Digiácomo (2012) ensina que será utilizada a regra geral do art. 153 do Estatuto. Existindo juízo da infância de juventude na comarca, será a este dirigida a requisição. Ausente a vara especializada, serão endereçados os pedidos de revisão àquelas varas competentes de acordo com a Lei de Organização Judiciária de cada estado-membro. Em regra, seriam as varas de família e sucessões, por possuírem mais afinidade com a matéria, do que as cíveis em sentido restrito.

Provocada a autoridade judiciária, poderá ordenar de ofício as providências necessárias, ouvido o Ministério Público. Poderá ainda ser ouvido o Conselho Tutelar, no sentido de auferir as razões de sua decisão, possibilitado o encaminhamento de informações por escrito. Instruído o procedimento, o juiz competente decidirá pela manutenção ou anulação da decisão do órgão tutelar. 

 

5.3 EFICÁCIA DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

As penas existentes no Brasil não visam apenas retribuir o mal causado por aquele a quem é imputado. Buscam sim, a correção de comportamento, mudança de vida. Todavia, à criança será aplicada medida de proteção, na qual não se está socioeducando, mas sim a protegendo de violação ou ameaça à direito como preconiza o artigo 98 do Estatuto. Mas de certo modo, quando a criança vem a praticar algum fato tipificado com crime ou contravenção penal, a sociedade solicita intervenção estatal no sentido de retribuir o mal causado.

No caráter da medida é que resta a diferença. Apesar dos apelos da sociedade em geral, a criança não deve ser punida, já que é pessoa em formação e não possui total consciência de seus atos. Só que a aplicação da medida não deixa de ser uma forma de educar a criança. Se torna responsável o sujeito que suporta as consequências de seus atos. De forma simplista, a criança não arca com as consequências de seus atos. Ela apenas recebe a aplicação de uma medida que irá protegê-la das circunstâncias proporcionadoras da prática da conduta delituosa.

Sobre a eficácia social das medidas de proteção, dependem essas de três pontos principais: execução das medidas, apoio familiar e atenção às deliberações tutelares pelas entidades de atendimento.

A execução das medidas está dentro do campo das atribuições do Conselho Tutelar, disposto no inciso III do artigo 136 do ECA. É o primeiro passo para a efetividade das medidas de proteção, uma vez que depende da manifestação do órgão colegiado para a execução da medida, seja através das requisições de serviços públicos ou representações perante a autoridade judiciária no caso de descumprimento de suas deliberações.

O apoio familiar é dever constitucional, além de necessário para que seja cumprida pela criança a medida estabelecida. Depende dos pais ou responsáveis o comparecimento ao Conselho Tutelar, a condução das crianças às entidades de atendimento e zelar em geral para que seja bem cumprida a medida de proteção, alcançando assim o êxito almejado.

Finalizam o processo executório as entidades de atendimento. Cabe a esses órgãos (no caso da Administração Pública) ou organizações, proporcionar as medidas dispostas nos incisos II, III, IV, V, VI e VII do artigo 101 do ECA. Se as entidades de atendimento não cumprem as requisições dos conselhos ou não preparam a aplicação das medidas de proteção, as crianças não poderão receber os tratamentos, inclusões em programas e acolhimentos recomendados.

Portanto, não basta atendimento e decisões por parte dos Conselheiros Tutelares. A eficácia das medidas (de proteção ou socioeducativa) depende do cumprimento das obrigações de cada um dos sujeitos elencados no artigo 227 da CRFB, família, sociedade e Estado, bem como do combate ao descaso do governo e a desídia com a qual a sociedade trata os jovens, muitos vítimas de abandono parental e familiar.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo o exposto, pode-se constatar como se dá a situação da criança em conflito com a lei. Não existe impunidade, porque não existe punição, entretanto existe educação e proteção. Assim, pode-se atestar o grau evolutivo do direito nacional quando se trata de matéria relacionada à infância e juventude. A criança deixou de ser objeto de prestação assistencial, para ser transformada em credora e sujeito de direitos.

Durante um lapso temporal, um documento internacional paralelo a promulgação da Constituição Federal de 1988 ganhou respeito, a Convenção dos Direitos da Criança, a qual normatizou a doutrina da proteção integral, um sistema que abarcava todos os direitos das crianças e adolescentes. Porém, a CRFB veio antes mesmo da Convenção dos Direitos da Criança, estabelecendo a doutrina da proteção integral para o cenário jurídico brasileiro, impondo a tríplice colaboração da família, sociedade e Estado.

Contudo, somente com a publicação do ECA em 1990 é que se pode visualizar a totalidade da nova situação dos jovens no Brasil. Dividiu a criança (até doze anos incompleto) do adolescente (a partir de doze anos completos), estabelecendo novos direitos fundamentais, procedimentos, medidas de proteção, medidas socioeducativas, além de uma nova autoridade competente, o Conselho Tutelar.

Abordou-se, por outro lado, a proteção dispensada à criança em conflito com a lei. Foi importante, ainda, entender sobre o Conselho Tutelar, suas diferenças com a autoridade judiciária, características e as atribuições. No atual panorama, este órgão é o protetor dos direitos das crianças e adolescentes e é o que possui o maior contato com os menores de doze anos, devido a descentralização e desjudicialização determinada pelo Estatuto.

O conflito com a lei acarreta a prática de um ato infracional. Em meio as muitas discussões a respeito da conceituação do ato infracional, viu-se que a mais aceita é a similar ao conceito analítico de crime, envolvendo o fato típico, antijurídico e culpável. Isso porque, o ato infracional é ato análogo a crime ou contravenção.

Como consequência da ameaça ou violação de seus direitos pela prática do ato infracional, às crianças ficam sujeitas às medidas de proteção, vinculadas à diversos princípios específicos, e aplicadas pelo Conselho Tutelar, mas executadas perante entidades de atendimento.

À vista do debatido, verifica-se não ser a criança um delinquente. A situação de envolvimento com o ato infracional decorre de uma série de atos das pessoas a sua volta, seja família, comunidade ou autoridades. Por isso o ECA prevê como possibilidades aos autores de ato infracional medidas de proteção e não de punição, buscando-se sempre a educação.

 

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_______, Decreto-Lei nº 6.026, de 24 de novembro de 1943. Dispõe sobre as medidas aplicáveis aos menores de 18 anos pela prática de fatos considerados infrações penais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Seção 1, 26 nov. 1943, Página 17345.

_______, Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 out. 1979.

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Data da conclusão/última revisão: 07/12/2020

 

 

 

Wilians Alencar Coelho Junior

Especialista em Direito Público.