1. Introdução - 2. A necessidade de oitiva prévia do adolescente infrator pelo MP - 3. A remissão concedida pelo MP - 4. A prescrição da pretensão de aplicação de medida sócio-educativa - 5. A necessidade de oferecimento de representação ou queixa pela vítima - 6. O assistente do Ministério Público - 7. A irretratabilidade do consentimento dado pelos pais biológicos na adoção - 8. A irrevogabilidade da adoção - 9. A guarda para fins previdenciários - 10. O interesse local do município e o conselho tutelar - 11. A fundamentação das portarias judiciais - 12. O sistema recursal - 13. A discricionariedade administrativa.
1. INTRODUÇÃO
A Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) foi responsável por uma redefinição radical da forma de atendimento a ser dado a crianças e adolescentes no País, nas mais diversas esferas de seus interesses, através de um sistema de preceitos que procura implementar a teoria da proteção integral.
Em vigor desde 14 de outubro de 1990, o ECA, porém, ainda comporta apreciações díspares de inúmeros dispositivos.
O objetivo do presente trabalho é, assim, analisar, sucintamente, algumas questões controvertidas decorrentes da aplicação da lei referida, sem a pretensão de apresentar exame acurado de implicações doutrinárias ou jurisprudenciais. Ao contrário, trata-se de visão prática decorrente do exercício da função de Promotor de Justiça da Infância e da Juventude há algum tempo.
2. A NECESSIDADE DE OITIVA PRÉVIA DO ADOLESCENTE INFRATOR PELO MP
Entre tantas outras inovações, o procedimento para apuração de ato infracional praticado por adolescente passou a apresentar importantes particularidades com o ECA, principalmente com a criação do instituto da remissão. Não se pode deixar de admitir certa influência desta experiência sobre a edição da Lei nº 9.099/95.
Entretanto, talvez exatamente por se tratar de novidade, esta é uma das seções do ECA que mais vem sofrendo interpretações divergentes.
Uma delas diz respeito ao disposto no art. 179 e seu parágrafo único, que exigiriam do Promotor de Justiça a prévia ouvida do infrator, antes de oferecer representação, aplicar remissão ou promover o arquivamento das peças encaminhadas pela Polícia Civil; em não se apresentando o adolescente, caberia ao membro do Ministério Público notificá-lo para tanto, podendo requisitar apoio policial para sua condução.
Os principais comentadores do Estatuto apresentam diferentes posições sobre o conteúdo dos dispositivos mencionados, mas nenhum permite ao Promotor de Justiça deixar de inquirir o infrator e seus pais ou responsável, se possível. Assim, Conceição A. Mousnier, com base no art. 111, V, do ECA, elabora o "direito à oitiva pessoal", que se estenderia à atuação do Ministério Público ("O Ato Infracional", RJ, Liber Juris, 1991, p. 24). Alyrio Cavallieri, além de exigir a prévia oitiva do infrator, afirma dever ser afastada a informalidade da medida, apesar do que estabelece a lei ("Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente", RJ, Forense, 1991, p. 188). Neste sentido são também, de certa forma, as lições de José Luiz Mônaco da Silva ("Estatuto da Criança e do Adolescente - Comentários", SP, RT, 1994, p. 303) e de Paulo Lúcio Nogueira ("Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado", SP, Saraiva, 1991, p. 245). Antônio Chaves, apesar de esposar o entendimento de Alyrio Cavallieri, antes referido, critica a repetição de inquirições (Delegado de Polícia, Promotor de Justiça, Juiz de Direito), sem admitir, contudo, a possibilidade de dispensa de ouvida pelo Parquet ("Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente", SP, LTr, 1994, p. 597). Wilson Donizeti Liberati, diferentemente, entende desnecessária a redução a termo das declarações prestadas pelo adolescente ao Promotor de Justiça ("Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente", SP, Malheiros Editores, 1993, p. 155). Por fim, Jurandir Norberto Marçura entende dispensável a apresentação, se atípica a conduta, se criança o autor, se desconhecido o endereço do adolescente ("Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado", SP, Malheiros Editores, 1992, p. 500).
Tendencialmente, portanto, a jurisprudência se inclinaria a reconhecer a obrigatoriedade da prévia inquirição do infrator pelo Parquet. É o que se verifica de acórdão publicado em Lex 164/164 (Ac. C. Esp. TJSP - Ap. Cív. nº 17.778-0-SP, de 28.07.94).
Chegou-se, inclusive, a erigir tal medida à categoria de "condição de procedibilidade", solução manifestamente equivocada, pois alça a pressuposto formal aquilo que a própria lei define como informal.
O que estes entendimentos revelam, entretanto, é a inclinação burocratizante de nosso sistema de justiça formal, comprometendo até mesmo os objetivos mais elevados da nova lei.
Desde o início, porém, aplicadores do Direito deram-se conta de que o dispositivo legal não tinha a extensão que se lhe estava tentando dar, tanto que eram - e ainda são - bastante freqüentes as representações oferecidas sem prévia oitiva do adolescente e responsáveis.
Em 1994, durante o III Congresso Estadual do Ministério Público, realizado em Canela, RS, o culto Promotor de Justiça, Carlos Roberto Lima Paganella já havia proposto a seguinte tese:
"Desnecessidade de prévia notificação ao adolescente e seus pais ou responsáveis (art. 179, parágrafo único, ECA) para oferecimento de representação, quando na Delegacia de Polícia os pais assinaram termo de responsabilidade de que apresentariam o adolescente ao Ministério Público" (Anais do III Congresso Estadual do Ministério Público, p. 292). A tese, infelizmente, foi rejeitada.
O amadurecimento da questão, dado o tempo de vigência do dispositivo, permitiu o surgimento de entendimentos jurisprudenciais preocupados com a simplificação e a celeridade do procedimento para a apuração de ato infracional atribuído a adolescente.
Acórdão publicado em Lex 164/278 (Ac. 2ª V. TJSP - Rec. em Sent. Estr. nº 18.344-0-SP, de 11.08.94), teve a seguinte ementa:
"MENOR. REPRESENTAÇÃO. OITIVA DE ADOLESCENTE. PROVIDÊNCIA NÃO OBRIGATÓRIA. MENOR NÃO APRESENTADO. INQUIRIÇÃO NÃO ALÇADA A CONDIÇÃO DE PRESSUPOSTO DA AÇÃO. ART. 179 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO PROVIDO PARA ESTE FIM - Se a inquirição informal do art. 179 do Estatuto da Criança e do Adolescente for alçada, antes de instaurado o procedimento, à condição de pressuposto da ação, bastará que o adolescente se furte e, deliberadamente, deixe de se apresentar ou ser apresentado para que a Justiça da Infância e da Juventude se frustre."
Mais correto ainda, contudo, é o entendimento constante de acórdão da 7ª Câmara Cível do TJRS, ao apreciar o AI nº 593008063, em 07.04.93:
"A prévia inquirição dos menores pelo Ministério Público ocorre apenas para melhor habilitar o Dr. Promotor de Justiça para a correta classificação do ato infracional atribuído aos infratores. Podendo contar com outras informações, a prévia inquirição torna-se desnecessária..."
Esta última decisão tangencia aquilo que parece ter sido o real objetivo da lei ao prescrever a necessidade de prévia oitiva informal do infrator pelo MP. Ao criar o instituto da remissão e possibilitar sua concessão pelo Promotor de Justiça, bem como ao simplificar as peças encaminhadas pelos órgãos de Polícia Judiciária, o ECA somente exige a oitiva do infrator pelo Parquet se for caso de concessão de remissão ou se os documentos encaminhados (auto de apreensão, boletim de ocorrência, relatório policial) se apresentarem incompletos, a exigir esclarecimentos a serem colhidos do adolescente e, eventualmente, de vítima e testemunhas. Nos demais casos, é dispensável a ouvida do menor, podendo o agente do Ministério Público oferecer representação ou promover o arquivamento das peças diretamente.
É este o entendimento que mais se adequa ao espírito do ECA, pois, além de não ferir direitos do adolescente infrator (o contraditório e a ampla defesa são sempre assegurados, inclusive com a possibilidade de apresentação de sua versão dos fatos em juízo), dá guarida ao princípio da celeridade processual (sem o qual a eficácia da imposição de qualquer medida sócio-educativa resta limitada ou frustrada).
3. A REMISSÃO CONCEDIDA PELO MP
Nos termos do art. 126, caput, do ECA, antes de iniciado o procedimento para a apuração de ato infracional, o MP pode conceder remissão ao infrator, como forma de exclusão do processo. Com a remissão, permite-se incluir, eventualmente, a aplicação de qualquer das medidas sócio-educativas previstas no Estatuto, salvo as privativas de liberdade (art. 127). Uma vez concedida a remissão, deve o MP buscar a homologação judicial da mesma (art. 181, caput).
As disposições, como se vê, são revolucionárias, permitindo a desburocratização e a celeridade do procedimento, bem como limitando o contato do infrator com os aparelhos de controle formal (sempre estigmatizantes).
Apesar disto, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 108, com o seguinte conteúdo:
"A aplicação de medidas sócio-educativas ao adolescente, pela prática de ato infracional, é da competência exclusiva do juiz."
Ousa-se discordar da decisão do STJ. Aliás, não são poucas as vozes contrárias ao entendimento sufragado por referida Corte (José Luiz Mônaco da Silva, Hugo Nigro Mazzilli, por exemplo).
Com efeito, não é pela tese de ser exclusiva do Poder Judiciário - por equivocada - que se pode fundamentar a vedação de aplicação de medida sócio-educativa pelo MP.
Seguindo a lição de Nelson Nery Júnior ("Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado", SP, Malheiros Editores, 1992, pp. 571 e 572), não se admite a alegada inconstitucionalidade da medida, porque se trata de ato administrativo do Promotor de Justiça, que se submete ao controle judicial, portanto; e porque, excluindo o processo, a medida equivale ao arquivamento, atribuição esta exclusiva do Parquet em nosso sistema.
É importante sublinhar isto: a concessão da remissão depende de homologação judicial (art. 181, caput, do ECA), não havendo, destarte, afastamento da apreciação pelo Poder Judiciário.
Por outro lado, o art. 129, IX, da CF permite que a lei atribua outras funções ao Ministério Público, desde que compatíveis com sua finalidade. Ora, na República Federal da Alemanha, que apresenta sistema semelhante ao nosso (apreciação de lesão a direito individual pelo Poder Judiciário e obrigatoriedade da ação penal), o promotor de justiça de menores pode aplicar medidas tendentes à exclusão do processo. Não se vê razão, assim, para não permitir idêntica atuação do Parquet em nosso País.
A Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao julgar a AC nº 38.098-SC, de 11.08.92, enfrentou esta questão, também chegando a conclusão diversa da do STJ: segundo o acórdão, trata-se de transação, com aceitação voluntária pelo infrator e seu responsável, e não de imposição de remissão e medida pelo MP.
Igualmente, a interpretação sistemática do ECA não permite concluir ser exclusiva do juiz a aplicação de medida sócio-educativa. A análise dos artigos 126 e 127 do Estatuto corroboram esta conclusão. Ademais, o art. 181, § 1º, prescreve que, se o juiz homologar a remissão concedida pelo MP, determinará o cumprimento da medida, se for o caso. Ora, se o juiz somente determina o cumprimento da medida, é porque ela já foi aplicada pelo Parquet.
4. A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO DE APLICAÇÃO DE MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA
Outro assunto relacionado com a apuração de ato infracional cometido por adolescente merece reflexão: tem a ver com a possibilidade de aplicação subsidiária dos dispositivos do Código Penal que tratam da prescrição da pretensão punitiva do Estado aos casos de atos infracionais.
A respeito, a doutrina parece não ter ainda se manifestado satisfatoriamente. Os tribunais, a seu turno, ainda apresentam contraditórios entendimentos sobre o tema.
Em decisão constante de RJTJRGS 172/325, admitiu-se a possibilidade de reconhecimento da prescrição nos feitos referentes à apuração de ato infracional.
O fundamento desta posição reside na igualdade de todos perante a lei (princípio constitucional), na possibilidade de aplicação subsidiária ao ECA das normas processuais respectivas (art. 152 do Estatuto) e na injustiça da existência de situação mais favorável aos imputáveis.
O reconhecimento da prescrição faz-se com a aplicação do disposto no art. 109 do Código Penal, com a redução prevista no art. 115 do mesmo diploma legal, por se tratar de menor de 21 anos de idade, sem prejuízo de outros dispositivos (arts. 110 e 111, por exemplo). Não há que falar-se em prescrição baseada na "pena concretizada" na sentença, porquanto as medidas privativas de liberdade admitidas pela Lei nº 8.069/90 não comportam prazo determinado (arts. 120, § 2º, e 121, § 2º, do ECA).
Apesar disto, mais acertada é a decisão a que chegou a 7ª Câmara Cível do TJRS, ao apreciar a Ap. Cív. nº 594032781, em 28.09.94:
"ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA NORMA PENAL - Não se pode, aplicando por analogia o Código Penal, decretar a extinção da punibilidade por prescrição, cujo prazo seria reduzido da metade ao menor infrator. As legislações brasileiras nunca admitiram pena ao menor e, sim, medida de proteção. Assim, não se pode falar de punibilidade que não há. Voto vencido."
O entendimento parte do pressuposto de que o ECA admite tão-somente a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal (art. 152 do Estatuto), e não do Código Penal, sede das disposições relativas à prescrição da pretensão punitiva do Estado. Além disso, decorre do fato de que, a adolescentes infratores, não se aplicam penas, mas medidas sócio-educativas, com natureza diversa.
Obviamente, para a aplicação das medidas sócio-educativas, há um limite temporal fixado pelo ECA (art. 121, § 5º): até que o infrator complete 21 anos de idade. Limite este que, não obstante previsto para os casos de internamento, estende-se às demais medidas sócio-educativas.
5. A NECESSIDADE DE OFERECIMENTO DE REPRESENTAÇÃO OU QUEIXA PELA VÍTIMA
Conceição A. Mousnier, em sua obra já citada, p. 57, denomina de "ação sócio-educativa pública" a pretensão deduzida pelo Ministério Público em juízo, objetivando a apuração de ato infracional praticado por adolescente.
Com efeito, tendo o ECA atribuído ao Ministério Público, com exclusividade (art. 180, III), ao que parece, a titularidade para representar pela aplicação de medida sócio-educativa a adolescente infrator, não restou espaço para o ofendido (ou seus sucessores) tomar esta iniciativa.
E isto por uma razão simples: não se busca punir o infrator, mas aplicar-lhe medida sócio-educativa, o que independe da vontade da vítima (a favor ou contra). Se se busca orientar o jovem (tanto que se pode perdoar-lhe a infração, através do instituto da remissão), compete ao Estado (através do Ministério Público e do Poder Judiciário) decidir sobre o caminho a ser tomado (arquivamento, remissão, representação).
Malgrado isto, a 8ª Câmara Cível do TJRS, ao julgar o AI nº 591091814, em 21.11.91, decidiu aplicar-se aos casos de apuração de atos infracionais a decadência, "embora prescinda o Ministério Público de representação para o exercício do procedimento". Tratava-se de ato infracional de dano.
Não parece ser este o entendimento mais correto.
Em cometendo ao MP a atribuição de representar pela aplicação de medida sócio-educativa ao adolescente autor de ato infracional, o ECA afastou a possibilidade de oferecimento de "queixa" (casos de ação penal de iniciativa privada) e a necessidade de representação (casos de ação penal de iniciativa pública condicionada). Ato infracional é tudo o que a lei define como crime ou contravenção (art. 103 do ECA).
Entretanto, a advertência feita por Conceição A. Mousnier, em sua obra já referida, pp. 55 e 56, é pertinente: em alguns atos infracionais, notamente os atentatórios contra a liberdade sexual, em que o processo pode vir a expor a vexame e constrangimento a própria vítima, o oferecimento de representação pelo Promotor de Justiça deve contar com a anuência dela.
6. O ASSISTENTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Ainda relativamente à apuração de ato infracional, uma outra pergunta se põe: é possível a participação do "assistente da acusação" no processo?
O Estatuto silencia sobre o assunto, apesar de deixar aberta a possibilidade ao admitir a aplicação subsidiária da legislação processual (art. 152).
Contudo, os Tribunais já se pronunciaram contrariamente à admissão do assistente do Ministério Público nestes procedimentos. Por exemplo, acórdão da 7ª Câmara Cível do TJRS (AI nº 594011413, de 29.06.94) chegou a esta conclusão, com base nas circunstâncias de a sentença que julga o processo para apuração de ato infracional não constituir título executivo, para fins de indenização, e de referido processo buscar aplicar medida sócio-educativas ao infrator, com cunho protetivo.
Data venia, este entendimento não merece prosperar, por diversas razões.
Em primeiro lugar, recorda-se que o disposto no art. 152 do ECA permite a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal, o qual, em seus arts. 268 e seguintes, trata da figura do assistente.
Em segundo lugar, apesar de a sentença proferida em processo para apuração de ato infracional não tornar certa a obrigação de indenizar, o próprio Estatuto, em seu art. 116, estabelece, como uma das espécies de medidas sócio-educativas, a obrigação de reparar o dano, o que vem a atender diretamente eventual interesse econômico do ofendido ou seu representante legal.
Em terceiro lugar, como esclarece Júlio Fabbrini Mirabete, a "assistência de acusação, em nosso Direito Processual Penal, não é um mero correlativo direito do direito à reparação do dano, eis que o ofendido intervém para reforçar a acusação pública, figurando em posição secundária o interesse mediato na reparação do dano causado pelo delito" ("Processo Penal", SP, Atlas, 1991, p. 331). Deste modo, pode o ofendido ter interesse em acompanhar o feito, tão-somente, para auxiliar o MP na busca da verdade real, independentemente de eventual interesse na indenização. E este propósito pode dar-se, também, a nível de ato infracional, pois, malgrado não sofra o adolescente imposição de pena, nada impede tenha a vítima interesse em ver aplicada medida sócio-educativa, uma vez apurados autoria, materialidade e demais requisitos necessários a tanto. Cumpre referir ainda que isto não contradiz o que antes foi dito acerca da desnecessidade de representação ou da impossibilidade de oferecimento de queixa pela vítima, pois, diferentemente de ter interesse no resultado do processo, é ter o poder de obstar a iniciativa do Poder Público.
Em quarto lugar, cumpre lembrar que a reapropriação do conflito por seus protagonistas vem sendo a orientação predominante no moderno Direito Penal, em vista de contribuições da Criminologia (ver, a respeito, por exemplo, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, "Criminologia - O Homem Delinqüente e a Sociedade Criminógena", Portugal, Coimbra Editores, 1992, pp. 411 e 412; Winfried Hassemer e Francisco Munoz Conde, Introdución a la Criminología y al Derecho Penal, Espanha, Tirant lo Blanch, 1989, p. 174; Raúl Cervini, "Os Processos de Descriminalização", SP, RT, 1995, pp. 229 e seguintes). Destarte, a participação do ofendido, mesmo se tratando de apuração de ato infracional, é salutar em qualquer modalidade.
Por fim, basta aduzir que esta posição também vem encontrando ressonância nos Tribunais. A mesma 7ª Câmara Cível do TJRS, ao julgar a Ap. Cív. nº 595185398, em 13.03.96, decidiu:
"ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PROCEDIMENTO PARA APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL. INTERVENÇÃO DA VÍTIMA, NA QUALIDADE DE ASSISTENTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ADMISSIBILIDADE. PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL..."
7. A IRRETRATABILIDADE DO CONSENTIMENTO DADO PELOS PAIS BIOLÓGICOS NA ADOÇÃO
Em relação à adoção, também foram significativas as alterações promovidas pelo ECA.
No art. 45 e seu § 1º, estabelece-se que a adoção pressupõe o consentimento dos pais naturais, salvo se desconhecidos ou destituídos do pátrio poder. A isto, pode-se acrescentar se falecidos. Em qualquer caso, porém, a adoção de criança ou adolescente será sempre feita perante o Poder Judiciário.
Em tendo sido mantida a possibilidade de adoção com o consentimento dos pais, sem outra medida adicional (destituição do pátrio poder, por exemplo), parece que se preservou, em sua base, a natureza contratual desta forma de adoção, apesar de, em sua essência e conteúdo, apresentar natureza institucional (ver, a respeito, Valdir Sznick, "Adoção", SP, Leud, 1993, p. 69).
Por isso, a intervenção jurisdicional teria dupla função: verificar a legalidade dos atos e atestar a oportunidade da adoção, tendo em vista os interesses do menor.
Pode-se afirmar, assim, que este tipo de colocação em família substituta é um contrato que se celebra perante o juiz, a quem incumbe as funções antes indicadas.
Estabelecidas estas premissas, pergunta-se: a partir de que momento o consentimento dos pais biológicos torna-se definitivo?
Sabe-se que o procedimento da adoção, mesmo quando os pais naturais com ela concordem, pode prolongar-se no tempo, principalmente se houver necessidade de estágio de convivência. Retoma-se, então, a questão: enquanto durar o procedimento, podem os pais arrepender-se?
Parece que não. Uma vez ouvidos em juízo e devidamente alertados dos efeitos da adoção, o consentimento torna-se definitivo (é conveniente que o juiz, ao ouvir os pais, advirta-os acerca da irreversibilidade da decisão), salvo, à evidência, ocorrência de vício (erro, coação). Aliás, nesta hipótese, mesmo findo o processo, a ação anulatória é ainda cabível. Entretanto, se a manifestação de vontade foi livre e espontânea, torna-se irretratável.
E assim tem de ser, sob pena de gerar-se prolongada incerteza sobre o destino da criança ou do adolescente a ser colocado em família substituta desta forma. A participação dos pais encerra-se com o consentimento, pois as demais fases do processo (estágio de convivência, estudo social, etc.) são estabelecidas em favor do adotando.
Certamente, se o julgador verificar, quando da audiência, que a decisão dos pais ainda não está amadurecida, deve possibilitar prazo para reflexão, somente colhendo o consentimento após esta medida.
O entendimento que ora se propõe, por certo, é apenas um norte, a ser observado enquanto não ferir os interesses maiores do próprio adotando, fim último da Justiça da Infância e da Juventude.
Desconhece-se manifestação da doutrina sobre o assunto. Relativamente aos tribunais, traz-se à colação a seguinte ementa:
"Tendo em vista o bem-estar do menor, malgrado o interesse da mãe biológica em reverter a adoção, é de se manter a guarda do mesmo com os pais adotivos, mormente se dele vêm cuidando desde tenra idade, com amor e cuidados necessários e indispensáveis a uma criança, sendo eles seus verdadeiros pais, apesar de substitutos; o contrário significa violentá-la, provocando o sofrimento de todos os envolvidos e principalmente o seu, abrindo-se-lhe a possibilidade de trauma irreparável na sua formação." (RT 713/195).
Em sentido contrário, há decisão constante de RT 671/80.
Contudo, se na audiência do art. 166, parágrafo único, do ECA, os pais não manifestarem concordância com a adoção, esta não se dará, a menos que seja promovida a competente ação de destituição do pátrio poder.
8. A IRREVOGABILIDADE DA ADOÇÃO
O art. 48 do ECA, sucintamente, dispõe: "A adoção é irrevogável".
Em relação, portanto, às adoções realizadas sob o amparo das normas do Estatuto, dúvidas inexistem: são irreversíveis.
Contudo, restaria a apreciação das adoções realizadas anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 8.069/90, bem como daquelas feitas, ainda hoje, com base nos dispositivos do Código Civil (para maiores de 18 anos de idade), via escritura pública.
Uma primeira decisão judicial que se apresenta vem da mais elevada Corte do País em matéria não constitucional. A 4ª Turma do STJ, ao apreciar o REsp nº 26.834-9-RJ, acórdão publicado em 21.08.95, entendeu:
"O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8.069/90 - não teve o condão de tornar irrevogável adoção simples de menor impúbere realizada sob a égide do revogado Código de Menores - Lei 6.697/79. Aplicação dos princípios tempus regit actum e da irretroatividade das leis."
As críticas que podem ser feitas a esta decisão são várias, mas a mais veemente decorre do disposto no art. 227, § 6º, da Constituição Federal, que estabeleceu o princípio da igualdade dos filhos, inclusive os oriundos de adoção. Em vista disto, parece ser inadmissível sustentar-se a existência de "filhos revogáveis".
Outrossim, apesar de não tratar diretamente da situação ora analisada (irrevogabilidade da adoção), o Des. Sérgio Gischkow Pereira, no artigo "A Adoção e o Direito Intertemporal", publicado na Revista AJURIS 55/302, forneceu preciosos subsídios para o entendimento da questão. Segundo preleciona o eminente Magistrado, "as leis que definem o estado da pessoa aplicam-se imediatamente a todos que se achem nas condições previstas". Além disso, é importante sublinhar a distinção entre contrato e estatuto legal. "A vontade das partes age na formação do ato, mas não no pertinente aos efeitos, previstos inafastavelmente na lei; assim, se a lei modifica os efeitos da adoção, ela não modifica os efeitos de um contrato, mas os de um estatuto legal".
A 2ª Câmara Cível do TJSP, em acórdão publicado em RT 699/94, analisou situação similar (incidência da Lei nº 4.655/65 sobre adoções celebradas via escritura pública anteriormente) e forneceu novas luzes:
"É preciso não se deixar trair por ilusão de ótica. Assim um ato passado, como a relação jurídica presente, que se irradiou da incidência, sobre ele, da lei de seu tempo (lei velha), podem entrar no suporte fático da lei nova, sem que a eficácia oriunda da incidência dessa sobre aquela, ou aquele, ou sobre ambos, decorra de retroatividade, viole direito subjetivo, ou atente contra ato jurídico perfeito, se não apaga efeito jurídico que já se produziu. Dá-se, na hipótese, a chamada aplicação (rectius, incidência) imediata da lei nova, que apanha, no presente, como fato de seu tempo, o ato, a relação, ou ambos, submetendo-os, a partir daí à sua eficácia. A lei não vai ao passado, para riscar o que, nele, já foi; apenas toma o que é, ou o que foi, sem deixar de ter sido, para estatuir o que deve ser no presente."
Deste modo, tanto o dispositivo da CF quanto o do ECA antes indicados alteraram o estatuto legal da adoção, aplicando-se a todos os casos existentes.
Felizmente, é este o entendimento que vem tendo curso em nosso Estado, como se vê em acórdãos da 7ª Câmara Cível (Ap. Cív. nº 594041923) e da 8ª Câmara Cível (Ap. Cív. nº 595039611).
Em síntese, a adoção é irrevogável, não importando a data de sua constituição ou a modalidade.
9. A GUARDA PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS
Este assunto já foi objeto de inúmeros pronunciamentos, tanto a nível de doutrina como de jurisprudência, mas mesmo assim ainda não se logrou uma visão uniforme.
Segundo o Eminente Procurador de Justiça Mário Romera (no artigo "O Instituto da Guarda no Estatuto da Criança e do Adolescente", publicado na Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul 29/133), a guarda apresenta várias modalidades: a "permanente" (quando é um fim em si mesma), a "temporária" (concedida liminarmente ou incidentalmente em processos) e a "especial" (para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável).
É este último tipo de guarda referido ("especial"), com fundamento no art. 33, § 2º, do ECA, que vem propiciando o deferimento das conhecidas "guardas para efeitos previdenciários" (RT 685/134, por exemplo), não obstante seu repúdio pela doutrina mais abalizada.
Com efeito, Antônio Chaves ensina:
"É comum os avós postularem a guarda de neto, quando a mãe (ou o pai) com eles reside, trabalha, mas só tem assistência médica do INSS e quer beneficiar seu filho com o IPE ou outro convênio. Entendo, respeitando posições em contrário, que tais pedidos devem ser indeferidos, porque a situação fática, nesses casos, estará em discrepância com a jurídica. Em suma, é uma simulação, com a qual o MP, como custos legis, e o juiz competente não podem ser coniventes, sob pena de se fomentar o assistencialismo às custas de entidades não destinadas a esse fim." (em "Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente", SP, LTr, 1994, p. 150).
É correta a lição, pois a guarda, como modalidade de "colocação em família substituta", pressupõe, à evidência, que a criança ou o adolescente saia da vigilância ou cuidado dos pais biológicos.
As decisões constantes de RJTJRGS 164/346 e 165/308, seguindo este entendimento, fixaram que a assistência médica ou previdenciária é apenas conseqüência da guarda, e não fundamento para sua concessão.
Já se sustentou que os filhos de pais menores de 21 anos de idade poderiam ser colocados sob a tutela dos avós, dada a incapacidade dos pais para o exercício do pátrio poder (Revista AJURIS 62/208).
Data venia, é equivocado este entendimento. O pátrio poder, mais que um encargo, é "um encaminhamento, com poder para impor uma certa conduta" ao filho (Arnaldo Rizzardo, "Direito de Família", vol. III, RJ, Aide, 1994, p. 900). Assim, os atos inerentes ao pátrio poder decorrentes da relação direta pais-filhos (criação, educação, companhia, exigência de obediência e respeito, etc.) são exercidos diretamente pelos pais, mesmo se menores de 21 anos de idade. E isto porque o pátrio poder é personalíssimo (José Antônio de Paula Santos Neto, "Do Pátrio Poder", SP, RT, 1994, pp. 74 e 75). Diferentemente se dá com os atos da vida civil que o pai ou a mãe menor tem de praticar em nome do filho, quando então serão representados ou assistidos pelos avós.
Não bastasse isto, nos termos do art. 36, parágrafo único, do ECA, a tutela pressupõe a prévia decretação da perda ou suspensão do pátrio poder. A isto, o Código Civil, em seu art. 406, acrescenta a ausência ou falecimento dos pais.
A solução, portanto, é outra: sendo os netos dependentes economicamente dos avós e estando os pais tomando conta dos mesmos, cabíveis são ação declaratória ou justificação judicial. Mas é inadmissível subverter o instituto da guarda, em substituição a estas medidas.
10. O INTERESSE LOCAL DO MUNICÍPIO E O CONSELHO TUTELAR
O Título V do ECA dispõe sobre o Conselho Tutelar, órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos de crianças e adolescentes.
Já o art. 133 define os requisitos para a candidatura a conselheiro tutelar (reconhecida idoneidade moral, idade superior a 21 anos e residência no município).
Quando da instalação de referidos Conselhos, alguns municípios acrescentaram outros requisitos (comprovada atuação junto a infantes ou jovens por certo período, escolaridade mínima, etc.) àqueles exigidos pelo Estatuto.
As primeiras manifestações dos Tribunais, no entanto, rejeitaram a possibilidade de ampliação daquelas exigências, sob o fundamento de que a competência para legislar sobre matéria relativa à proteção da infância e da juventude é da União e dos Estados-Membros, concorrentemente (art. 24, XV, da CF), o que afastaria a possibilidade de normatização pelo Município. É o que se verifica em acórdão publicado em RJTJRGS 163/305.
Parece equivocada esta posição.
José Afonso da Silva, em seu "Curso de Direito Constitucional Positivo", SP, RT, 1990, p. 435, preleciona:
"A Constituição não situou os Municípios na área de competência concorrente do art. 24, mas lhes outorgou competência para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, o que vale possibilitar-lhes disporem especialmente sobre as matérias ali arroladas e aquelas a respeito das quais se reconheceu à União apenas a normatividade geral."
Deste modo, é de admitir-se a competência legislativa municipal na espécie, com base no disposto no art. 30, I e II, da CF. O contrário eqüivaleria a desrespeitar a autonomia do Município, alcançada com a CF/88, propiciando a completa ingerência de outros entes federativos em assunto de interesse local daquele.
Este entendimento foi sufragado pela 8ª Câmara Cível do TJRS, ao apreciar o Reexame Necessário nº 595043944-RS, em 08.05.95.
11. A FUNDAMENTAÇÃO DAS PORTARIAS JUDICIAIS
O art. 149 do ECA coloca nas mãos do Juiz da Infância e da Juventude dois importantes instrumentos para a proteção genérica e específica de crianças e adolescentes: a portaria e o alvará.
Os dispositivos parecem não comportar maiores questionamentos, mas não se encontra acerto na interpretação do § 2º do artigo mencionado.
A 8ª Câmara Cível do TJRS, ao apreciar o MS 595051771-RS, de 25.05.95, entendeu que a edição de portaria para regrar as hipóteses elencadas no art. 149, I e II, do Estatuto exigiria a realização de sindicância para a verificação de cada caso específico.
A prevalecer este entendimento, estaria praticamente obstaculizado qualquer regramento, por parte do juiz, daqueles casos que demandassem a edição de portaria. Imagine-se se, para regulamentar o ingresso de crianças e adolescentes em bares, boates, fliperamas, entre outros, tivesse o julgador de investigar cada estabelecimento, para então regrá-lo. Em cidades grandes é absolutamente inviável.
A doutrina, porém, oferece outros entendimentos sobre a matéria.
José Luiz Mônaco da Silva (ob. cit., pp. 256 e 257), por exemplo, em comentário ao § 2º do art. 149, ensina:
"Se o presente parágrafo não for bem entendido, por certo conduzirá o intérprete a uma inegável contradição com a norma disposta no caput do artigo. O que ele quer expressar, em linhas gerais, é que, afora a matéria disciplinada por meio de portaria judicial, os demais atos judiciais consubstanciados em alvarás judiciais não se submetem a decisões de caráter geral, antes prestam inteira vassalagem a cada caso que for endereçado à autoridade judiciária."
Pode-se argumentar, ainda, que o dispositivo analisado busca afastar o que previa o art. 8º do Código de Menores revogado, que conferia ao juiz amplos poderes de regulamentação. Deste modo, as hipóteses elencadas no art. 149 do ECA seriam taxativas.
De qualquer sorte, o importante é que a decisão da 8ª Câmara Cível do TJRS, antes indicada, não vingue, sob pena de impedir o uso de um importante instrumento de proteção de jovens e infantes.
12. O SISTEMA RECURSAL
O Capítulo IV do Título VI do Livro II do Estatuto da Criança e do Adolescente traçou o sistema recursal aplicável aos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude. Expressamente, adotou-se o sistema recursal do Código de Processo Civil, com as alterações indicadas nos incisos I a VIII do art. 198.
Apesar de simples as disposições, sua interpretação despreocupada pode levar a conclusões equivocadas.
Inicialmente, cumpre observar que o sistema recursal para os casos constantes do Capítulo III ("Dos Procedimentos") do Título antes indicado é diverso do aplicável aos de seu Capítulo VII ("Da Proteção Judicial dos Interesses Individuais, Difusos e Coletivos").
Para os procedimentos expressamente previstos no ECA ("Da Perda e da Suspensão do Pátrio Poder", "Da Colocação em Família Substituta", "Da Apuração de Ato Infracional Atribuído a Adolescente", "Da Apuração de Irregularidade em Entidade de Atendimento" etc.) o sistema recursal é aquele definido nos arts. 198 e 199 do Estatuto: disciplina do CPC com as alterações ali elencadas. Também para os demais procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude (ação de alimentos etc.) aplicam-se estas normas.
É importante alertar que, não obstante o art. 152 do ECA preveja a aplicação subsidiária da legislação processual pertinente, o sistema recursal aplicável aos procedimentos para apuração de ato infracional atribuído a adolescente é o do Código de Processo Civil (com as alterações do art. 198 do ECA), e não o do Código de Processo Penal.
Por outro lado, para os procedimentos relativos à proteção judicial dos interesses individuais, difusos e coletivos (ação civil pública, mandado de segurança etc.), previstos nos arts. 208 a 224 do ECA, o sistema recursal aplicável é o do Código de Processo Civil, sem as alterações do art. 198 do ECA.
Assim é porque o Capítulo que regula estes procedimentos (Capítulo VII) é posterior ao que regula os recursos (Capítulo IV), não se admitindo esta disposição se o objetivo fosse atingir também estes casos com o sistema recursal expressamente estabelecido no ECA. Ademais, o art. 212, § 1º, do ECA determina a aplicação das normas do CPC aos procedimentos relativos à proteção judicial dos interesses individuais, difusos e coletivos de crianças e adolescentes. Já o art. 224 remete aos dispositivos da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), a qual também conduz ao CPC. Referentemente ao sustentado neste parágrafo, Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz é da mesma opinião ("Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado", Munir Cury e outros, SP, Malheiros Editores, 1992, p. 685).
Isto não é tudo, porém. Como se sabe, a Lei nº 9.139/95 promoveu significativas alterações dos dispositivos do CPC que tratam do agravo. Como conciliar esta reforma com os dispositivos do ECA acerca do mesmo recurso (art. 198, IV e V)? Nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude o agravo continua a ser processado da forma anterior?
Segundo Norberto Bobbio, em sua obra "Teoria do Ordenamento Jurídico", SP, Editora Polis, 1990, pp. 91 e seguintes, para a solução de antinomias de um sistema normativo existem três regras fundamentais: o critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e o critério da especialidade (lex specialis derogat generali).
Contudo, entre a Lei nº 9.139/95 e a Lei nº 8.069/90 estabelece-se um confronto entre lei geral posterior e lei especial anterior. Neste caso, segundo o mesmo jusfilósofo, "o conflito entre critério de especialidade e critério cronológico deve ser resolvido em favor do primeiro" (obra citada, p. 108), ou seja, lex posterior generalis non derogat priori speciali. Apesar disso, o próprio autor adverte que esta regra deve ser tomada com certa cautela, pois tem um valor menos decisivo.
Em se aplicando o critério antes indicado, chegar-se-ia ao absurdo de manter, nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, a disciplina revogada do recurso de agravo.
Para elucidar a matéria e alcançar uma interpretação razoável, portanto, socorre-se de lição de Carlos Maximiliano:
"Quando a lei geral estabelece novos princípios absolutamente incompatíveis com aqueles sobre os quais se baseava a especial anterior, fica a última extinta; do objeto, espírito e fim da norma geral é bem possível inferir que se teve em mira eliminar até as exceções antes admitidas." ("Hermenêutica e Aplicação do Direito", RJ, Forense, 1990, pp. 359 e 360).
Conclui-se, destarte, que as normas referentes ao agravo constantes do ECA incompatíveis com a nova disciplina deste recurso restaram revogadas.
13. A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
A questão da possibilidade de o Poder Judiciário compelir o Poder Executivo a agir para atender direitos afetos a crianças e adolescentes é um vasto campo para estudo. No âmbito do presente artigo, assim, não há como enfrentá-la senão de modo superficial, com o apoio da doutrina e da jurisprudência mais abalizadas.
É comum negar-se a tutela de interesses difusos e coletivos, quando demandado Município ou Estado, sob o fundamento de que não cabe a ingerência de um Poder na esfera de competência de outro, devido ao princípio da separação e harmonia entre eles.
Sem negar a existência de tal princípio, pode-se sustentar que seu alcance não é o que ordinário se lhe atribui.
Com efeito, sob pena de transformar as disposições legais que definem os chamados direitos sociais em mero ornamento normativo, é mister alcançar um entendimento que não estimule a inércia do Poder Público na implementação de direitos que exigem uma atuação positiva sua (direitos através do Estado).
RUY RUBEN RUSCHEL, no artigo "Da Eficácia dos Direitos Sociais Previstos em Normas Constitucionais", publicado na Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, 33, às pp. 39 e 40, assim enfrentou o problema:
"Um dos maiores obstáculos à implementação dessa tese resulta de como se tem entendido o princípio da separação dos Poderes. Os juristas tradicionais inclinam-se a conferir ao princípio valor mais absoluto do que atualmente tem.
"Na verdade, a separação nunca assumiu um caráter rígido...
"Se faltarem vontade política e eficiência prática dos demais Poderes, resta ao Judiciário ocupar o espaço aberto, conquistando-o até fixar seus próprios limites. Se não o fizer quando invocado caso a caso, estará tomando uma postura conservadora, timorata ante as doutrinas consolidadas (na verdade superáveis), cúmplice da histórica iniqüidade que infelicita nosso povo."
Com igual maestria, Diomar Ackel Filho, em seu artigo "A Discricionariedade Administrativa e a Ação Civil Pública", publicado em RT 657/51, preleciona:
"A Administração, na consecução dos objetivos do bem comum, tem deveres e obrigações, assim como se investe de faculdades e direitos. Ao implementar os atos que lhe competem, espelhados na condução dos serviços e obras públicas, sempre tem em mira determinados fatos, traduzidos como realidade social, em que devem ser sopesados como imperativos a executar ou carências a suprir. Nesse desiderato, o agente público necessita avaliar essas realidades, dando azo, então, ao seu discrímen. Ao fazê-lo, por vezes, o administrador avalia equivocamente o contexto divorciando-se do bem comum, ou mantendo-se culposa ou deliberadamente na contemplação distorcida da verdade social, omite-se, negligência, prevarica.
"É, então, que surge a possibilidade de correção do desvio ou da omissão praticada por via dos mecanismos de controle da atividade administrativa, entre as quais avulta em importância o Poder Judiciário, pela eficácia vinculativa de sua atuação.
"A tutela jurisdicional da espécie não representa uma interferência indébita que contrarie a regra da divisão dos poderes. É sabido que a harmonia exige uma interdependência recíproca..."
Enfrentando o tema, a Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao julgar a Apelação Cível nº 44.569-SC, com base em doutrina de Rodolfo de Camargo Mancuso, pronunciou-se da seguinte forma:
"Não se trata de inchamento do Poder Judiciário, porque quando ele outorga tutela aos interesses metaindividuais, não está desenvolvendo atividade de suplência, é sua própria atividade, de outorgar tutela a quem a pede e merece. No caso dos interesses difusos, a intervenção judicial é hoje considerada fundamental; não é que esse Poder esteja a invadir a seara dos outros; será, antes, um sinal de que os outros não estão a tutelar esses interesses, obrigando os cidadãos a recorrerem diretamente à via jurisdicional..."
Na área da infância e da juventude, em vista do princípio da prioridade absoluta (art. 227, caput, da CF e art. 4º do ECA), a exigência de atuação do Poder Público faz-se mais veemente.
Sobre isto, Wilson Donizeti Liberati ensina:
"Por absoluta prioridade devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas as necessidades das crianças e adolescentes...
"Por absoluta prioridade entende-se que, na área administrativa, enquanto não existissem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveria asfaltar as ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto que ficam para demonstrar o poder do governante." (obra citada, p. 16).
Deste modo, inexistindo programas locais (de responsabilidade do Município) ou regionais (de responsabilidade do Estado) para atendimento de direitos de crianças e adolescentes, a inação injustificada do Poder Público pode ser submetida a apreciação judicial.
Não socorre os entes públicos, por fim, a desculpa de que o sistema de atendimento dos direitos da criança e do adolescente depende também de ações não-governamentais (art. 86 do ECA), pois, apesar de não exclusiva, esta obrigação lhes é própria, cumprindo-lhes a iniciativa de instituir os programas necessários. Se omissos, cabe ao Poder Judiciário compeli-los à ação (ver, a respeito, Wilson Donizeti Liberati e Públio Caio Bessa Cyrino, "Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente", SP, Malheiros Editores, 1993, p. 72).
Bruno Heringer Júnior
Promotor de Justiça/RSCódigo da publicação: 150
Como citar o texto:
JUNIOR, Bruno Hering..Algumas questões controvertidas do ECA. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-da-infancia-e-juventude/150/algumas-questoes-controvertidas-eca. Acesso em 8 mai. 2000.
Importante:
As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.
Pedido de reconsideração no processo civil: hipóteses de cabimento
Flávia Moreira Guimarães PessoaOs Juizados Especiais Cíveis e o momento para entrega da contestação
Ana Raquel Colares dos Santos LinardPublique seus artigos ou modelos de petição no Boletim Jurídico.
PublicarO Boletim Jurídico é uma publicação periódica registrada sob o ISSN nº 1807-9008 voltada para os profissionais e acadêmicos do Direito, com conteúdo totalmente gratuito.