Menoridade penal, medidas sócio educativas e o desafio à transposição da ficção jurídica

De fato, os temas da menoridade penal e das medidas sócio-educativas, aplicáveis aos menores infratores, são temas polêmicos, que geram inúmeros debates acerca de sua validade enquanto normas penais, bem como sua eficácia como reprimenda penal.

Conforme previsto no artigo 27 do Código Penal, in verbis: "Art. 27. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial."

Tal entendimento foi recepcionado pelo legislador constituinte, que o insculpiu no bojo da Carta Magna de 1988, ratificando tal posicionamento. É o que se depreende do artigo 228 da referida Lex Major, onde se lê, in verbis: "Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos às normas de legislação especial."

Fixando um critério meramente biológico (idade), adotou a legislação pátria uma presunção de que todo menor de 18 anos não é capaz de entender o caráter ilícito de sua ação, visualizando-o, pois, como possuidor de um desenvolvimento mental incompleto. Tal presunção é absoluta, aplicando-se à toda pessoa menor de 18 anos por um critério de política criminal.

Esse entendimento, como já dito, viceja inúmeras elucubrações favoráveis e desfavoráveis, mesmo estando consolidada em nosso ordenamento jurídico. De início, vejamos o que diz a Drª Maria do Carmo de Assumpção Borges:

"Adolescente, à véspera de completar 18 anos, pratica ato infracional, crime, de suma gravidade, tem personalidade desestruturada, é-lhe aplicada a medida de internação que, presume-se, terá duração dilatada. Dias depois, ainda no internado, já maior, pratica crime sem gravidade, ao qual o juiz criminal aplicará a pena de multa, pois que não tem antecedentes criminais. Tendo sido preso em flagrante, foi subtraído da justiça especializada. Como se situa a defesa social?" 1

Contudo, no que pese argumentos favoráveis à manutenção da atual sistemática, lecionou brilhantemente o Prof. Alyrio Cavallieri:

"A manutenção da idade de 18 anos para o afastamento do menor, criança e adolescente, do Código Penal é uma bandeira de todos, menoristas e estatutistas.[...]. Quando lutamos pela conservação dessa idade, é comum ouvir-se, até de pessoas cultas, a afirmação de que ela é absurda, porque, mesmo com muito menos de 18 anos eles [sic] sabem o que fazem. Não lhes ocorre que o conhecimento está ligado à imputabilidade e que, quando os doutos afirmam que os menores de 18 são inimputáveis, querem dizer que se trata de presunção [sic] de inimputabilidade. Mas, porque falar-se em presunção, se temos a realidade? É obvio que a partir de tenra idade, eles sabem o que fazem. [...]. Toda esta dúvida tem sua origem na Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, quando o Ministro Francisco Campos escreveu que os menores ficavam fora daquela lei, porque eram imaturos [sic]. [...]. Segundo ele, todos os menores de 18 anos no Brasil eram imaturos. Absurdo completo. E nós contaminamos toda a nação com esta insólita concepção. Espero que a importância prática de uma conceituação adequada tenha sido demonstrada. Os estatutistas merecem todos os encômios pela elevação à Lei Magna de uma aspiração comum, mas poderiam ter aproveitado para destruir um mito prejudicial. Eles [sic] sabem o que fazem, mas não vão para a cadeia, pois temos solução melhor para seus crimes." 2

Ainda, corroborando ao entendimento de sofrível questão, Wilson Donizeti Liberati argumenta em prol da atual sistemática menorista e cita-nos o nº 23 da Exposição de Motivos do Código Penal, a fim de embasar sua opinião. Senão, vejamos:

" [...]. Os que preconizam a redução do limite, sob a justificativa da criminalidade crescente, que a cada dia recruta maior número de menores, não consideram a circunstância de que o menor, por ser ainda incompleto, é naturalmente anti-social à medida que não é socializado ou instruído. O reajustamento do processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, não à pena criminal. De resto, com a legislação de menores recentemente editada, dispõe o Estado dos instrumentos necessários ao afastamento do jovem delinquente, menor de 18 anos, do convívio social, sem sua necessária submissão ao tratamento do delinquente adulto, expondo-o à contaminação carcerária." 3

Et sequentia, em laço de genial e esclarecedora assertiva, conclui:

"O problema não está sediado somente na fixação do critério etário; o problema maior está na falência do sistema de atendimento de jovens infratores, carentes de programas de atendimento. O Poder Executivo, detentor da obrigação de instalar esses programas e executá-los permanece completamente alheio à situação, deixando para o Poder Judiciário sua solução." 4

É com veemência que compartilhamos de tal posicionamento. De fato, a problemática não gira em torno da estipulação etária, mas sim de ofertar mecanismos de ressocialização do menor infrator, adequados à sua eficaz recuperação. Lançarmos nossos jovens nas celas é como arremessar lenha nas fornalhas do sistema penitenciário, já ardendo nas chamas da quase caótica insustentabilidade, que de fato, já constatamos.

Outro ponto, assaz polêmico, é a questão das medidas sócio-educativas inseridas como reprimenda penal aos menores-infratores, estipulado pela Lei nº 8.069/90, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Com certeza, sua aplicabilidade veio em reposta à necessidade de uma "punição" ao menores-infratores que desrespeitarem as normas penais. É claro que, face à proteção especial da legislação pátria de que gozam tais indivíduos, essas punições tem caráter eminentemente educativo-pedagógico, o que não poderia ser diferente. Tais medidas encontram-se elencadas nos artigos 101 e 112 do ECA.

A questão que gira em torno do tema é sua real eficácia enquanto reprimenda penal.

Wanda Engel, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, é fática ao lecionar em favor das medidas sócio-educativas do ECA:

"Assim, a antiga forma de transformar condutas sociais através da punição/reclusão fica substituída pela proposta de modificar não só a conduta mas a visão do mundo que a orienta, através de medidas ou processo de cunho eminentemente pedagógico, realizados preferencialmente pelos sujeitos com as quais a criança mais se identifique afetivamente." 5

Na mesma obra, o ilustre membro do Ministério Público Paranense, Dr. Olympio Sotto Maior, vai ao encontro de tal posicionamento ao apregoar:

"Então, para o adolescente autor de ato infracional a proposta é de que, no contexto da proteção integral, receba ele medidas sócio-educativas (portanto, não punitivas), tendentes a interferir no seu processo de desenvolvimento objetivando melhor compreensão da realidade e efetiva integração social." 6

Ademais, adverte: "Entretanto, convém registrar de plano, comete equívoco quem imagina que a proposta da nova legislação, no referente ao enfrentamento da delinqüência infanto-juvenil, resume-se nas medidas ora em apreciação." 7

De fato, a solução de tal problema que gravosamente se abate sobre a sociedade, fixa-se na distribuição adequada de renda, gerando plena igualdade social de acesso aos meios de integração política, social, cultural e educacional a todas as crianças e adolescentes, afastando-os das vicissitudes da desigualdade social, que já sabemos, gera pobreza, que gera necessidades, que gera marginalização.

Assim, podemos concluir que, isoladamente, as propostas apresentadas pelo ECA não geram os efeitos esperados, tendo em vista que, se partimos de uma análise do ponto de vista educacional, as medidas ali previstas deveriam ser implantadas e executadas em estabelecimentos condignos com tal mister, a saber, verdadeiras escolas, na acepção profunda do termo; não em internatos como a FEBEM, que massifica o atendimento do menor, desprezando suas origens e sem levantamentos mais aprofundados dos reais motivos que o levaram ao cometimento de uma conduta reprovável ante a legislação penal.

Meio caminho já foi percorrido, é preciso agora a implementação de mecanismos que, de fato, garantam a real proteção que a lei vislumbrou ao menor, ressocializando-o e individualizando-o na sua "punição", levando-se em conta a gravidade do delito praticado e seu perfil psico-social.

 

NOTAS

1 BORGES, Maria do Carmo Assumpção. A Responsabilidade Penal, a Criança e o Adolescente. Tese - Escola de Magistratura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EMRJ, 1994, apud, CAVALLIERI, Alyrio. Falhas do Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 56.

2 CAVALLIERI, Alyrio. Falhas do Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 54-56.

3 Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 72.

4 Idem, ibidem.

5 CURY, Munir (coord.); SILVA, Antônio Fernando do Amaral e (coord.); MENDEZ, Emílio García (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 313.

6 Idem, ibidem, p. 364.

7 Idem, ibidem, p. 363.

 

 

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Código Penal. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

CAVALLIERI, Alyrio. Falhas do Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

CURY, Munir (coord.); SILVA, Antônio Fernando do Amaral e (coord.); MENDEZ, Emílio García (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001.

LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

 

(Elaborado em junho/2004)

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Ronny Carvalho da Silva

Acadêmico do 3º ano do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos e Cabo da Polícia Militar do Paraná.