Às vésperas das eleições municipais e diante da polêmica travada a respeito da quantidade de vereadores nas Câmaras de todo o País, tendo em vista que o TSE estendeu para todo o país o cálculo de proporcionalidade imposto pelo STF a dez cidades do interior de São Paulo, com base na CF.

A decisão do TSE provocaria a redução da quantidade de cadeiras em várias cidades importantes do país, inclusive em algumas capitais, como seria o caso do Recife, que teria sua bancada de vereadores reduzida em 05 vagas.

Essa decisão criou um alvoroço no Congresso, que instalou a comissão para tentar aprovar antes das eleições municipais deste ano uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) com vistas a manter o número atual de vereadores em todo o Brasil - embora haja propostas de destaques permitindo até a elevação do quantitativo. Preocupado com esse problema, que poderá resultar num prejuízo aos interesses democráticos, o Presidente do TSE, SEPÚLVEDA PERTENCE, já esteve na comissão da Câmara dos Deputados que está avaliando a PEC e fez um apelo para que a mesma seja aprovada a tempo de não prejudicar as eleições.

É bem possível que seja aprovado a redução do número mínimo de vereadores, para as pequenas cidades, reduzindo-se de 9 para 7 vereadores nas câmaras das cidades com menos de 8.000 habitantes.

Essa PEC ainda tem muito terreno a percorrer, porém, diante desse problema surge a oportunidade de se resgatar a importância das Câmaras de Vereadores, cuidando logo em avisar que, pessoalmente, sou contra a proposta de redução da quantidade de vereadores nos pequenos municípios, uma vez que é exatamente nas pequenas localidades é mais comum verificar uma hipertrofia do Poder Executivo, ou seja dos poderes políticos dos Prefeitos e, nestes casos, é vital que as câmaras tenham um número mínimo de vereadores - 9, como é o caso atual, para se garantir a possibilidade de que as forças minoritárias da municipalidade se vejam representadas. Há uma tendência para que o Prefeito controle o apoio da grande maioria dos vereadores, nessas pequenas localidades, daí ser importante a possibilidade de manutenção da quantia mínima de 9 componentes por câmaras.

Para realçar a importância política e administrativa das Câmaras de Vereadores, farei, a seguir um breve apanhado histórico do tema.

As origens das câmaras municipais e dos vereadores, vem da época da colonização do Brasil.

Vereador é a pessoa que "vereia" (do verbo verear, que quer dizer administrar), segundo alguns estudiosos. Mas, segundo outros, "verear" é a contração de verificar. Assim, as autoridades municipais estavam organizadas em Vereações ou Conselhos de Vereadores e essas instituições já desempenhariam papel capital durante a colonização. Com as ordenações Filipinas, no século XVIII, não haveria autoridade mais forte que a da metrópole.

As Câmaras Municipais, tendiam mais à defender os interesses dos colonos do que dos da metrópole, na verdade eram uma poderosa resistência contra o centralismo da administração colonial

WALTER COSTA PORTO (O VOTO NO BRASIL), comenta acerca da importância dos CONSELHOS MUNICIPAIS, órgãos precursores das Câmaras de Vereadores, afirmando que a história desses organismos ainda não foi escrita com a isenção necessária, pelo que alguns lhes prestam maior valor do que efetivamente tinham, como é o caso de JOÃO FRANCISCO LISBOA, o qual foi acusado pelo historiador CAPISTRANO DE ABREU de falsear a história, dando-lhes uma importância que nunca tiveram. Outros, teriam "apequenado" o papel desses Conselhos - também chamados de câmaras, como teria sido o caso  do próprio CAPISTRANO DE ABREU em seus CAPÍTULOS DE HISTÓRIA COLONIAL, o qual afirmou que os "HOMENS BONS" "reuniam-se em Câmaras Municipais, órgão de administração local, cuja importância, então e sempre somenos, nunca pesou decisivamente em lances momentosos, em no Reino, nem aqui...". O já citado JOÃO FRANCISCO LISBOA, comentando a situação do MARANHÃO, enalteceu o poder desses conselhos: "com camareiros altivos e façanhudos, falando grosso diante do clero, enfrentando os jesuítas - uma potência no campo civil - e muitas vezes primando sobre o poder de el-Rei, na pessoa de seus delegados...".

Passados tantos séculos e sem a autoridade própria dos historiadores, tenho comigo que esses organismos tinham muita importância política e administrativa local, pois era natural certa fragilidade do reino nos rincões da colônia, ante a distância, falta de estrutura administrativa, dificuldades de comunicação e, principalmente, porque a maioria desses homens bons, representava o poder econômico local e, portanto, sem dúvida nenhuma, ditava as regras. Ademais, analisando-se as ORDENAÇÕES FILIPINAS, é fácil constatar o poderia desses conselhos, pois aos mesmos competia, em suma, a administração das vilas e, inclusive aplicação da justiça, embora neste particular (funções judiciárias), maior poder lhes havia sido conferido pelas ORDENAÇÕES MANOELINAS.

As ORDENAÇÕES FILIPINAS determinavam, entre outras coisa, que competiam aos vereadores a taxação dos ganhos dos artífices, baixar posturas, determinar a conservação de logradouros, jornadas de trabalho e, inclusive, julgar, sem apelação, os feitos das injúrias verbais e pequenos furtos.

Esses órgão existiam, certamente mais bem organizados, no Reino.

O fato inegável é que a administração colonial era feita através desses órgãos, reconhecendo-lhes CAIO PRADO JÚNIOR, que competia às Câmaras Municipais o exercício de grande número de atribuições, "constituindo a verdadeira e quase única administração da colônia".

Na verdade, ao se criar uma vila na Colônia, inaugurava-se o PELOURINHO, que era o marco da existência da vila e, de imediato se fazia a convocação dos homens bons, para eleger os vereadores. O nome pelourinho têm sua origem na bola que encimava a coluna de alvenaria (em latim denominada de "pirorium") e que era construída sobre um pedestal, com escadaria feita de pedras. Erguido na praça principal da vila, o pelourinho era uma espécie de marco ou emblema da adminstração, servindo também como local de castigo aos criminosos e escravos fugidos. "Pelouros", como se verá adiante, era como se designavam as urnas para certas votações no Brasil colonial.

Procurava-se, aqui, repetir-se o modelo administrativo vigente no Reino.

Em Portugal, de maneira mais clara, o poder municipal residia, basicamente, no Conselho, o conjunto dos "homens bons" do lugar, representados pela Câmara ou Mesa da Vereação.

Nas cidades principais, essa Mesa assumia o título de Senado da Câmara.

Os municípios portugueses nasceram em forma mais ou menos independente, durante o período feudal. Na ausência de uma autoridade e uma legislação centralizadas, cresceram e se organizaram com base nos costumes e forais das diversas regiões.

A primeira tentativa documentada de padronização encontra-se nas ORDENAÇÕES AFONSINAS que, visando um maior controle e dependência da Coroa, determinaram que as câmaras fossem constituídas por vereadores e presididas por um Juiz Pedâneo, todos eles elegíveis entre os "homens bons" de cada localidade.

Essa organização foi mantida nas ORDENAÇÕES MANOELINAS. D. Manoel I criara, previamente, a figura de Juiz Avindor ou Consertador de Demandas, mas esse cargo não foi incluído nas novas Ordenações.

A definitiva estrutura de governo para os municípios foi estabelecida, em 1603, pelas ORDENAÇÕES FILIPINAS, que determinaram os procedimentos para a escolha de juízes, vereadores e procuradores, bem como as atribuições e limitações dos Conselhos quanto à administração, às rendas públicas, à regulamentação do comércio e dos ofícios e à participação nas festas religiosas. Também estabeleceram um sistema de controle mais rigoroso, exigindo-se a prestação anual de contas aos provedores e a apresentação dos livros da receita e despesa ao Desembargo do Paço.

A primeira localidade do território recém descoberto que veio a ser formada nesses moldes administrativos foi a Vila de São Vicente, em 1532.

Enquanto as capitanias - ou mesmo o Governo Geral, instalado em 1549 - resumiam-se a umas poucas funções regulamentadas (conforme o caso: Capitão ou Governador, Ouvidor ou Ouvidor Geral, Provedor ou Provedor Mor), deixando boa parte das funções secundárias ao arbítrio dos donatários e governadores, o município português foi transplantado ao Brasil com todos os seus quadros já definidos e com pequenas alterações, essa estrutura subsistiria durante todo o período colonial.

Conforme as dimensões do município, cada Mesa da Vereação estava integrada por dois, três ou quatro Vereadores e um ou dois Juízes Ordinários.

O juiz presidia as sessões, mesmo em aspectos administrativos e políticos.

Sendo dois, alternavam-se mensalmente nas funções rotineiras, precedendo o mais antigo nas ocasiões mais solenes.

Serviam à Câmara um Procurador, um Tesoureiro, um Distribuidor e vários Escrivães e Tabeliães.

A ela estavam ligadas, também, as funções de polícia, lideradas por um ou mais Alcaides-pequenos e executadas por Quadrilheiros. Embora fossem funcionários municipais, os alcaides pequenos respondiam ao Alcaide-mór, funcionário do âmbito da Capitania.

Também a cadeia era uma dependência do município, existindo, para sua custódia, um ou mais carcereiros.

A estrutura judiciária começava - no controle da obediência às disposições do município - por dois juízes almotacés, escolhidos mensalmente pela Mesa da Vereação.

Estavam incumbidos de fiscalizar o abastecimento, a limpeza, as obras públicas, os pesos e medidas usados no comércio etc.

Eles podiam julgar informalmente, sem grandes processos nem escrituras, mas todas as suas decisões podiam ser apeladas perante os juízes ordinários.

Os Juízes Ordinários - também chamados Juízes da Terra por serem, como os vereadores, moradores do município - eram a representação mais clara da magistratura de 1ª instância. Podiam conhecer ações novas - mesmo nos casos   de infrações ou delitos alheios ao âmbito municipal - ou revisar as decisões dos magistrados inferiores (juízes almotacés e juízes de vintena). Tiravam devassas particulares sobre feitos de sangue, violentação de mulheres, destruição de propriedade comunal ou privada, falsificação de moeda etc. Estavam, também, incumbidos de controlar a atuação dos juízes, vereadores e oficiais de justiça do âmbito municipal, incluindo a dos juízes ordinários que lhes precederam nos cargos. Podiam dar audiências, expedir mandados de prisão ou alvarás de soltura, instruir e sentenciar, com alçada, nos bens móveis, até mil reis, nos lugares com mais de 200 habitantes, e até seiscentos reis, nas comunidades menores. Nos bens de raiz, essa alçada caía para quatrocentos reis.

Como o leitor deve desconfiar, essa estrutura, digamos, "municipalista" portuguesa, na prática, não funcionava tão bem quanto nas ordenações, principalmente nas distantes terras do Brasil, posto que em muitas vilas sequer havia um compêndio com as ORDENAÇÕES, suas glosas, comentários e

jurisprudência.

Mas, de uma maneira geral, é indiscutível o papel dos conselhos e câmaras, até mesmo pela amplitude de suas competências e, imagino, principalmente ante a quase inexistência no poder do reino nas questões imediatas das localidades da colônia.

Entre as funções desses conselhos e câmaras, inegável é função judicante, não sendo exagero afirmar-se que esses órgãos foram os primeiros órgãos judiciários do Brasil.

Em 1532, enquanto os primeiros juízes ordinários eram empossados no Brasil, um novo tipo de magistrado aparecia em Portugal: o juiz de fora ou, como inicialmente fora chamado, de fora à parte. Era um funcionário letrado, formado em Leis ou Cânones e nomeado pela Coroa, geralmente assumindo a sua primeira responsabilidade na carreira jurídica. Avantajava os juízes ordinários, não apenas na formação profissional mas, também, na isenção a respeito das pressões locais. O cargo não podia ser exercido no local de origem ou residência habitual do magistrado e não era permitido o matrimônio ou qualquer outro vínculo pessoal com os seus jurisdicionados. Por outra parte, a sua autoridade, delegada pela Coroa, era muito superior à dos juízes ordinários.

Mesmo com a criação desses juízes de fora, o domínio dos que detinham o poder local sempre se manifestou, até mesmo porque o processo de colonização exigia que as pessoas que detivessem a posse da terra se empenhassem em sua defesa, como sentinelas avançadas do reino, tanto assim que os primeiros forais concedidos aos que aqui chegaram lhes garantia o direito de não ser molestados por magistrados providos pela Coroa.

Enquanto os almotacés, alcaides e outros funcionários menores eram, simplesmente, escolhidos pelas câmaras, a eleição de juízes ordinários, vereadores e procuradores, atribuição exclusiva dos conselhos, era rodeada de um ritual rigoroso.

Integravam o conselho os "homens bons" da localidade, entendendo-se por tais os adultos livres do sexo masculino, incluídos os nobres e fidalgos, os proprietários, os militares e o clero, enquanto não tivessem - na linguagem da época - "marca de nação infecta", ou seja, mouros, judeus ou seus

descendentes. Servos, escravos, peões e empregados eram considerados "malados", ou seja, classes inferiores, não aptas para tomar parte na condução da comunidade. Entre essas duas faixas, características do mundo medieval, existia, como classe em ascensão, a dos "oficiais mecânicos" (marceneiros, serralheiros, pedreiros etc.), não equiparáveis aos "homens bons" por carecerem de propriedades, títulos e privilégios, mas superiores aos servos e escravos por serem trabalhadores autônomos, donos das suas oficinas. A sua posição nos conselhos não era constante, ora integrando-se com voz e voto, e até obtendo representação nas câmaras, ora apenas  constituindo delegados para a defesa dos interesses setoriais, ora completamente excluídos da condução municipal.

O concelho ou reunião dos "homens bons" não era um órgão regularmente constituído. À semelhança do "Cabildo Abierto" espanhol, reunia-se apenas em circunstâncias de especial transcendência.

Uma dessas circunstâncias era, a cada três anos, a escolha dos novos representantes que deveriam governar o município. Reunido o conselho, sob a coordenação dos atuais juízes e vereadores, eram escolhidos seis eleitores, por votação escrita e secreta, que era apurada publicamente. Depois de juramentados, esses eleitores eram distribuídos em três duplas, devendo cada uma delas apresentar uma lista com candidatos para todos os cargos. As três listas, elaboradas independentemente e sem conhecimento umas das outras, eram assinadas por seus autores. Sendo algum deles analfabeto, um juiz ou vereador assinava no seu lugar, fazendo juramento de silêncio sobre o conteúdo da lista. Depois, o juiz copiava os nomes para uma relação - chamada de "pauta" - verificando que não houvessem parentes (até o quarto grau) propostos para ocuparem cargos no mesmo período. Essa operação era conhecida como "apurar as pautas".

Os nomes eram colocados em bolas de cera, chamadas de "pelouros" por sua semelhança com os projéteis desse nome. Pauta e pelouros eram colocados num saco de couro, com compartimentos especiais para cada um dos cargos, e guardados numa arca ou cofre com três fechaduras. As chaves eram distribuídas entre os vereadores, para que nenhum deles pudesse, individualmente, alterar o conteúdo dos pelouros. Quem confiasse a sua chave a outra pessoa era passível de multa de 4 mil-réis e degredo do termo, pelo prazo de um ano. Terminado o mandato da mesa atual - normalmente, nos últimos dias do ano em curso ou nos primeiros do seguinte - a população se reunia em torno do

pelourinho, cujo nome deriva, provavelmente, desse ritual cívico. Ali, os nomes contidos nos pelouros eram extraídos por um menino menor de sete anos, condição determinada nas Ordenações para garantir a completa isenção. Dentre os três candidatos propostos era, assim, sorteado um nome para ocupar cada cargo. Embora os mandatos fossem anuais, a eleição e formação dos pelouros era feita a cada três anos, o que minimizava a necessidade da presença freqüente dos "homens bons", muitos dos quais eram proprietários rurais residentes em lugares afastados. Guardados os pelouros em segurança, bastaria, durante o rito de abertura e proclamação dos eleitos, a presença da população urbana para garantir a lisura do ato.

Embora eficaz para evitar as fraudes, esse rito era demasiado complexo para ser utilizado toda vez que uma vaga acidental precisasse ser preenchida. Quando um membro da câmara morria ou, por qualquer outro motivo, ficava impossibilitado de concluir o seu mandato, o substituto era escolhido em vereação, por simples maioria de votos, recolhidos, à maneira de urna, num barrete. Daí esses mandatários serem chamados - um pouco despicientemente - de juízes ou vereadores "de barrete", o que os diferenciava dos "de pelouro" que, por terem sido formalmente eleitos, possuíam maior representatividade. O mesmo rito simplificado era utilizado para escolher os alcaides, almotacés e outros funcionários menores. Esses fatos históricos justificam sejam as câmaras de vereadores mantidas como órgãos importantíssimos à autonomia política dos municípios, nem tanto por respeito ao passado, mas, principalmente, porque é inegável o valor de sua contribuição à democracia, principalmente nos pequenos municípios, onde, repito, existe uma tendência a hegemonização do grupo político do chefe do executivo.

A má vontade da imprensa, com os políticos de um modo geral, é menos velada e mais clara em relação aos vereadores, porém diminuir o número de vereadores nos pequenos municípios não será medida de economia e poderá resultar em prejuízos irreparáveis para tais populações, vez que é comum, nessas localidades, a existência de um ou, somente dois vereadores de oposição. E, não custa nada lembrar, não se avança no Estado de Direito sem oposição.

(Elaboração: São Bento do Una/PE., 22 de abril de 2004)

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Como citar o texto:

ANGELIM, Augusto N. Sampaio..Dos "homens bons" aos vereadores e os primeiros juízes do Brasil. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 1, nº 74. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-eleitoral/239/dos-homens-bons-aos-vereadores-os-primeiros-juizes-brasil. Acesso em 23 abr. 2004.

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