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4.6 Posição doutrinária que defende a possibilidade de isenção heterônoma através de tratado internacional somente para os tributos estaduais
Para essa posição doutrinária[678], que ora se adota, a norma constitucional inscrita no artigo 151, III, da Constituição da República é decorrência lógica do princípio federativo[679] [680] [681] adotado pela República Federativa do Brasil[682] [683] (formada pela união indissolúvel[684] dos Estados[685] e Municípios[686] [687] e do Distrito Federal – ex vi do artigo 1o, caput, da Constituição da República[688]). Tal princípio[689] está guardado sob o manto da cláusula constitucional de imutabilidade, que proíbe, peremptoriamente, ao Poder Constituinte derivado[690] propor[691] emenda tendente a aboli-lo (ex vi do artigo 60, § 4o, I, da Constituição da República[692]), sendo, portanto, considerado um princípio fundamental. Não se analisará aqui se o princípio federativo, no Brasil, tenha sido mitigado[693] pelo Poder Constituinte originário[694].
Rui Barbosa, com sua escrita inigualável, escrevendo sobre o federalismo[695], comparou-o aos organismos vivos:
[...] Os Estados são órgãos; a União é o agregado orgânico. Os órgãos não podem viver fora do organismo, assim como o organismo não existe sem os órgãos. Separá-los é matá-los, procedendo como o anatomista, que opera sobre o cadáver, quando a nossa missão organizadora há de, pelo contrário, inspirar-se na do biólogo, que interpreta a natureza viva. Se me fosse dado buscar uma associação de idéias na ordem dos fenômenos da vida entre os organismos superiores da criação, eu compararia as afinidades da dependência entre as províncias federadas e a União Federal às relações de nutrição e desnutrição entre o sistema nervoso e o corpo, a cuja existência ele preside, estendendo e distribuindo a toda a parte as reservas locais. Não vejamos na União uma posição isolada no centro, mas o resultante das fôrças associadas disseminando-se equilibradamente até às extremidades (tp. OS, II, 22).[696]
Geraldo Ataliba, por seu turno, afirma que “No Brasil os princípios mais importantes são os da federação[697] e da república[698]. Por isso, exercem função capitular da mais transcendental importância, determinando inclusive como se deve interpretar os demais, cuja exegese e aplicação jamais poderão ensejar menoscabo ou detrimento para a força, eficácia e extensão dos primeiros [...].”[699]
Diga-se de passagem, que o Supremo Tribunal Federal assegurou a aplicação do princípio federativo aos municípios brasileiros, na qualidade de verdadeiros entes federados e dotados de autonomia[700] [701], quando concedeu Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade 926-DF, que tinha por objeto o pedido de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 3/93 e Lei Complementar 77/93, que criou o Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira (IPMF), na parte que exigia o referido imposto dos entes federados (Estados-membros e municípios).[702] [703] Em sintonia com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, Rafael Munhoz de Mello afirma que “[...] a doutrina mais autorizada do direito constitucional pátria defende a posição do Município como ente federativo, mesmo que não haja qualquer participação municipal na formação da vontade nacional – e tampouco na estadual.”[704] (grifos nossos)
No plano do direito interno brasileiro, a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios[705] [706], todos autônomos[707] nos termos da Constituição da República[708] (ex vi do caput, do artigo 18)[709]. Nesse sentido, a Constituição da República atribui, originariamente, as competências[710] para cada entidade federada, sejam as legislativas, administrativas ou tributárias. Essa repartição constitucional de competências é um dos pontos da própria noção de Estado federal[711] [712].
Para Celso Vedana “Os mais importantes princípios a serem observados para a harmonia interna na relação dos entes federados (os Municípios e os estados-membros) com o poder central, talvez estejam alicerçados numa correta e bem articulada definição constitucional das competências.”[713] Interessa, para o deslinde desse trabalho, somente as competências tributárias[714] [715] [716]. Destarte, o sistema tributário nacional está disposto no título VI da Constituição da República (- Da Tributação e do Orçamento), capítulo I – Do sistema tributário nacional, - que consta das seguintes seções (tabela 1 – anexo I): Dos princípios gerais (arts. 145-149); Das limitações do poder de tributar (arts. 150-152); Dos impostos da União (arts. 153-154); Dos impostos dos Estados e do Distrito Federal (art. 155); Dos impostos dos municípios (art. 156); e Da repartição das receitas tributárias (arts. 157-162).[717]
Segundo o Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal, “A Constituição da República, ao estruturar o sistema tributário nacional, formulou regras de competência destinadas a viabilizar, no plano da organização federativa[718] do Estado brasileiro, o exercício, pelas diversas pessoas políticas, das atribuições que lhes foram conferidas, privativamente, em matéria de tributação:”[719] Prossegue o Ministro Celso de Mello:
Isso significa, portanto, segundo o magistério da doutrina (Roque Antonio Carraza, ‘Curso de Direito Constitucional Tributário’, p. 308/310, item n. 28, 11a ed., 1998, Malheiros; Márcio Severo Marques, ‘Classificação Constitucional dos Tributos’, p. 93/94, item n. 5.2, 2000, Max Limonad; Hugo de Brito Machado, ‘Curso de Direito Tributário’, p. 25/26, item n. 3, 13a ed., 1998, Malheiros; Paulo de Barros Carvalho, ‘Curso de Direito Tributário’, p. 139/140, item n. 1, 9a ed., 1997, Saraiva; Zelmo Denari, ‘Curso de Direito Tributário’, p. 24, item n. 2, 4a ed., 1994, Forense, v.g.), que o ordenamento constitucional, em verdadeira repartição normativa das competências tributárias[720], conferiu, às pessoas, políticas, a faculdade de instituir tributos incluídos em suas respectivas esferas de atribuições legislativas.
Embora a Constituição não institua tributos, como enfatizado no magistério de eminentes autores (Roque Antonio Carraza, ‘Curso de Direito Constitucional Tributário’, p. 308/310, item n. 2.8, 11a ed., 1998, Malheiros; Celso Ribeiro Bastos, ‘Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário’, p. 123/124, 1991, Saraiva; Luciano Amaro, ‘Direito Tributário Brasileiro’, p. 97/98, item n. 4, 1994, Saraiva; Sacha Calmon Navarro Coelho, ‘Curso de Direito Tributário Brasileiro’, p. 68, item n. 2.6, 1999, Forense, v.g.), cabe reconhecer, no entanto, que as normas constitucionais que definem as regras de competência impositiva desempenham papel fundamental em tema de tributação[721], ‘porque veiculam comandos dirigidos ao produtor das normas jurídicas de tributação (normas de comportamento), para efeito de explicitar-lhe o procedimento a ser observado e o próprio conteúdo material do produto a ser legislado’ (Márcio Severo Marques, ‘Classificação Constitucional dos Tributos’, p. 94, item n. 5.2, 2000, Max Limonad.[722] [723]
Para o Ministro Celso de Mello “[...] as normas constitucionais que definem regras de competência impositiva [...], qualificam-se como verdadeiras matrizes determinantes que conformam, juridicamente, em matéria tributária, a atividade normativa do legislador comum.”[724] [725]
O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 138.284-8-CE, Pleno, Ministro Carlos Velloso, definiu as diversas espécies tributárias[726] existentes no sistema tributário nacional:
As diversas espécies tributárias, determinadas pela hipótese de incidência ou pelo fato gerador da respectiva obrigação (CTN, art. 4º), são as seguintes: a) os impostos (CF, arts. 145, I, 153, 154, 155 e 156); b) as taxas (CF, art. 145, II); c) as contribuições, que podem ser assim classificadas: c.1. de melhoria (CF, art. 145, III); c.2. parafiscais (CF. art. 149), que são: c.2.1. sociais: c.2.1.1. de seguridade social (CF. art. 195, I, II e III); c.2.1.2. outras de seguridade social (CF. art. 195, § 4º); e c.2.1.3. sociais gerais (o FGTS, o salário-educação, CF. art. 212, § 5º, contribuições para o SESI, SENAI, SENAC, CF. art. 240); c.3. especiais: c.3.1. de intervenção no domínio econômico (CF. art. 149) e c.3.2. corporativas (CF. art. 149).[727] (grifos nossos)
Roque Antonio Carrazza ensina que “O estudo da competência tributária[728] leva-nos, naturalmente, ao estudo da competência para conceder isenções tributárias.”[729] José Souto Maior Borges explica que:
O poder de isentar apresenta certa simetria com o poder de tributar. Tal circunstância fornece a explicação do fato de que praticamente todos os problemas que convergem para a área do tributo podem ser estudados sob ângulo oposto: o da isenção. Assim como existem limitações constitucionais ao poder de tributar, há limites que não podem ser transpostos pelo poder de isentar, porquanto ambos não passam de verso e reverso da mesma medalha.[730]
O Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66) preceitua que a isenção exclui o crédito tributário (artigo 175, inciso I)[731]. A doutrina pátria critica severamente[732] o conceito legal de isenção[733]. Para fins desse trabalho, entende-se a categoria isenção como sendo uma hipótese de não-incidência tributária, legalmente qualificada.[734]
Embora também se reconheça a natureza dúplice da União[735], consoante entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal[736], ora atuando com autonomia[737] [738] na qualidade de pessoa jurídica de direito interno, ora atuando com soberania[739] na qualidade de pessoa jurídica de direito externo (ou internacional), concorda-se, somente em parte, com o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria em comento. Ou seja, somente no que tange aos Estados-membros, mas não se abona à conclusão no que se refere aos Municípios[740], salvo se houver concordância através de legislação local, sob pena de flagrante ofensa ao próprio princípio federativo. Ademais, entendimento contrário fragilizaria ainda mais os municípios[741], entidades federadas já tão combalidas, que apesar de possuírem inúmeras obrigações constitucionalmente previstas, notadamente em face de sua população (ex vi artigo 30 da Constituição da República), não conseguem obter, na maioria das vezes, receitas tributárias suficientes em razão do atual sistema constitucional tributário, especialmente pela centralização do Poder Central[742], materializado na União (como entidade de direito público interno)[743].
Melhor explicando.
Adota-se a premissa de que o município[744] é um ente federativo por força da Constituição da República Federativa do Brasil (ex vi dos artigos 1o, caput e 18, caput). Não se olvida, porém, as severas críticas doutrinárias[745] a respeito dessa opção do Poder Constituinte originário, bem como, por outro lado, seu pioneirismo nas Repúblicas constitucionalizadas[746] [747].
Apesar dos Estados-membros e o Distrito Federal não possuírem soberania, mas somente autonomia, não é verdadeira a assertiva de que não possam participar ativamente do processo de incorporação dos tratados internacionais no direito interno brasileiro, pois possuem representantes no Congresso Nacional, quais sejam, os Senadores[748], consoante expressa disposição constitucional (ex vi do art. 46, caput e § 2o da Constituição da República). O Congresso Nacional é composto do Senado Federal e da Câmara dos Deputados (ex vi do artigo 44, caput, da Constituição da República). Como já dito alhures, é da competência do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (ex vi do artigo 49, inciso I, da Constituição da República). Incluem-se, nesse conceito, os tratados Internacionais que envolvam matéria tributária.
E nem se diga que no âmbito do direito internacional não se leva em consideração normas constitucionais dos Estados soberanos (no caso a necessidade de aprovação do Congresso Nacional – ex vi do artigo 49, inciso I[749], da Constituição da República), pois com base no artigo 46, itens 1 e 2, da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados de 1969, é perfeitamente cabível, em casos excepcionais, alegar-se violação das normas constitucionais que dispõem sobre competência para aderir, validamente, aos tratados internacionais:
Seção II
Nulidade de tratados
Artigo 46
Disposições de Direito Interno sobre Competência para Concluir Tratados
1. Um Estado não pode invocar o fato de seu consentimento em obrigar-se por um tratado ter sido manifestado em violação de uma disposição de seu direito interno sobre competência para concluir tratados, como causa de nulidade de seu consentimento, a não ser que essa violação seja manifesta e diga respeito a uma regra de seu direito interno de importância fundamental.
2. Uma violação é manifesta se forma objetivamente evidente para qualquer Estado que proceda, na matéria, na conformidade da prática formal e de boa-fé.[750] (grifos nossos)
Apesar de controvertido o entendimento do que se pode entender por uma regra de importância fundamental, adota-se, para esse trabalho, o entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal de que, na República Federativa do Brasil, a Constituição da República se caracteriza como norma fundamental[751] [752] [753]. Denote-se, ainda, que o próprio princípio do pacta sunt servanda foi excepcionado pelo preceito contido no artigo 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados:
Artigo 27
Direito Interno e Observância de Tratados
Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o descumprimento de um tratado. Esta regra não prejudica o art. 46. (grifos nossos)[754]
Já o tratamento dispensado aos municípios[755] [756] sobre o tema pelo Supremo Tribunal Federal, em que pese respeitável entendimento em contrário, não pode ser o mesmo dispensado aos Estados-membros e ao Distrito Federal, por se tratar de situações flagrantemente díspares. Em razão da República Federativa do Brasil ter adotado uma espécie de federalismo peculiar, quiçá único, sua interpretação também deve corresponder a essa realidade[757].
Os municípios[758], ao contrário dos Estados-membros e do Distrito Federal, não têm qualquer ingerência institucional no que tange à incorporação de tratados internacionais no direito interno brasileiro, já que a Constituição da República não lhes atribuiu qualquer representação no âmbito do Congresso Nacional[759]. Não se desconhece a crítica doutrinária no sentido de que o Senado não tem mais um papel preponderante dentro do modelo federativo, representando, atualmente, ao lado da Câmara dos Deputados, somente a vontade do eleitorado, deixando, assim, de representar efetivamente os Estados-membros.[760] [761] [762]
Na verdade o Senado Federal[763] possui somente representantes dos Estados-membros e do Distrito Federal (ex vi do artigo 46 da Constituição da República), já a Câmara dos Deputados[764] compõe-se de representantes do povo, e não dos entes federados (ex vi do artigo 45 da Constituição da República). Tal visão hermenêutica é imposta em razão de uma interpretação sistemática[765] das normas constitucionais que dão sustentação ao princípio federativo adotado no Brasil[766]. Nem se alegue que a Emenda Constitucional 42, de 19.12.2003, que acrescentou o inciso XV[767], do art. 52 (competência do Senado Federal), alterou o sistema de representação dos municípios na federação brasileira, pois se trata de uma mera outorga de um poder-dever de efetuar avaliação periódica do sistema tributário nacional. Do mesmo modo não altera o entendimento acima exarado o disposto nos incisos V[768], VI[769], VII[770], IX, todos do artigo 52, da Constituição da República.[771]
Assim sendo, a fim de se haver equilíbrio[772] entre o princípio republicano[773] e o princípio federativo[774], defende-se que a União somente poderá isentar, através de tratados internacionais, tributos de competência dos Estados-membros e do Distrito Federal, e está impossibilitada de isentar, pela mesma via, os tributos municipais, já que somente os primeiros (Estados-membros e o Distrito Federal) possuem representação no Congresso Nacional, que compete, por sua vez, resolver, definitivamente, sobre tratados internacionais que envolvam matéria tributária, conforme expressa disposição constitucional (ex vi do artigo 49, inciso I, da Constituição da República).
Por fim, cabe transcrever, por sua incontestável atualidade, as palavras de Rui Barbosa, incansável defensor do federalismo e do regime republicano, que proclamava de forma veemente que “[...] há um regímen, ao qual eu não daria jamais o meu voto, porque esse é o mais tirânico e o mais desastroso dos regímens conhecidos: a república presidencial com a onipotência do Congresso; o arbítrio do Poder Executivo; apoiado na irresponsabilidade das maiorias políticas. [...].”[775]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As relações internacionais vêm, a cada dia, se intensificando mais entre os Estados soberanos, de modo a resultar, atualmente, uma multiplicação extraordinária dos tratados internacionais.
Os tratados internacionais em matéria tributária não se excluem dessa regra, ao revés, com o crescente direito da integração e a busca de uma harmonização tributária entre os Estados soberanos, a República Federativa do Brasil vem celebrando inúmeros tratados dessa espécie.
No plano do direito internacional os tratados devem ser cumpridos (princípio do pacta sunt servanda), sob pena de responsabilidade internacional do Estado. No entanto, o Supremo Tribunal Federal já declarou que o primado da Constituição da República, no sistema jurídico brasileiro, é oponível ao próprio princípio do pacta sunt servanda. Destarte, a responsabilidade internacional do Estado também pode ser ensejada por ato de seu Poder Judiciário.
O Supremo Tribunal Federal entende que o direito interno e o direito internacional são dois sistemas distintos de produção de normas, entendendo que é na Constituição da República - e não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas - que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao direito interno brasileiro.
O tratado internacional para poder ser executado no plano do direito interno brasileiro, segundo se depreende da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, deve ser aprovado pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo, e, ainda, ser promulgado mediante decreto presidencial. Não se concorda, porém, com a alegação da imprescindibilidade do decreto presidencial, por não haver fundamento constitucional para tanto.
Embora não se concordando com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal de se exigir o decreto presidencial para se poder dar executoriedade ao tratado internacional no plano do direito interno brasileiro, é extremamente recomendável, de qualquer forma, que o Presidente da República observe o instituto da vacância para que o tratado internacional entre em vigor no âmbito interno e externo concomitantemente.
O tratado internacional, após ser devidamente incorporado ao direito interno brasileiro, situa-se, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, no mesmo plano de validade, eficácia e de autoridade em que se posiciona a lei ordinária; havendo, entre ambos, mera relação de paridade normativa.
Apesar do Supremo Tribunal Federal entender que não há hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, já pacificou o entendimento de que os tratados internacionais celebrados pela República Federativa do Brasil não podem versar sobre matéria reservada à lei complementar. A fim de se poder conciliar o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal com os compromissos internacionais assumidos pela República Federativa do Brasil, propõe-se, no caso específico do tratado internacional versar sobre matéria afeta à lei complementar, a edição dessa espécie normativa (lei complementar) para o fim de incorporar os preceitos do referido tratado internacional ao direito brasileiro. É importante mencionar que para o direito internacional não importa o modo de integração da norma internacional ao direito interno, tendo como exemplo desse fato a Lei 8.617 de 04/01/1993 - DOU 05/01/1993, que dispõe sobre o mar territorial, a zona contígua, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental brasileiros.
No caso de haver alguma antinomia entre a Constituição da República e o tratado internacional, prevalece, segundo entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal, o texto constitucional, salvo, atualmente, os tratados sobre direitos humanos que observarem o quorum estabelecido no novel § 3º, do art. 5º, da Constituição da República (com redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004), pois serão equivalentes às emendas constitucionais. Não se concorda, porém, que a resolução dos conflitos entre tratado internacional e direito interno, sob o prisma da constitucionalidade, seja o mais indicado, especialmente quando se tratar do direito de integração (Mercosul, por exemplo). Propõe-se, desse modo, com base em ensinamentos de José Carlos Moreira Alves, que a resolução de tais conflitos deveria se pautar pelo prisma da competência, tal como ocorre atualmente no âmbito da União Européia, possibilitando, desta forma, a existência de dois ordenamentos jurídicos distintos, um interno, e o outro supranacional, cada qual, por sua vez, resolvendo as questões de sua exclusiva competência.
Quando se fala de conflito entre lei ordinária e tratado internacional, a solução, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, será a aplicação alternativa do critério cronológico (lex posterior derogat priori), ou, quando cabível, do critério da especialidade. No caso específico do tratado internacional em matéria tributária, segundo afirmou, em uma conferência, o Ministro José Carlos Moreira Alves do Supremo Tribunal Federal, até o presente momento não há notícia de que tenha havido uma discussão específica no Supremo Tribunal Federal, no sentido de saber se pode uma lei complementar (no caso o art. 98 do CTN) estabelecer uma superioridade entre leis ordinárias. No entanto, o Supremo Tribunal Federal já atribuiu, mesmo que incidentalmente, interpretação ao art. 98 do CTN conforme a constituição, no sentido de que somente seria aplicável aos chamados tratados-contratos e não aos tratados-leis ou tratados-normativos. Tal entendimento tem origem no recurso extraordinário 80.004-SE, datado de 1977, a partir do voto do Ministro Cunha Peixoto, que argumentou que os tratados previstos no art. 98 do CTN seriam títulos de direito subjetivo que devem ser respeitados pelas partes (tratados-contratos).
Esse entendimento, todavia, vem sendo fortemente criticado pela doutrina, pois a própria classificação entre tratados-leis e tratados-contratos, já foi abandonada no âmbito do direito internacional, posto que surgiu quando ainda se discutia se os tratados internacionais eram ou não fonte do direito internacional. Atualmente não há dúvida de que todo tratado internacional é fonte do direito internacional, uma vez que estabelece normas de conduta, sem contar que consta expressamente entre as fontes formais do direito internacional, conforme se depreende da leitura do art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.
Do mesmo modo que o Supremo Tribunal Federal diverge sobre o sentido e o alcance do art. 98 do CTN, a doutrina pátria segue o mesmo caminho.
As correntes doutrinárias que se formaram a partir do preceito contido no art. 98 do CTN são várias, e podem ser classificadas, em síntese, através dos seguintes enunciados: a) superioridade do tratado internacional em matéria tributária em face da lei ordinária; b) prevalência dos tratados em matéria tributária em face da lei ordinária em razão de sua especialidade, corrente esta a qual nos filiamos (o tratado seria uma norma especial que afastaria – e não revogaria – a legislação interna, enquanto vigorasse a norma interna); c) o tratado internacional em matéria tributária, quando se tratar de tratado-contrato (entendido aqueles que criam situações jurídicas subjetivas), revogaria ou modificaria a legislação tributária interna; d) prevalência dos tratados internacionais sobre a legislação interna, não com base na questão da hierarquia entre lei e tratado internacional (art. 98 do CTN), mas sim por intermédio dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 1º); e) o art. 98 do CTN não pode tratar de questão de competência, matéria de exclusiva reserva constitucional; f) o art. 98 do CTN é um preceito meramente declaratório, não podendo, desta forma, lhe imputar qualquer inconstitucionalidade; g) o art. 98 do CTN é inconstitucional ou não foi recepcionado; h) o art. 98 do CTN não é inconstitucional por ser compatível com o art. 146, III, da Constituição da República, que visa estabelecer normas gerais em matéria tributária; i) o preceito no art. 98 do CTN é absolutamente inútil.
Ultrapassada a questão de se saber qual é a posição hierárquica do tratado internacional no direito interno brasileiro, seja sob o ângulo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, seja sob o aspecto doutrinário, passa-se a analisar o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a isenção heterônoma por intermédio de tratado internacional, especialmente após o advento da atual Constituição da República.
Assim sendo, a Constituição da República Federativa do Brasil, inovando, preceitua em seu art. 151, inciso III, que “É vedado à União instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.” O Supremo Tribunal Federal, apesar de ainda não ter formado jurisprudência sobre o tema (já que se adota para essa categoria o significado de decisões reiteradas e uniformes sobre um determinado assunto), vem se inclinando pela possibilidade da isenção de tributos estaduais e municipais através de tratados internacionais, sob o principal argumento de que a “vedação constitucional em causa incide sobre a União Federal, enquanto pessoa jurídica de direito público interno, responsável, nessa específica condição, pela instauração de uma ordem normativa autônoma meramente parcial, inconfundível com a posição institucional de soberania do Estado Federal brasileiro, que ostenta a qualidade de sujeito de direito internacional público e que constitui, no plano da organização política, a expressão mesma de uma comunidade jurídica global, investida de poder de gerar uma ordem normativa de dimensão nacional, essencialmente diversa, em autoridade, eficácia e aplicabilidade, daquela que se consubstancia nas leis e atos de caráter meramente federal” (Ministro Celso de Mello).
Ressalte-se que existe uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 175, de 1995), apresentada pelo Presidente da República, atribuindo a seguinte redação ao inciso III do art. 151, da Constituição República: ‘Art. 151 [...] III – instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, salvo quando prevista em tratado, convenção ou ato internacional do qual o Brasil seja signatário.” (grifos nossos) Até o presente momento a referida Proposta de Emenda Constitucional (PEC 175) não foi aprovada pelo Congresso Nacional.
A doutrina pátria, em virtude da importância do tema, vem divergindo bastante sobre a isenção heterônoma por via de tratado internacional, podendo, por questão metodológica, ser classificada em duas grandes correntes e uma posição intermediária. Saliente-se que os fundamentos doutrinários são bastante variados, de modo que a classificação é realizada basicamente por seu resultado (aceitação ou não da isenção heterônoma através de tratados internacionais).
A primeira corrente doutrinária entende ser impossível, juridicamente, a instituição de isenções heterônomas por via de tratado internacional. Alguns adeptos dessa corrente entendem ser viável a referida isenção somente nas hipóteses taxativas da Constituição da República (ex vi do art. 155, § 2º, XII, “e”; e art. 156, § 3º, inciso II), e, ainda, por intermédio de lei complementar.
A segunda corrente doutrinária, que vem sendo acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, entende ser perfeitamente cabível a possibilidade da União isentar tributos estaduais e municipais por intermédio de tratado internacional, sob fundamento de que, entre outros, na ordem jurídica internacional, a República Federativa do Brasil é representada pela União, não como pessoa jurídica de direito público interno, mas como pessoa jurídica de direito público externo, não encontrando, assim, limitação no art. 151, inciso III, da Constituição da República.
A terceira posição, considerada intermediária, embora também reconheça a natureza dúplice da União, consoante entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal, ora atuando com autonomia na qualidade de pessoa jurídica de direito interno, ora atuando com soberania na qualidade de pessoa jurídica de direito externo, aceita, somente em parte, o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria em comento. Ou seja, somente no que tange aos Estados-membros, mas não em relação aos Municípios, sob pena de se fragilizar ainda mais essas entidades federadas, já tão combalidas, que apesar de possuírem inúmeras obrigações constitucionalmente previstas, notadamente em face de sua população (art. 30 da Constituição da República), não conseguem obter, na maioria das vezes, receitas tributárias suficientes em razão do atual sistema constitucional tributário, especialmente pela centralização do Poder Central, materializado na União (como entidade de direito público interno).
Melhor explicando.
Apesar dos Estados-membros e o Distrito Federal não possuírem soberania, mas somente autonomia, não é verdadeira a assertiva de que não possam participar ativamente do processo de incorporação dos tratados internacionais no direito interno brasileiro, pois possuem representantes no Congresso Nacional, quais sejam, os Senadores, consoante expressa disposição constitucional (art. 46, caput e § 2º da Constituição da República). O Congresso Nacional é composto do Senado Federal e da Câmara dos Deputados (art. 44, caput, da Constituição da República). É da competência do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (art. 49, inciso I, da Constituição da República). Incluem-se, nesse conceito, os tratados Internacionais que envolvam matéria tributária.
Não é verdadeira a assertiva de que no âmbito do direito internacional não se leva em consideração, em hipótese alguma, normas constitucionais dos Estados soberanos (no caso a necessidade de aprovação do Congresso Nacional – ex vi do art. 49, inciso I, da Constituição da República), pois com base no art. 46, itens 1 e 2, da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados de 1969, é perfeitamente cabível, em casos excepcionais, alegar-se violação das normas constitucionais que dispõem sobre competência para aderir, validamente, aos tratados internacionais (art. 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969).
Já o tratamento dispensado aos Municípios sobre o tema pelo Supremo Tribunal Federal, em que pese respeitável entendimento em contrário, não pode ser o mesmo dispensado aos Estados-membros e ao Distrito Federal, por se tratar de situações flagrantemente díspares. Em razão da República Federativa do Brasil ter adotado uma espécie de federalismo peculiar, quiçá único, sua interpretação também deve corresponder a essa realidade.
Os Municípios, ao contrário dos Estados-membros e do Distrito Federal, não têm qualquer ingerência institucional no que tange à incorporação de tratados internacionais no direito interno brasileiro, já que a Constituição da República não lhes atribuiu qualquer representação no âmbito do Congresso Nacional. Não se desconhece a crítica doutrinária no sentido de que o Senado não tem mais um papel preponderante dentro do modelo federativo, representando, atualmente, ao lado da Câmara dos Deputados, somente a vontade do eleitorado, deixando, assim, de representar efetivamente os Estados-membros.
Na verdade o Senado Federal possui somente representantes dos Estados-membros e do Distrito Federal (art. 46 da Constituição da República), já a Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, e não dos entes federados (art. 45 da Constituição da República). Nem se alegue que a Emenda Constitucional 42, de 19.12.2003, que acrescentou o inciso XV, do art. 52 (competência do Senado Federal), alterou o sistema de representação dos municípios na federação brasileira, pois se trata de uma mera outorga de um poder-dever de efetuar avaliação periódica do sistema tributário nacional. Do mesmo modo não altera o entendimento acima exarado o disposto nos incisos V, VI , VII , IX, todos do art. 52, da Constituição da República.
Assim sendo, a fim de se preservar o equilíbrio entre o princípio republicano e o princípio federativo, essa posição doutrinária defende a tese de que a União somente poderá isentar, através de tratados internacionais, tributos de competência dos Estados-membros e do Distrito Federal, e está impossibilitada de isentar, pela mesma via, os tributos municipais, já que somente os primeiros (Estados-membros e o Distrito Federal) possuem representação no Congresso Nacional, que compete, por sua vez, resolver, definitivamente, sobre tratados internacionais que envolvam matéria tributária, conforme expressa disposição constitucional.
Não é demais lembrar que é dever de todos manter a autoridade e supremacia da Constituição da República com o zelo, a intransigência e a devoção que urge consagrar àquela que representa a mais alta regra de organização jurídica do País[776], mesmo que contrarie entendimento manifestado pelo Órgão do Poder Judiciário que tem por missão precípua a sua guarda (ex vi do art. 102, caput, da Constituição da República).
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Claudinei Moser
Advogado da União. Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau - FURB. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Regional de Blumenau - FURB. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL.Código da publicação: 1070
Como citar o texto:
MOSER, Claudinei..Isenção Heterônoma por via de tratado internacional: uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (6ª Parte). Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 168. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-internacional/1070/isencao-heteronoma-via-tratado-internacional-analise-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal-6-parte-. Acesso em 3 mar. 2006.
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