Aspectos históricos e jurídicos da jurisdição penal internacional

RESUMO

 

O artigo pretende abordar os principais aspectos da jurisdição penal internacional, levando-se em conta a estrutura do Tribunal Penal Internacional e seus desdobramentos. Também pretende-se abordar duas jurisdições penais ad hoc: o Tribunal Internacional para Ruanda e o Tribunal Internacional para a antiga Iugoslávia. Ao final do artigo, oferta-se um apontamento crítico sobre o direito penal internacional e a violação de direitos humanos. A finalidade do artigo é demonstrar a importância do Tribunal Penal Internacional na atualidade, instituição supranacional que tem por “âncora jurídica” o Estatuto de Roma. Busca-se, igualmente, demonstrar o reconhecimento da sociedade internacional quanto à necessidade da proteção dos direitos humanos, posto que os delitos contra a humanidade não podem ficar impunes. A pesquisa apresenta como resultado a necessidade da cooperação internacional entre os países, principalmente nas prisões e investigações dos envolvidos nos crimes contra a humanidade. Daí a importância da atividade operacional da Polícia Federal na cooperação entre as Polícias de outros Estados que ratificaram o Estatuto de Roma. Adotou-se para a realização do presente artigo o método histórico, o crítico e o comparativo-analítico.

Palavras-chave

Tribunal Penal Internacional. Direitos Humanos. Crimes contra a humanidade.

1. O Tribunal Internacional para a antiga Iugoslávia.

No início da década de 90 os conflitos étnicos abalaram o cenário da antiga Iugoslávia. O massacre de seres humanos, as tentativas de depuração étnica e os crimes de guerra hostilizaram a região. Uma onda de violação dos direitos humanos produziu grande repercussão internacional nesse momento histórico.

A ONU tomou uma posição diante do cenário de hostilidades, preocupando-se com a ameaça da paz de da segurança internacional. A Resolução 808 de 1993, editada pelo Conselho de Segurança, baseava-se no art. 39 da ONU para fins de preparar as condições da instalação de uma jurisdição penal internacional. No intento de julgar e condenar os agentes que participaram do massacre, o Conselho de Segurança decidiu criar um Tribunal Penal Internacional no caso de violações do direito penal internacional a partir de 1º de janeiro de 1991. Após a solicitação encaminhada ao Secretário Geral da ONU, este em seu ofício, propôs ao Conselho de Segurança, a adoção de uma resolução no contexto do capítulo VII da Carta da ONU, que trata sobre atos de agressão e de ruptura da paz.

“A resolução 827 de 1993 aprovou o Estatuto do Tribunal, criando as condições para o seu funcionamento. O Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia surge, assim, como órgão subsidiário do Conselho de Segurança, informado pelo respeito ao devido processo legal e aos princípios da objetividade e da imparcialidade. O Tribunal recebeu competência para julgar os acusados de infringirem o direito internacional humanitário, em particular, as quatro Convenções de Genebra de 1949, a quarta Convenção de Haia de 1907 e seu regulamento anexo, a Convenção sobre Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio e os princípios cristalizados nos julgamentos de Nuremberg. O Estatuto previu a supremacia do Tribunal em relação à cortes nacionais e consagrou o princípio do non bis in idem.”. (JÚNIOR, Alberto do Amaral, 2008, p. 257).

Esta Corte foi composta por quatro câmaras, sendo três de primeira instância e uma de recurso. A regra era a seguinte: composição de 16 (dezesseis) juízes independentes, não podendo ser mais de um nacional do mesmo Estado, distribuídos por três em cada câmara de primeira instância e sete na câmara de recursos. Também composta por um procurador e um secretário, comum às câmaras e ao procurador.

Além disso, o estatuto do tribunal estabeleceu a competência da corte para conhecer quatro categorias de crimes, quais sejam: infrações graves às Convenções de Genebra de 1949; violações às leis e costumes de guerra; genocídio e crimes contra a humanidade.

Desde que começou a funcionar, 160 (cento e sessenta) indivíduos foram indiciados, e mais de 60 (sessenta) foram julgados. Entre os acusados destaca-se o ex-dirigente sérvio Slobodan Milosevic, indiciado por crimes contra a humanidade e genocídio. Na primeira vez em que foi levado à sala de audiências, Milosevic debateu contra o “falso tribunal” e se recusou a aceitar advogados. O início do julgamento ocorreu em 2002, porém, em 2006, Milosevic morreu em Haia sem receber a sentença referente às condutas pelas quais fora acusado e pela primeira vez na história um chefe de Estado foi a julgamento por crimes contra o Direito Humanitário Internacional.

Quanto à legalidade do tribunal lecionam Renata Mantovani de Lima e Marina Martins da Costa Brina:

“O Tribunal Penal Internacional para a ex Iugoslávia, considerou-se o primeiro tribunal internacional verdadeiramente instalado pelas Nações Unidas para determinar a criminalidade penal individual dentro do direito humanitário, enquanto os Tribunais de Tóquio e Nuremberg eram considerados multilaterais em natureza, representando apenas parte da comunidade mundial”. (LIMA; BRINA, 2009. p.35)

Contudo, na verdade, o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia é ad hoc, pois ele foi criado para o julgamento dos envolvidos na região, isto é, sua criação foi destinada para regular a jurisdição penal de um caso específico, de modo que não se deve confundir este com o Tribunal Penal Internacional permanente, instituído pelo Estatuto de Roma.

Convém registrar, ainda, que o território da ex-Iugoslávia, historicamente, fez fronteiras com alguns dos mais poderosos impérios e culturas do globo (tais como Roma e Império Turco Otomano). Nessa região sempre conviveram povos de diferentes formações étnicas e religiosas em conflito permanente. Com o término da Primeira Guerra Mundial, formou-se a Iugoslávia (país dos eslavos do sul, tradução literal) com a junção do Reino dos Sérvios, Croatas e Esloveno.

Na Segunda Guerra Mundial, com a expulsão das tropas germânicas, pelo exército comandado pelo Marechal Josip Broz Tito, deu-se lugar a um país composto por seis repúblicas: Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia e Montenegro. A despeito dessas diferenças, a Iugoslávia, permaneceu unificada durante várias décadas, sob a liderança do marechal Tito. Em 1980, porém, com a morte do líder, estabeleceu-se um sistema de rodízio no governo, pelo qual a presidência do país passou a ser chefiada, a cada ano, pelo representante de uma das repúblicas. A crise econômica e o fim dos regimes comunistas no Leste Europeu desencadearem os antigos ódios raciais de maneira intensa. A primeira etapa do conflito ocorreu na Eslovênia, quando esta se proclamou independente da Iugoslávia; a segunda fase foi relativa à Croácia e o terceiro momento da guerra deu-se na Bósnia-Herzegovina, e, por fim houve o período de Kosovo (BRENER,1993, p. 68). Em Kosovo, diante da omissão da ONU, a OTAN mobilizou suas forças para fazer a intervenção, com base no discurso dos direitos humanos. De modo que as violações aos direitos humanos e às normas de Direito Humanitário foram acontecimentos de alta repercussão. A sociedade internacional voltou a testemunhar pessoas sendo exterminadas por razões étnicas. Genocídio, limpeza étnica, agressões direcionadas contra as populações civis não-combatentes ocorreram em meio a um mundo integrado pelas telecomunicações e pelo comércio internacional. (GONÇALVES, 2001, p. 35).

2. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda

Ruanda é um país da África, composto por duas etnias principais, quais sejam os hutus (80%) e os tutsis (20%), a relação entre os membros das duas etnias nunca foi amistosa, e, em 1994, após a morte do presidente hutu decorrente da queda de seu avião, desencadeou-se uma brutal guerra civil naquele país, em que, a maioria étnica hutu, liderada por uma elite radical que controlava o governo, acusou os tutsi de atentado e começou uma campanha genocida para exterminar a minoria tutsi.

O genocídio ruandês foi a mais rápida e eficiente profusão de assassinatos do século XX. Em cem dias, cerca de 500 mil tutsis e hutus politicamente moderados foram mortos. Em julho daquele mesmo ano, a Frente Patriótica Ruandense, grupo de resistência composto por tutsis, chega ao poder, com promessas de buscar a justiça como parte de reconciliação entre as etnias (POWER, 2004, p. 120).

“Os conflitos em Ruanda, em 1994, entre as etnias hutu e tutsi, causaram cerca de 500 mil mortos e grande número de refugiados, que procuraram abrigo nos países vizinhos. Preocupado com as atrocidades perpetradas, o Conselho de Segurança criou o Tribunal Penal Internacional para Ruanda por meio da resolução 955, de 8 de novembro de 1994. (...) Estabeleceu-se a responsabilidade dos superiores em relação aos atos praticados pelos subordinados quando estes sabiam ou tinham condições de saber que tais atos seriam praticados ou não tomaram as medidas necessárias para evitá-los. A prisão, inclusive a prisão perpétua, é a pena prevista para a punição dos delitos”. (JÚNIOR, Alberto do Amaral, 2008, p. 258)

Assim o Conselho de Segurança, com base nos relatórios da Comissão de Direitos Humanos e em solicitação do próprio governo ruandense, em 08 de novembro de 1994, criou o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, ad hoc, através da respectiva resolução.

A sede deste tribunal está localizada em Arusha, na Tanzânia e sua competência abarcava genocídio, crimes contra a humanidade, violação à Convenção de genebra de 1949, e do Segundo Protocolo Adicional. Limitava-se, entretanto, aos atos cometidos no território de Ruanda ou contra cidadãos desse país responsáveis por tais violações em países vizinhos e restringia-se, aos atos perpetrados entre o 1º dia de janeiro e 31 de dezembro de 1994. Este tribunal é composto por quatro câmaras, sendo três de primeira instância e uma de apelação. As câmaras são compostas por 16 (dezesseis) juízes independentes, não podendo ser mais de um nacional do mesmo Estado, distribuídos por três em cada câmara de primeira instância e sete na câmara de apelação.

Desde a sua criação, o tribunal já prolatou 37 (trinta e sete) sentenças, das quais apenas seis foram absolvições. Destaca-se a condenação à prisão perpétua em 2008 dos três principais líderes da etnia hutu.

Pode-se afirmar que a grande contribuição trazida por este tribunal foi a conceituação de violência sexual como sendo um crime contra a humanidade.

Os trabalhos investigativos desta corte deveriam se encerrar até o final de 2004, e suas atividades de julgamento até 2008 e todos os trabalhos deveriam ser conclusos até o fim de 2010, porém as nações unidas pensam em rever esses prazos.

Apesar de sua importância para o desenvolvimento do direito humanitário internacional, a criação de tribunais ad hoc, levantou alguns questionamentos por estar vinculado ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, pois, supôs-se que este nunca criaria tribunais com competência para julgar e punir eventuais crimes cometidos por nacionais de seus Estados-membros com assento permanente. Ademais, o Conselho de Segurança possui poder de veto quanto a criação das referidas cortes, sendo assim, este órgão integrante da estrutura da ONU, ao instituir tribunais em determinadas circunstâncias, teria introduzido um elemento de arbitrariedade ao sistema das relações internacionais, no plano jurisdicional.

A demanda por justiça, mais especificamente a punição dos responsáveis pelas atrocidades cometidas durante os grandes conflitos mundiais e internos, não foi atendida em sua plenitude pelos tribunais ad hoc, porém a experiência fornecida por estas cortes, bem como os questionamentos levantados, contribuiu para acelerar os trabalhos de codificação e desenvolvimento do Direito Internacional Penal, e assim, impulsionou a criação de uma jurisdição penal internacional de caráter permanente.

3. O Estatuto de Roma e o Tribunal Penal Internacional permanente

A ideia de se criar um Tribunal Penal Permanente nasceu da proposta do chefe de Estado de Trinidade & Tobago, um pequeno país caribenho. A proposta foi sustentada nas deliberações feitas em Assembléia da ONU, nos anos 90. A partir daí, reconhecendo as críticas aos tribunais ad hoc, no que tange ao problema da legitimidade, a sociedade internacional decidiu por um fim à impunidade dos autores desses delitos, bem como prevenir que novas crueldades não ocorram: o melhor caminho seria o Tribunal Penal Internacional de caráter permanente. De modo que em 1998 foi instituído o Tribunal Penal Internacional, com sede na cidade de Haia (Holanda). O diploma jurídico internacional é chamado de Estatuto de Roma, cuja instituição é permanente, com caráter complementar às jurisdições penais nacionais e projetada para exercer a jurisdição penal contra os infratores dos direitos humanos, a exemplo dos crimes de agressão, crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade, todos previstos no respectivo Estatuto.

Na visão de Scarance Fernandes:

“A criação de um Tribunal Internacional representou um passo importante no trânsito do direito interno para o direito internacional. Não foi fácil a sua criação, ante a divergência entre os países a respeito da maneira como ele seria regido, em virtude da diversidade de ordenamentos jurídicos no mundo, mas, a final, foi possível construir um corpo de normas que representou uma síntese das legislações nacionais, conhecido como Estatuto de Roma. O referido Estatuto contém normas de direito penal e de direito processual penal e, em relação a estas, regras que: a) julgam todas aas fases de uma persecução criminal (investigação, processo e julgamento); b) definem a competência do Tribunal e de seus órgãos; c) regulam a execução das penas” (FERNANDES, A. Scarance, 2008, p. 173)

O Estatuto de Roma foi aprovado em 17 julho de 1998, na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, por 120 (cento e vinte) Estados, contra apenas 7 (sete) votos contrários e 21 abstenções. As 60 (sessenta) ratificações exigidas para a entrada em vigor do Estatuto foram atingidas no dia 11 de abril de 2002, fazendo com que o mesmo entrasse em vigor em 1 de julho de 2002, data correspondente ao primeiro dia do mês seguinte ao termo do período de 60 (sessenta) dias após a data do depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de adesão junto do Secretário-Geral das Nações Unidas, sendo assim, a partir daquela data a Corte Penal Internacional passou a funcionar (CHOUKR, 2000, P. 56).

De modo que o Tribunal tem por objetivo alcançar o maior número possível de países. Para tanto é preciso que o Estado nacional se submeta ao Tribunal, como é o caso da República Federativa do Brasil que autoriza, ao final do artigo 5º Constituição Federal, que seus nacionais sejam julgados por esta Corte (art. 5º § 4º - O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão).

Contudo, em razão do princípio da complementaridade, não se pode interferir diretamente nos sistemas judiciais nacionais, pois o consentimento é necessário, sob pena de se ameaçar a legitimidade do Tribunal.

Ademais, o TPI é uma organização internacional independente e não faz parte do sistema das Nações Unidas, porém, mantém uma relação de cooperação com esta Organização.

Quanto à composição, 18 (dezoito) juízes participam dos trabalhos, sendo que estes têm que ter reconhecida competência em direito penal e processual penal, como também reconhecida competência em ramos pertinentes do direito internacional, tais como direito internacional humanitário e direito internacional dos direitos humanos. Além disso, devem também ter um excelente conhecimento em francês e inglês. São escolhidos entre os indivíduos dotados de reputação ilibada, imparcialidade e integridade. São eleitos para um mandato de 9 (nove) anos. O respectivo tribunal é composto pela Presidência e por três seções, sendo uma Seção de Apelação composta pelo presidente e quatro juízes, uma Seção de Primeira Instância e uma Seção de Questões Preliminares sendo que estas deverão ter o mínimo de seis juízes. A Procuradoria e a Secretaria também são órgãos previstos pelo Estatuto de Roma.

A Seção de Questões Preliminares adotará as medidas necessárias para assegurar a eficiência e a integridade dos procedimentos e, em particular, o direito de defesa, sendo assim, irá formular recomendações ou expedir determinações relativas aos procedimentos a serem seguidos, bem como determinar para que sejam registrados os procedimentos, nomear perito para prestar assistência, autorizar o advogado ou representante do detento a participar e representar os seus interesses de defesa e caso não tenha sido designado advogado irá nomear um defensor para que esse direito seja assegurado. Irá também adotar todas as medidas que sejam necessárias para coletar ou preservar provas, para proteger a intimidade das vítimas e testemunhas, bem como dos indivíduos detidos ou que tenham se apresentado em virtude de uma citação, como também, a requerimento do promotor expedirá mandados e tomará medidas necessárias à realização de uma investigação e adotará as medidas cautelares com vistas à apreensão de bens que, em particular, beneficie em última instância as vítimas.

A Seção de Primeira Instância velará para que o julgamento se realize com pleno respeito aos direitos do acusado e adotará medidas para a sua proteção, da vítima e testemunhas, e quando houver mais de um acusado indicará, conforme as circunstâncias se devem ser juntadas ou separadas as acusações, bem como irá requerer o comparecimento e inquirição de testemunhas e a produção de documentos e outras provas, solicitando, se necessário, a assistência dos Estados. Esta seção se certificará de que o acusado compreende a natureza das acusações e concederá a ele a oportunidade de se declarar culpado ou inocente e determinará o idioma ou idiomas que serão utilizados no julgamento.

A Seção de Recursos analisará os pedidos de revisão e de apelação, e se decidir que os procedimentos objeto de apelação foram injustos e que isso afetou a regularidade da sentença ou da pena.

A Procuradoria funcionará de forma independente como órgão autônomo do Tribunal, e estará encarregada de receber as denúncias e informações fundamentadas sobre crimes de jurisdição da Corte, de seu exame, da condução de investigações e da proposição da ação penal. Este órgão será chefiado pelo procurador que será auxiliado por um ou mais procuradores adjuntos todos eles terão que ser de diferentes nacionalidades e serão escolhidos através de votação secreta dos membros dos Estados-partes, para exercerem um mandato de 9 (nove) anos e não poderão ser reeleitos, os escolhidos deverão possuir extensa experiência prática de persecução e julgamento de causas penais além de conhecimento e domínio de pelo menos um dos idiomas de trabalho do tribunal. A Secretaria estará encarregada dos aspectos não judiciais da administração do Tribunal e de prestar-lhe serviços, esta será chefiada pelo secretário, auxiliado por secretário adjunto.

As despesas do Tribunal serão financiadas pelas contribuições dos Estados-partes e de fundos procedentes das Nações Unidas, mas, poderá também receber e utilizar contribuições voluntárias de governos, organizações internacionais, particulares, empresas e outras entidades.

A jurisdição do Tribunal Penal Internacional, através de ajuste especial, poderá ser exercida em território de qualquer outro Estado, mas convencionou-se que a sede do TPI ficará em Haia, embora não exista impedimento à sua mobilidade.

Ademais, a jurisdição do Tribunal se limitará aos crimes mais graves que preocupam a comunidade internacional, os chamados crimes de lesa-humanidade, quais sejam: Crime de Genocídio, Crimes Contra a Humanidade, Crimes de Guerra e Crime de Agressão, porém, estes só serão julgados se cometidos após a entrada em vigor do Estatuto de Roma, ou seja, 01 de julho de 2002.

Os casos poderão ser levados ao Tribunal por um Estado, pelo Procurador-Geral ou pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, este último remeterá à Procuradoria uma situação que aparente o cometimento de um dos delitos elencados acima, e a Corte por sua vez tentará acordo de cooperação com o Estado envolvido, e caso este não seja signatário do Estatuto, e se não obtiver êxito quanto à cooperação, o Tribunal remeterá a situação para as Nações Unidas que tomará as devidas providências.

O Crime de Genocídio se configura quando ocorrer a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, por qualquer um dos seguintes atos: matar membros do grupo, submetê-lo intencionalmente a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial, causar lesão grave a integridade física ou mental, adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

Uma das críticas elencadas a essa categoria de crime, foi a respeito da omissão quanto ao número de pessoas que devem ser mortas para que se configure a conduta típica.

“Em termos de fraqueza e ambigüidade, deixa ainda em aberto a questão perene que é a de saber quantas pessoas devem ser mortas para que tipifique o crime de genocídio? Para alguns é o maior defeito por omissão que se pode encontrar na lei penal, que clama sempre por um alto nível de precisão. De qualquer forma, a questão dos números parece ser o ponto de partida de uma premissa incorreta, a de haver pelo menos uma pessoa morta para que o crime de genocídio seja considerado como cometido”. (CHOUKR, 2000. p.199)

Quanto a isso, acrescenta Carlos Eduardo Adriano Japiassu:

“Tal questão acabou somente resolvida pelos Elementos do Crime, em que há expressa definição de que basta que sejam vítimas uma ou mais pessoas, desde que o agente tenha a intenção de destruir, no todo ou em parte, o grupo. Em síntese, no seio do Tribunal Penal Internacional, basta que o ato seja praticado contra um indivíduo desde que membro de grupo e haja o elemento subjetivo por parte do sujeito ativo, para que se configure a prática de genocídio. Genocídio é um crime que exige sempre dolo específico, pois não basta a intenção de matar, devendo estar presente também o propósito de aniquilar, total ou parcialmente o grupo”. (JAPIASSU, 2004. p. 232-233).

De toda maneira, a previsão do crime de genocídio pelo Tribunal Penal Internacional demonstra o repúdio da sociedade internacional a essa prática delitiva que ataca uma das características marcantes da condição humana que é a diversidade.

Os Crimes Contra a Humanidade ocorrem quando perpetrados no âmbito de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil, por quaisquer dos seguintes atos: homicídio; extermínio (imposição de condições de vida desumanas, tais como privação de acesso a alimento ou medicamento com o fim de destruir a população); redução à escravidão; prisão ou outra forma de privação grave de liberdade física que violem os Direitos Humanos; tortura (física ou mental); estupro, escravidão sexual; prostituição, gravidez ou esterilização forçada; perseguição contra grupo por ordem política, racial, nacional, étnica, cultural ou religiosa (por perseguição entende-se a negação voluntária e grave de direitos fundamentais, por motivos ligados à identidade do grupo); desaparecimento forçado (caso de pessoa presa por um Estado ou Organização Política que se recusa a revelar a ocorrência da privação da liberdade); crime de apartheid (prática de atos desumanos, cometidos no quadro de um regime institucionalizado de opressão sistemática ou de domínio de um grupo racial sobre outro ou outros, com o fim de manter esse regime) e outros atos desumanos análogos que causem grande sofrimento físico ou mental.

Convém registrar que os Crimes contra a humanidade podem ser cometidos tanto em tempo de guerra, como em tempo de paz, tanto em conflitos externos, como em conflitos internos, o que representa uma grande evolução desde o conceito utilizado em Nuremberg.

4. Apontamento crítico sobre o direito penal internacional e a violação de direitos humanos

A traumática experiência da segunda guerra mundial, o período de tensão durante a guerra fria, a guerra no Iraque, o projeto de enriquecimento de urânio no Irã, os conflitos em Israel e as ações militares da Coréia do Norte são acontecimentos recentes, de repercussão internacional, que nos impõem desafios de ordem ética. Em Habermas, existe um “desafio ético” (jacente numa modernidade ainda em construção), isto é, uma candente preocupação com a proposta de concretizar a solidariedade entre os povos pelo caminho da razão comunicativa, pois a razão prática está esgotada. Por isso, retoma a discussão do progresso da humanidade, mas a partir de uma razão comunicativa, não monológica, acreditando na possibilidade dos Direitos Humanos ser um vetor importante na busca pelo consenso internacional (a paz), na tentativa de unificar os povos, de apaziguar os conflitos internacionais e de justificar ações interventoras em Estados que violam os Direitos Humanos ou que sonegam o respeito às regras de Direito Internacional. Bestialitat und Humanitat: Ein Krieg na der Grenze zwischen Recht und Moral, trata-se de um artigo publicado pelo autor na revista Zeit (abril de 1999), ocasião em que discutiu sobre a política sérvia de violação dos direitos humanos, bem como sobre os crimes de guerra. Na Zeit, também justificou normativamente a intervenção da Otan. Também protestou na revista Der Spiegel (Caderno 32/1995, p. 34s.) e justificou a intervenção militar da Otan no marco da ONU – pela necessidade de providenciar a garantia das áreas de proteção da ONU. Defendeu a formação de um exército profissional, pois a intervenção não pode ser realizada por simples soldados em serviço militar obrigatório, necessário, pois, a existência de um exército especializado. A defesa de uma intervenção militar surgiu quando Habermas se deparou, em 1995, com um massacre efetivado em Srebenica. Tropas sérvias em meio à população civil local praticaram um massacre, enquanto a ONU assistia sem poder tomar partido, em estado de inércia. Disso, surgem algumas questões importantes, a saber: a) o Conselho de Segurança da ONU estava bloqueado; b) capaz de agir, apenas alguns Estados fragilmente controlados pela ONU estavam autorizados; c) somente a Otan poderia agir sob delegação dos EUA; c) A Otan pôde fundamentar suas decisões apenas em argumentos morais, não em regras e princípios de direito internacional; c) A Carta da ONU prevê intervenções na soberania dos Estados apenas e tão somente mediante aprovação do Conselho de Segurança; d) A Rússia e a China não estavam dispostas a aprovar; e) A Otan, ao contrário, era a favor de uma intervenção com base no discurso dos direitos humanos e sequer tocou em normas de direito internacional para justificar suas ações; f) Habermas interpretou a ação da Otan como “uma antecipação de uma situação cosmopolita futura”. (REESE-SCHÄFER, p. 120)

“Para Habermas, está claro que essa guerra se situa na fronteira entre direito e moral e que muitos juristas do direito internacional não pode aprová-la. Ele pensa, entretanto, dinamicamente, historicamente e moralmente, ou seja, sempre em vista do objetivo de uma condição cosmopolita e sob as premissas normativas da responsabilidade cosmopolita. Juristas de direito internacional que hoje (diferente de Grotius) estão habituados a argumentar com base no Estado legal, nesse caso, portanto, a partir da carta da ONU, geralmente reagem com muita relutância à semelhante justificação prospectiva orientada a uma possível condição futura, e a consideram um ‘erro cirúrgico’ da argumentação. Habermas, entretanto, continua com essa figura do pensamento conseqüentemente na linha da ética do discurso. Seu princípio de complementação ético-responsável denota que o agir estratégico pode ser justificado onde serve em geral somente para estabelecer uma condição, na qual sejam novamente possíveis soluções de problemas através de discursos racionais”. (REESE-SCHÄFER, p. 121-122)

De acordo com MASCARO:

“A visão política de Habermas tem-se conduzido nos últimos tempos, a uma aposta cada vez maior na interação cosmopolita, confederativa e democrática. Evitando um discurso meramente jurídico e formalista – como o de um apoio a um Estado dos Estados, como a ONU, como instituição suficiente para a garantia da democracia internacional -, Habermas identifica a articulação entre os Estados, grupos sociais e indivíduos em nível transnacional como elemento fundamental da construção de uma constelação pós-nacional. Além da formação de comunidades internacionais entre Estados, esse arranjo demanda um nível de articulação na própria sociedade civil mundial. (...) Tal reflexão habermasiana sobre o Direito e o processo de cosmopolitização dos Estados nacionais reforça o horizonte de reformas que é típico do seu pensamento: renunciando à grande crítica ao direito, mas angustiado com a derrelicção do tempo presente, Habermas aposta em mais direito, numa interação democrática e ética do direito com a sociedade, como forma de, no acúmulo do mais, alcançar o melhor, driblando os conflitos do mundo a partir do consenso. Mas a grande questão ainda de nosso tempo é que os grandes conflitos sociais não se apresentam estruturalmente processualizados sob a forma de direito e o grande conflito somente se transforma com conflito, e, portanto, a grande crítica ainda se faz necessária” (MASCARO, 2010, p. 271).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estatuto de Roma, que inaugurou o Tribunal Penal Internacional com atuação permanente, foi recebido e incorporado internamente pela República Federativa do Brasil a partir de sua ratificação e pela edição do Decreto nº 4.388/2002 e, até recentemente, a Emenda Constitucional nº 45/2004 consagrou o ato de submissão.

O artigo teve a finalidade de demonstrar que o direito internacional penal ocupa, hodiernamente, uma posição importante e se revela em estado de desenvolvimento historicamente avançado em razão de experiências passadas.

Alguns fatores são destaques, a saber: o fim da guerra fria, o julgamento dos nazistas em Nuremberg, o Tribunal do Pacífico e os julgamentos motivados por conflitos étnicos, a exemplo dos Tribunais Internacionais Penais ad hoc.

Após a queda do Muro de Berlim instalou-se um ambiente favorável na sociedade internacional para a criação da jurisdição penal internacional permanente, antecedida pelos Tribunais Penais Internacionais ad hoc, em especial, o para a antiga Iugoslávia e para Ruanda.

O Capítulo IX do Estatuto de Roma trata da cooperação internacional e estabelece a necessidade de haver uma ajuda mútua entre os Estados e o Tribunal Penal Internacional, pois tais medidas são essenciais para a viabilidade desta instituição. De modo que os Estados que ratificaram o Estatuto deverão ter em seus ordenamentos jurídicos internos medidas aptas na adoção de procedimentos cooperativos, e é justamente nesta instância em que se exige a atuação do Judiciário Brasileiro que deverá cooperar com o “ato de entrega” (que não pode ser confundido com a extradição), e, nos casos de envolvimento de brasileiros ou de estrangeiros (que aqui estiverem radicados clandestinamente) em crimes contra a humanidade (entre outras matérias penais com conexão internacional de interesse do TPI permanente) a atuação cooperativa da Polícia Federal também é de suma importância para a viabilização do futuro julgamento.

BIBLIOGRAFIA

BRENER, Jayme. Tragédia na Iugoslávia: a guerra e o nacionalismo no Leste Europeu. São Paulo: Atual, 1993.

CHOUKR, Fauzi Hassan et al. Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

CRAVO, Marco Antonio Pedroso. Aspectos jurídicos e históricos do Tribunal Militar de Nuremberg. 2009. Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro, Bebedouro, 2009.

FERNANDES, A. Scarance. O Processo Penal Internacional. In: Direito Internacional, humanismo e globalidade (ORG. CASELLA; POLIDO; CELLI JUNIOR; MEIRELLES). São Paulo: Atlas, 2008.

GONÇALVES, J. Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: a gênese de uma nova ordem no direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Direito Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

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MASCARO, A. L. Filosofia do Direito. São Paulo, Atlas, 2010.

POWER, Samantha. Genocídio: a retórica americana em questão. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

REESE-SCHÄFER, W. Compreender Habermas. Trad. Vilmar Schneider. 2ª edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

 

 

 

Data de elaboração: maio/2011

 

 

 

Renato Toller Bray

Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais. Curso de Direito, Campus Frutal-MG. O autor é doutorando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP.