O direcionamento da doutrina jurídico-penal ao exame das temáticas mais proeminentes relacionadas à proteção penal dos bens jurídicos transindividuais revelou um setor que pode e costuma ser referido como Direito Penal Supraindividual.

No caso do Direito Penal Supraindividual brasileiro, ele se encontra bastante desenvolvido e expandido – rectius: até inflacionado – e topograficamente disperso pela Parte Especial do Código Penal e por grande número de leis extravagantes, sejam elas de natureza estritamente penal, sejam elas microssistemas versando sobre assuntos específicos e contendo dispositivos criminais. Essa dispersão costuma trazer, como indesejadas consequências, a incongruência e/ou a incompatibilidade de preceitos incriminadores não codificados com preceitos incriminadores codificados, ou mesmo de preceitos incriminadores não codificados entre si, gerando antinomias, e desproporções por vezes inexplicáveis quanto às sanções cominadas, gerando injustiças, tudo isso aumentando a complexidade e em prejuízo da sistematicidade do ordenamento jurídico-penal.

Com efeito, pensando de lege ferenda e para fins de redução da complexidade e de melhor sistematização, mostrar-se-ia mais adequado que as infrações penais contra bens jurídicos supraindividuais, após uma filtragem depuradora orientada pelos critérios da dignidade penal do bem jurídico e da carência de tutela penal, fossem todas incorporadas à Parte Especial do CP ou compiladas na forma de uma Consolidação, com uma Parte Geral própria atenta às suas peculiaridades. Todavia, por ora deixemos a ideia a título de sugestão e passemos a um olhar panorâmico – pois uma análise mais minuciosa exorbitaria dos limites e do escopo deste trabalho – sobre os mais importantes diplomas legais vigentes que cuidam da temática.

O Código Penal, como é óbvio, consiste no principal texto normativo infraconstitucional referente ao Direito Penal, trazendo regras e princípios atinentes à aplicação da legislação penal como um todo, que compõem a sua Parte Geral, e prevendo grande quantidade de figuras criminosas, classificadas, organizadas e distribuídas em Títulos, Capítulos e Seções a partir do bem jurídico tutelado, que compõem a sua Parte Especial. Existem nesta tipos penais que protegem bens jurídicos coletivos (pertencentes a membros de grupos, de classes ou de categorias, ligados entre si por um vínculo aglomerativo prévio, e referentes a um objeto comum a eles e indivisível) – por exemplo, os arts. 200 a 202, que definem os delitos de paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem, paralisação de trabalho de interesse coletivo e invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola e sabotagem, relacionados à liberdade do trabalho em sua faceta coletiva –, bens jurídicos difusos (pertencentes a titulares indeterminados, integrantes de uma dada coletividade e ligados entre si por circunstâncias fáticas, e também referentes a um objeto comum a eles e indivisível) – por exemplo, os crimes contra a incolumidade pública, descritos no Título VIII – e bens jurídicos institucionais ou públicos (intermediados por uma pessoa jurídica de direito público que é reputada seu titular, notadamente o Estado)[1] – por exemplo, os delitos contra a Administração Pública, insculpidos no Título XI –, para além dos muitos que tutelam bens jurídicos individuais.

A Lei 1.521/1951 se ocupa dos chamados crimes contra a economia popular. Há nela tipos penais que protegem diretamente bens jurídicos individuais (e indiretamente o supraindividual economia popular) – por exemplo, os arts. 2º, inc. I, primeira parte, e 4º, caput, b –, tipos penais que protegem diretamente bens jurídicos difusos ou coletivos – por exemplo, os arts. 2º, incs. IX e XI, e 3º, incs. II, VI, VII e VIII – e tipos penais pluriofensivos ou de dupla (ou plúrima) subjetividade passiva, que protegem simultaneamente bens jurídicos individuais e supraindividuais – por exemplo, os arts. 2º, incs. VIII e X, e 3º, incs. IX e X.

A Lei 2.889/1956, que tipificou em nosso Direito interno o delito de genocídio, surgiu na esteira da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, concluída em Paris, em 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, a qual restou aprovada e incorporada no Brasil por meio do Decreto Legislativo 2/1951 e do Decreto Federal 30.822/1952. O diploma legal prevê, em seus arts. 1º a 3º, infrações penais pluriofensivas ou de dupla (ou plúrima) subjetividade passiva, que tutelam, em primeiro plano, a existência de grupo racial, étnico, nacional ou religioso, bem jurídico-penal de natureza difusa, além da vida, da integridade corporal e psíquica e das liberdades reprodutiva e de locomoção dos membros do grupo, bens jurídico-penais individuais.

O Decreto-lei 201/1967 trata da responsabilidade de prefeitos e vereadores e prevê, no seu art. 1º, caput, incs. I a XXIII, delitos especiais próprios que têm como sujeito ativo o prefeito municipal, os quais tutelam notadamente o patrimônio, a regularidade e as finanças da Administração Pública, bens jurídico-penais supraindividuais institucionais.

A Lei 6.385/1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e criou a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), originalmente não contemplava figuras criminosas. Somente a partir das alterações promovidas pela Lei 10.303/2001 é que passou a prevê-las nos seus arts. 27-C, 27-D e 27-E, os quais, respectivamente, definem os delitos de manipulação do mercado, de uso indevido de informação privilegiada e de exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função no mercado de valores mobiliários. Os tipos penais em tela, cujas redações restaram modificadas pela Lei 13.506/2017, protegem a regularidade e a lisura das operações do mercado de valores mobiliários, a confiança geral dos potenciais investidores relativamente a ele e a confiança específica dos efetivos adquirentes daqueles títulos, bens jurídico-penais supraindividuais de naturezas difusa e coletiva, além dos patrimônios de agentes econômicos e de investidores, bens jurídico-penais individuais, no caso do art. 27-C, o que o caracteriza como delito pluriofensivo e de dupla (ou plúrima) subjetividade passiva.

A Lei 6.453/1977 dispõe sobre a responsabilidade civil por danos nucleares e a responsabilidade criminal por atos relacionados com atividades nucleares, prevendo em seus arts. 20 a 27 infrações penais que dizem respeito aos cuidados e à prevenção de riscos concernentes ao manejo da energia nuclear e de produtos radioativos e, de modo mais amplo, ao meio ambiente e à incolumidade pública, todos bens jurídico-penais difusos.

A Lei 7.492/1986 tipifica os delitos contra o sistema financeiro nacional. Encontram-se nela tipos penais que tutelam diretamente bens jurídicos difusos ou coletivos – por exemplo, os arts. 7º, 16, 22 e 23 – e tipos penais pluriofensivos ou de dupla (ou plúrima) subjetividade passiva, que tutelam simultaneamente bens jurídicos supraindividuais e individuais – por exemplo, os arts. 2º, 6º e 9º.

A Lei 7.716/1989 tipifica os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. A imensa maioria dos dispositivos penais incriminadores nela encontrados protege diretamente bens jurídico-penais individuais, exigindo como sujeitos passivos pessoas determinadas. Apenas os delitos tipificados nos arts. 4º, § 2º, e 20 são voltados à proteção direta de bens jurídico-penais difusos: de grupos raciais ou étnicos na primeira hipótese e, além destes, de grupos religiosos ou nacionais na segunda hipótese. Nenhum dos dois dispositivos existia na redação original do diploma legal. O § 2º do art. 4º foi inserido pela Lei 12.288/2010. Ao seu turno, o art. 20 foi introduzido pela Lei 8.081/1990, porém sofreu sucessivas modificações pelas Leis 8.882/1994, 9.459/1997, 12.288/2010 e 12.735/2012.

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) tipifica em seu Título II alguns delitos contra as relações de consumo. Encontram-se nele tipos penais que tutelam diretamente bens jurídicos difusos – arts. 63 a 69 – e tipos penais que tutelam diretamente bens jurídicos individuais (e indiretamente o supraindividual consistente na regularidade e na lisura das relações de consumo) – arts. 70 a 74 –, exigindo sujeitos passivos determinados.

A Lei 8.137/1990 define crimes contra a ordem tributária, contra a ordem econômica e contra as relações de consumo. Os delitos contra o aspecto arrecadatório da ordem tributária são previstos nos arts. 1º e 2º, ao passo que o art. 3º tipifica delitos funcionais – portanto, especiais próprios, que exigem do sujeito ativo a qualidade de funcionário público – contra a Administração Fazendária. Tais infrações penais atingem bens jurídico-penais supraindividuais institucionais. O art. 4º, na redação conferida pela Lei 12.529/2011, descreve crimes contra a ordem econômica em sentido estrito, bem jurídico-penal supraindividual difuso, especificamente consistentes no abuso do poder econômico e na prática de cartel. Os arts. 5º e 6º, que tipificavam outras condutas atentatórias à ordem econômica em sentido estrito, restaram revogados pela mesma Lei 12.529/2011. Finalmente, o art. 7º prevê mais delitos contra a regularidade e a lisura das relações de consumo, voltados essencialmente à proteção de aspectos dela caracterizados como bens jurídico-penais supraindividuais difusos e coletivos – v.g., a igualdade de tratamento dos consumidores quanto à oferta e a aquisição de produtos e serviços, a segurança e a qualidade de produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo, a confiança dos consumidores acerca da veracidade das informações sobre produtos e serviços e a exigência de justas contraprestações pelos produtos e serviços ofertados –, a latere do CDC.[2]

A Lei 8.176/1991 define em seu art. 1º crimes que atingem a ordem econômica em sentido estrito, especificamente no que tange ao comércio de combustíveis e derivados de petróleo (inc. I), e a incolumidade pública, no que se refere ao uso de gás liquefeito de petróleo (inc. II), ambos bens jurídico-penais supraindividuais difusos. O diploma legal, em seu art. 2º, também tipifica condutas atentatórias contra o patrimônio da União, bem jurídico-penal supraindividual institucional.

A Lei 8.666/1993 institui normas gerais para licitações e contratos da Administração Pública direta e indireta de todos os Poderes e esferas da Federação, prevendo em seus arts. 89 a 98 infrações penais que tutelam a licitude, a regularidade, a probidade e a isonomia nos procedimentos licitatórios e nas contratações de entes e órgãos estatais e paraestatais, além do patrimônio público, todos considerados bens jurídico-penais supraindividuais institucionais.

O Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997) descreve em seu Capítulo XIX, Seção II, os delitos de circulação, que têm como elemento objetivo comum o cometimento na direção de veículo automotor. Encontram-se no texto normativo tipos penais que protegem diretamente a circulação viária segura, bem jurídico-penal supraindividual difuso – arts. 306 e 308 a 311 –, tipos penais que protegem a Administração Pública, nos aspectos da Administração do Trânsito e da Administração da Justiça, bens jurídico-penais supraindividuais institucionais – arts. 305, 307 e 312 –, e tipos penais que protegem diretamente bens jurídicos individuais (e indiretamente o supraindividual circulação viária segura) – arts. 302 a 304 –, exigindo sujeitos passivos determinados.

A Lei 9.605/1998 costuma ser referida como Lei dos Crimes Ambientais, uma vez que tipifica vários delitos contra o meio ambiente, bem jurídico-penal difuso – especificamente, nas Seções I a III do Capítulo V (arts. 29 a 61). Todavia, o diploma legal também contempla infrações penais contra o patrimônio cultural – arts. 62, 63 e 65 –, a ordenação do território – art. 64 – e a Administração Ambiental – arts. 66 a 69 –, que, conquanto estejam estreitamente relacionados ao meio ambiente, apresentam autonomia material como objetos de tutela penal.[3] Todos esses bens jurídico-penais têm caráter supraindividual: o patrimônio cultural e a ordenação do território consistem em bens jurídico-penais difusos, ao passo que a Administração Ambiental é um bem jurídico-penal complexo que conjuga elementos da Administração Pública e do meio ambiente, bens jurídico-penais de cunhos institucional e difuso, respectivamente.[4] Uma parcela dos crimes também tutela bens jurídico-penais individuais, classificando-se, portanto, como delitos pluriofensivos e de dupla (ou plúrima) subjetividade passiva. Vejam-se, a propósito, os arts. 49, 54, 61 e 65.

A Lei 9.613/1998 dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores e sobre a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos nela previstos, além de ter criado o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). O diploma legal foi substancialmente modificado pela Lei 12.683/2012, que alterou diversos de seus dispositivos, a começar pelas descrições típicas das condutas delituosas, trazidas no art. 1º. Há acentuada divergência doutrinária acerca do bem jurídico-penal principalmente protegido pelas disposições incriminadoras em tela, mencionando-se aqui, a título exemplificativo, três correntes que pretendem explicá-lo: 1) a que entende ser a ordem econômica, notadamente no aspecto da licitude do ciclo ou tráfego econômico-financeiro (bem jurídico-penal supraindividual difuso); 2) a que entende ser a Administração da Justiça, especialmente vulnerada pela dissimulação e/ou ocultação dos produtos e proveitos de infrações penais antecedentes (bem jurídico-penal supraindividual institucional); e 3) a que entende ser um bem jurídico complexo ou um complexo de bens jurídicos, com destaque para a ordem econômica e a Administração da Justiça (crime pluriofensivo).[5] De qualquer modo, é inequívoco que a “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores tem objetividade jurídica de cunho supraindividual, parecendo-nos correta a concepção de tal delito como pluriofensivo, que afeta principal e simultaneamente a ordem econômica e a Administração da Justiça.

A Lei 10.826/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento, disciplina o registro, a posse, o porte, a comercialização e a circulação de armas de fogo, de munições e de acessórios e estruturou o Sistema Nacional de Armas (SINARM), prevendo ainda, nos seus arts. 12 a 18, infrações penais relacionadas com aqueles objetos, as quais tutelam a incolumidade pública, bem jurídico-penal supraindividual difuso.

A Lei 11.101/2005, atual Lei de Falências e de Recuperação Empresarial, contempla nos seus arts. 168 a 178 os chamados crimes falimentares. No que se refere ao bem jurídico-penal essencialmente protegido por eles, também se verifica notável divergência doutrinária. Por exemplo, alguns juristas asseveram que esses delitos não tutelam somente os patrimônios dos credores e dos trabalhadores afetados pela falência criminosa, mas também e sobretudo o crédito, como instrumento indispensável à vida empresarial e, por isso, erigido a objeto autônomo e transindividual de proteção penal.[6] De outro lado, há juristas que atribuem natureza eminentemente patrimonial e individual ao bem jurídico-penal tutelado pelos crimes falimentares.[7] Entendemos que, in casu, o bem jurídico-penal vulnerado é sim supraindividual, porém coletivo, antes que difuso. Isso porque o universo de vítimas diretamente atingidas, embora abrangente, não exorbita das pessoas envolvidas em relações negociais e/ou trabalhistas com o empresário insolvente, enquadrando-se todas elas, portanto, em situações jurídicas dotadas de similitude (a chamada par conditio creditorum). Demais sujeitos que, fora desse círculo, tiverem afetadas reflexamente as suas relações jurídicas por conta da infração falimentar – por exemplo, o inadimplemento obrigacional por parte de um credor do falido perante seu respectivo credor – serão tecnicamente considerados prejudicados, e não vítimas.

A Lei 11.105/2005, referida como Lei de Biossegurança, complementou os incs. II, IV e V do § 1º do art. 225 da CF/1988, estabeleceu normas de segurança para o uso da biotecnologia e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGMs) e seus derivados, criou o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), reestruturou a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), dispôs sobre a Política Nacional de Biossegurança (PNB) e ainda tipificou, nos seus arts. 24 a 29, condutas contrárias às regras de biossegurança, especificamente referentes ao emprego da biotecnologia, à utilização de embriões humanos, à realização de experimentos genéticos com células, zigotos e embriões humanos e à manipulação de OGMs, protegendo assim o patrimônio genético da humanidade e o meio ambiente, ambos bens jurídico-penais supraindividuais difusos.

A Lei 11.343/2006, conhecida como Lei Antidrogas, instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), prescreveu medidas para a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas e estabeleceu regras para a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, prevendo em seus arts. 28 e 33 a 39 uma série de infrações penais. A explicação usual sobre o bem jurídico tutelado pelos tipos penais incriminadores do texto normativo, amplamente sufragada na doutrina e na jurisprudência, é a de que se trata da saúde pública, de feição difusa. Tal objetividade jurídica estaria presente mesmo no tipo do art. 28, referente à posse de drogas para consumo pessoal, aduzindo-se que não se desvalora penalmente o uso do entorpecente per se, mas sim o risco de sua disseminação a terceiros, representado pela singela posse da substância proibida.[8] Registre-se, contudo, que o entendimento majoritário tem sido desafiado por postura crítica que sustenta ser a saúde pública, no caso da política criminal antidrogas, um falso bem jurídico-penal. Para Erika Mendes de Carvalho e Gustavo Noronha de Ávila, o recurso a um objeto jurídico de caráter transindividual para a criminalização de condutas associadas às drogas mascara o problema central da decisão pela intervenção penal nessas hipóteses: a falta de um verdadeiro bem jurídico que a legitime. A saúde pública, nas figuras típicas da Lei Antidrogas, deve ser desconstruída em seu papel de bem jurídico supraindividual, seja porque não possui realidade existencial, concreta, seja porque representa a soma de bens jurídicos individuais, cuja proteção, especialmente com tal nível de antecipação relativamente a uma eventual lesão, recai no “paternalismo penal”, consistente na tendência do legislador – moralista, autoritária e desrespeitadora da autonomia de cada sujeito – de pretender resguardar as pessoas das consequências por elas individualmente sentidas decorrentes de seus próprios comportamentos (autolesões).[9] Pensamos que o bem jurídico-penal objeto de proteção, ao menos no tocante aos crimes previstos nos arts. 33 a 39 da Lei 11.343/2006, é na verdade o controle estatal sobre o comércio de tóxicos, dotado portanto de caráter supraindividual institucional.[10]

Ainda, é digna de menção a Lei 12.850/2013, habitualmente referida como Lei do Crime Organizado ou Lei das Organizações Criminosas. A criminalidade organizada, fenômeno que provém das atividades delituosas de associações ou organizações criminosas, mostra-se hoje uma realidade perante a qual o Estado se vê muitas vezes impotente, considerando-se a insuficiência do aparato disponível para combatê-la.[11] O crime organizado prosperou muito nas últimas décadas, mediante a adoção de estruturas empresariais, o aproveitamento da globalização e o desenvolvimento tecnológico.[12] De fato, as organizações criminosas, hodiernamente, tendem a ser os principais veículos de ataque aos bens jurídico-penais supraindividuais.[13] Observa-se que a criminalidade organizada tem se evidenciado de forma mais intensa na chamada delinquência econômica, contudo não se limita a ela, imiscuindo-se também nas atividades políticas – vide os grandes esquemas de corrupção que corroem a República –, no terrorismo, no tráfico de pessoas, na exploração sexual e nos tráficos de drogas, de armas e de animais. Outrossim, a afirmação de que a característica essencial de qualquer atuação delitiva organizada é a finalidade de lucro indevido não leva em conta os fatos de que muitas estruturas ilícitas prescindem da influência sobre as atividades econômicas e de que a obtenção de vantagem patrimonial como intento principal pode lhes ser estranha – a exemplo das organizações voltadas ao cometimento de atos terroristas.[14] Destarte, parece-nos que o art. 1º, § 1º, da Lei 12.850/2013 adotou boa cautela ao evitar a alusão ao animus lucrandi, definindo organização criminosa como “a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. A Lei 12.850/2013, além de fornecer a definição legal de organização criminosa, prevê delitos que afetam bens jurídicos institucionais, quais sejam, a paz pública – na figura típica trazida no caput do art. 2º, nominada pela doutrina de crime de organização criminosa – e a Administração da Justiça – nos crimes relativos à investigação e à obtenção de provas, tipificados nos arts. 2º, § 1º, e 18 a 21.[15] Têm-se aí os chamados crime organizado por natureza – o delito de organização criminosa, previsto no art. 2º, caput – e crime organizado por extensão – as infrações penais praticadas pela organização criminosa.[16]

Por derradeiro, a Lei 13.260/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo, definiu em seus arts. 2º, 3º, 5º e 6º as condutas que configuram crimes de terrorismo. Trata-se de delitos pluriofensivos ou de dupla (ou plúrima) subjetividade passiva, que atingem a incolumidade pública, bem jurídico-penal supraindividual difuso, e a paz pública e a segurança do Estado, bens jurídico-penais supraindividuais institucionais, sem prejuízo de outros bens jurídico-penais individuais de pessoa(s) concretamente vitimada(s) pelo(s) ato(s) terrorista(s), mormente a vida, a saúde, a integridade corporal e psíquica, a liberdade e o patrimônio dela(s). Contudo, há nessas infrações penais o predomínio do aspecto transinvidual institucional, visto que o art. 11 do texto normativo preconiza que, para todos os efeitos legais, considera-se que elas são praticadas contra o interesse da União, cabendo à Polícia Federal a investigação criminal, por meio de inquérito policial, e à Justiça Federal o seu processo e julgamento, nos termos do art. 109, inc. IV, da CF/1988.

 

NOTAS:

[1] Sobre o conceito de bem jurídico-penal supraindividual institucional ou público, v. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 109.

[2] Sobre a convivência dos tipos penais previstos no CDC com os trazidos no art. 7º da Lei 8.137/1990, sem que tenha havido a revogação de nenhum dos primeiros, v. PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 93 ss.

[3] Cf. PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente: meio ambiente, patrimônio cultural, ordenação do território, biossegurança (com a análise da Lei 11.105/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 489.

[4] Cf. PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente, cit., p. 493, 510 e 531.

[5] V., respectivamente, PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico, cit., p. 403 ss; BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012. 2. ed. em e-book baseada na 3. ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. Parte II, item 1.2; NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. v. 2. p. 481-506; e BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas: com comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/1998. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 42-47.

[6] V. TIEDEMANN, Klaus. Apresentação crítica: crimes contra a ordem econômica. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. Dos crimes contra a ordem econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 19; e ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. Dos crimes contra a ordem econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 108-111.

[7] V. CAEIRO, Pedro. A relevância da insolvência e da insolvabilidade nos crimes falenciais. In: PODVAL, Roberto (Org.). Temas de direito penal econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 226-227.

[8] Neste sentido, por todos, cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. v. 1. p. 299 ss; e CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 4 (legislação penal especial). p. 756 ss.

[9] CARVALHO, Érika Mendes; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsos bens jurídicos e política criminal de drogas: uma aproximação crítica. In: BRAGA, Romulo Rhemo Palitot; GUERRA, Amparo Martínez (Org.). Anais do III encontro de internacionalização do CONPEDI. Madri: Laborum, 2015. v. 10. p. 145-146.

[10] Com base em SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Tradução de Adriano Teixeira et al. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 65. Sobre o tema da intervenção penal em matéria de drogas, cf. ainda o abrangente e elucidativo estudo de KARSAI, Krisztina. As questões fundamentais de uma legislação penal sobre drogas (esboço de uma legislação penal comparada sobre drogas). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 92, p. 97-120, set./out. 2011.

[11] Cf. PRADO, Luiz Regis. Associação criminosa – crime organizado (Lei 12.850/2013). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 938, p. 241-297, dez. 2013. n. 1.1.

[12] Cf. FERNANDES, Antonio Scarance. O equilíbrio entre a eficiência e o garantismo e o crime organizado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 70, p. 229-268, jan./fev. 2008. n. 4

[13] Cf. SOUZA, Diego Fajardo Maranha Leão de. Tutela penal coletiva e crime organizado. Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco, Recife, v. 2, p. 85-110, 2009. n. 6.

[14] Cf. PRADO, Luiz Regis. Associação criminosa – crime organizado (Lei 12.850/2013), cit., n. 1.1.

[15] Cf. PRADO, Luiz Regis. Associação criminosa – crime organizado (Lei 12.850/2013), cit., n. 4.2, 5.3 a 5.5; MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. São Paulo; Rio de Janeiro: Método; Forense, 2015 (versão em e-book). Cap. 1, itens 1.3, 2.3 e 3; e LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016. p. 488, 492, 593-594. A paz pública costuma ser referida pela doutrina majoritária como o bem jurídico protegido pelos tipos penais que incriminam as chamadas associações ilícitas (por exemplo, o delito de associação criminosa definido no art. 288 do CP e o ora tratado delito de organização criminosa). Nesse sentido, v. DALBORA, Djosé Luis. Del bíen jurídico a la necesidad dela pena en los delitos de asociaciones ilícitas y lavado de dinero. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 30, p. 11-30, abr./jun. 2000. n. 2; e DIAS, Jorge de Figueiredo. A criminalidade organizada: do fenómeno ao conceito jurídico-penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 71, p. 11-30, mar./abr. 2008, além dos autores citados no início desta nota.

[16] Cf. MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado, cit., Cap. 1, item 1; e LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada, cit., p. 487-488.

Data da conclusão/última revisão: 24/3/2020

 

Como citar o texto:

LIMA, Thadeu Augimeri de Goes..Panorama legal do Direito Penal Supraindividual no Brasil. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 974. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/10100/panorama-legal-direito-penal-supraindividual-brasil. Acesso em 15 abr. 2020.

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