Reflexão histórica da pena de morte frente a um abolicionismo moderado

O presente artigo estuda a polêmica aplicação da pena de morte sob a ótica abolicionista de uma maneira moderada. O Objetivo é analisar tal tema, particularizando sua aplicação ao longo da história no ordenamento jurídico brasileiro; e como desdobramento da análise utilizada no primeiro ponto, o tratamento dado pela Constituição Federal de 1988 a esta sanção.

Sumário: Introdução; 1.História da pena de morte no Brasil; 2. A pena de morte e o direito à vida; 2.1 Correlação entre o Direito a vida e a crença na democracia brasileira; 3. Principiologia fundamental da democracia equilibrada a luz da Constituição de 1988; 3.1 Dignidade da pessoa humana; 3.2 Limitação das penas; 3.3 Interpretação “pro homine”; 3.4 Supremacia da norma mais favorável ao indivíduo; 3.5 Vedação do retrocesso social; 4. Abolicionismo penal; 4.1 Aspecto histórico do abolicionismo; 4.2 Posições básicas do abolicionismo; 4.3 Pena de morte e o abolicionismo; Considerações Finais.                   

INTRODUÇÃO

O termo “pena” vem do grego poine, pelo latim poena significa castigo, punição. Fernando Capez (2008) define pena como sendo uma sanção imposta pelo Estado em caráter aflitivo, em execução a um acusado de uma infração penal, que consiste na restrição ou privação de um bem jurídico com o intuito de aplicar a retribuição punitiva ao delinquente. Sendo a pena de morte uma sanção imposta pelo judiciário que consiste em retirar legalmente a vida de alguém que cometeu um crime que seja suficientemente grave a ponto de ser punível com a morte.  A pena de morte é constantemente colocada em discussão, por ser o método mais antigo de punir o transgressor de uma norma, sendo questionada sempre a sua eficácia.

A pena de morte foi inicialmente trazida ao Brasil por Portugal, sendo utilizada pelos capitães lusos por volta de 1530, sendo a pena capital removida do ordenamento jurídico brasileiro em 1823 por meio de um decreto nacional, sendo reintroduzido em 1830 através do Código Criminal do Império. A Constituição de 1891 por sua vez negou a possibilidade da existência da pena de morte, salvo em disposição da legislação militar que desde já previa a aplicação da pena de morte nos casos de guerra declarada. Já em 1934 a Constituição da época deixa expresso que a pena de morte só poderia ser aplicada em casos de guerra declarada contra países estrangeiros. Na Constituição de 1937 era facultado ao legislador a possibilidade de prescrever a pena de morte.

A Pena de Morte no Brasil é proibida pela Constituição Federal em seu artigo 5º, XLVII, exceto em casos de guerra declarada, mas sempre que um acontecimento criminoso de grande proporção atinge os noticiários nacionais a sociedade clama pela regulamentação da modalidade da pena no ordenamento jurídico brasileiro, certo é que toda a sociedade brasileira está atemorizada com a crescente escalada da criminalidade no país, sendo assim busca saídas para aumentar sua segurança e controlar e diminuir os índices de criminalidade, e por muitas vezes clama às autoridades constituídas pelo enrijecimento das penas, medida essa que levaria a normatização da pena de morte no país. 

A pena capital se aproxima mais de um governo ditatorial por ser muito cruel, em que o governo busca calar os que a ele se opõem, com a sombra de uma possível execução. Principalmente no Brasil em tempos ditatoriais, a pena de morte esteve presente, sendo possível que ocorresse a condenação a execução, como exemplo o período do presidente Getúlio Vargas.

O presente trabalho tem por objetivo a realização de um estudo sucinto sobre a aplicação da pena de morte no ordenamento jurídico brasileiro através da história do país, de tal forma analisando sua aplicabilidade constitucional no atual ordenamento jurídico do país à visão abolicionista.  A pesquisa a seguir apresentada será qualitativa, exploratória, bibliográfica e descritiva na área do Direito Penal.

 

1 HISTÓRIA DA PENA DE MORTE NO BRASIL

A pena de morte implantada no Brasil foi trazida de Portugal pelo capitão Martim Afonso, sendo que era do arbítrio dos capitães lusos a sua utilização, que perdurou até o ano de 1530. Sendo abolida do ordenamento jurídico brasileiro por meio de decreto no dia 20 de setembro de 1823, porém o Código Criminal do Império reintroduziu a pena capital no dia 16 de dezembro de 1830.

A Constituição de 1891 impediu a regulamentação da pena capital no Brasil, os únicos casos permitidos eram em casos de guerra declarada com previsão na legislação militar da época. Já na carta magna de 1934, era permitida a aplicação da pena de morte nos casos previstos na legislação militar, mas apenas em casos de guerra com países estrangeiros. No ano de 1937, a Constituição da época atribuiu o poder facultativo ao legislador ordinário, sendo que lhe cabia o direito de prescrever a pena de morte para casos de crimes de homicídio cometidos por motivos fúteis e com requintes de crueldade, sendo assim suprimida a referencia a guerra declarada com país estrangeiro que era prevista na CF de 1934. Em 16 de maio de1938, com a Emenda Constitucional I, transformou-se de facultativa em imperativa a aplicação da pena capital em casos de homicídio com motivos fúteis e requintes de crueldade.

Em sentido diverso, o atual Código Penal que entrou em vigor no ano de 1940, não recepcionou a pena de morte no atual ordenamento jurídico, sendo acompanhado pelo Código Penal Militar de 1944, exceto em casos de guerra declarada com país estrangeiro que mantém sua previsão. Na constituição de 1969, em seu artigo 153, §11 que “não haveria pena de morte, prisão perpétua, nem de banimento, salvo em casos de guerra externa”.

No regime constitucional anterior ao atual, ocorreu somente uma condenação a pena de morte em tempos de paz pela justiça militar, sendo o réu condenado a execução por crime contra a Segurança Nacional, conforme artigo 33 do Decreto-Lei 898/69. O réu era menor de idade e foi acusado de, sendo militante comunista, ter matado um sargento da Aeronáutica, no dia 27 de outubro de 1970, no momento em que o militar realizava uma patrulha que investigava células clandestinas de subversão, culminou por prender o acusado, juntamente com outro companheiro, sendo colocados dentro de uma viatura dos agente de segurança, onde mesmo algemado a seu companheiro, o réu conseguiu apanhar uma arma que trazia consigo e atirar contra o sargento e o motorista da viatura, na tentativa de fugir, matando o sargento e ferindo o motorista.

Tendo sido julgado pelo Conselho Especial de Justiça da Auditoria da 6ª Circunscrição Judiciária Militar, localizada na Bahia, o réu foi condenado à pena de morte por execução no dia 18 de março de 1971. Tendo apelado para o Superior Tribunal Militar, o réu teve sua pena reduzida para prisão perpetua em face de sua menoridade e primariedade. (STM – Ap. 38.590 – BA – Rel. Min. Dr. Amarílio Lopes Salgado, sessão de 14/06/1971)

A Constituição atual de 1988 prevê em seu artigo 5º, XLVII, a, que não haverá pena de morte, salvo em casos de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX. Vemos aqui que mesmo o Brasil não sendo um país belicista, insiste em manter a tradição de possuir em seu ordenamento jurídico a previsão da pena capital nos casos de guerra declarada contra país estrangeiro. Sendo que a forma prevista para a execução da pena de morte é a execução por fuzilamento, por ser esta uma forma de se executar a pena de uma maneira rápida e que não cause humilhação para o condenado.

A execução por fuzilamento da pena de morte é disciplinada pelo Código de Processo Penal Militar nos artigos 707 a 710, devendo o condenado estar decentemente vestido no momento de sua execução, sendo-lhe facultado o direito de receber socorro espiritual antes de ser executada a pena. A pena capital só pode ser executada sete dias após a comunicação ao Presidente da República, salvo nos casos em que a pena é imposta em zona de operação e o retardamento do cumprimento da pena seja prejudicial a ordem e a disciplina do local. Fica evidente aqui a preocupação do legislador com a segurança do restante da tropa no local em que esteja propenso a ataques do inimigo por ser área de combate militar, pois o período em que se espera para realizar a execução do réu pode colocar em risco a vida dos ocupantes da zona de operação.

No dia 7 de junho de 1994, o Brasil assinou o decreto Nº. 2.754 de 27 de agosto de 1998, decreto ao qual promulgou o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referentes à Abolição da Pena de Morte, adotado em Assunção no dia 8 de junho de 1990. O instrumento jurídico citado apresenta o posicionamento adotado pelo Brasil sobre a pena de morte, porém no corpo do decreto está presente a ressalva expressa pela Constituição de 1988 referindo-se a pena de morte em tempos de guerra declarada.

 

2 A PENA DE MORTE E O DIREITO À VIDA

Com o objetivo de demonstrar qual é o bem jurídico em questão que está passível de ser atingido de maneira direta pela norma constitucional em vigência, definindo assim o ilustre doutrinador Zaffaroni, (2004,0p.467) “o bem jurídico é uma relação de disponibilidade de um sujeito com um objeto”. Sendo assim, o bem jurídico em questão, a vida, seria a disponibilidade de um sujeito dispor de sua vida como o objetivo de preservar os direitos da sociedade e os interesses estatais. Mas como aduz, no entanto a brilhante juíza de direito e doutrinadora Maria Lúcia Karam: 

Embora costumeiramente o bem jurídico seja identificado ao objeto (como a vida, a saúde, o patrimônio, etc.), o que o direito protege (ou pretende proteger) não é o objeto em si mesmo, mas sim a possibilidade que o sujeito tem de usar ou de servir (ou seja, de dispor) daqueles objetos concretos. Naturalmente, tanto o sujeito quanto o objeto hão de ser determinados precisamente, o que, de resto, constitui exigência derivada do princípio da legalidade, assim, do próprio modelo do Estado de direito democrático. Nem sempre o sujeito será um indivíduo singular e determinado. Mas, sempre que se trate dos chamados bens jurídicos coletivos, a legitimidade de seu reconhecimento dependerá da vinculação de sua funcionalidade a interesses ou direitos individuais concretos. (KARAM, 2009, p. 12).

Mantendo-se neste sentido, portanto, a moral determinada não poderá em hipótese alguma se tornar passível de ser um bem jurídico. Sendo que, seguramente o direito à vida é de todos os direitos o mais fundamental, passo que sem a vida não se poderia exercer direito algum. Ou seja, sem a garantia do direito de viver, seria inútil o reconhecimento de qualquer outro direito. Desta maneira seria falível a ideia da aplicação da vida como um bem jurídico disponível ao sujeito ou ao estado, pois com essa disponibilidade não lhe seria assegurado qualquer outro direito fundamental ou não. A ilustre doutrinadora Karam assegura ainda que “dispor” significa usar ou servir-se de um objeto.

Nesse sentido, os bens jurídicos coletivos, embora não se referindo a sujeitos singulares e determinados, surgem como uma condição essencial para o bem estar e o desenvolvimento da personalidade de cada um dos indivíduos, que, juntos, são os titulares (...). Quando o bem jurídico não se vincula a interesses ou direitos individuais concretos (por exemplo, quando a moral ilegitimamente se torna um bem jurídico), o indivíduo acaba dissolvido em uma abstrata coletividade, sendo despersonalizado e reconduzido ao anônimo papel de instrumento para realização de fins que, distanciados da referência individual, sacrificam a liberdade e alimentam as mais diversas formas de totalitarismo. (KARAM, 2009, p. 12).

            O indivíduo que constantemente dispõe de sua vida, sendo que ocorre ser o único titular do bem jurídico o mesmo titular do direito singular, aqui sendo o caso do bem jurídico chamado vida, ou seja a possível disponibilidade desse direito não poderia sofrer qualquer limitação, incluindo naturalmente a disposição que teria como resultado a própria deste objeto. Tratando ainda que se a lei em vigência pretende tratar da vida como um bem disponível, a mesma subtrai de maneira indevida do indivíduo titular a autonomia que tem sobre este direito, pois esta qualidade de titular do bem jurídico acaba sendo transferida de forma integral para o Estado, passo que o sujeito acabaria sendo submetido à vontade e aos poderes do Estado.

            Na mesma linha de pensamento, ensina Zaffaroni, (2004, p. 466) “que quando direitos fundamentais deixam de ser disponíveis por parte do indivíduo, se tornam direitos de um ente diverso e o indivíduo é reduzido à condição de sujeito constrangido a um dever”. Sendo que sem a possibilidade do indivíduo dispor de um direito fundamental seu, ou seja, sem a referida vontade de exercê-lo ou não, o este direito perderia completamente seu sentido, sendo que ninguém pode ser intimidado a exercer um direito seu, sendo o indivíduo compelido deixaria de existir um direito e passaria a vigorar um dever. E viver deveras não é um dever. Ademais, adverte Maria Lúcia Karam:

Toda intervenção estatal supostamente dirigida à proteção de um direito contra a vontade do indivíduo que é seu titular se torna absolutamente inconciliável com a própria ideia de democracia, pois impede que o indivíduo tenha a opção de não fazer uso dele ou de renunciar a seu exercício, assim excluindo sua capacidade de escolha. O Estado democrático de direito não pode substituir o indivíduo nas decisões que dizem respeito apenas a si mesmo. Ao indivíduo há de ser garantida a liberdade de decidir, mesmo se de sua decisão possa resultar uma perda ou um dano a si mesmo, mesmo se essa perda ou esse dano sejam irreparáveis ou definitivos, como é a eliminação da vida. (KARAM, 2009, p. 15).

 

De maneira que esse seja o alicerce adotado no pensamento da doutrina citada, fica evidente que o Estado não pode em hipótese alguma decidir e desfazer o bem a qual diz respeito apenas ao indivíduo que é seu titular, o bem mais personalíssimo entre todos, sendo no caso citado a vida. Pois os interesses estatais não podem se sobrepor aos direitos individuais de alguém, sendo que o Estado entraria como substituo do direito individual de viver de alguém. Ou seja, deve ser garantido ao indivíduo a liberdade de decidir por si mesmo a utilização ou não de seu direito. Como aduz o Professor Pedro Lenza:

O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna. Em decorrência do seu primeiro desdobramento (direito de não se ver privado da vida de modo artificial), encontramos a proibição da pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX. Assim, mesmo por emenda constitucional é vedada a instituição da pena de morte no Brasil, sob pena de se ferir a clausula pétrea do art. 60, §4º, IV. O segundo desdobramento, ou seja, o direito a uma vida digna, garantindo-se as necessidades vitais básicas do ser humano e proibindo qualquer tratamento indigno como a tortura, penas de caráter perpétuo, trabalhos forçados, cruéis etc. (LENZA, 2009, p. 678).

Tendo sido citado acima o raciocínio do ilustre professor, facilmente pode-se concluir que estamos diante de uma norma com o maior potencial lesivo ao indivíduo, pois é simples ver que se trata de uma norma que teria como natureza imputar uma pena à um direito fundamental do indivíduo, ou seja, existiria uma natureza penal que afetaria diretamente e teria como finalidade eliminar a vida de um ser humano, em casos além do já regulamentado em lei. O Estado é e sempre deve ser o defensor do cidadão e seus direitos, vedando inclusive que o indivíduo disponha de sua integridade física ou de sua vida, como é o caso do suicídio, que já possui previsão no Código Penal. De tal maneira o Estado, não pode ser o Estado vingativo, que busca a justiça com sangue es suas mãos, sendo que a vingança seria o oposto do sentido moderno que temos de aplicação das penas, que buscam a ressocialização do apenado e a devida reparação do dano a vítima. 

Assegura o STF que as pessoas físicas ou naturais seriam apenas as que sobrevivem ao parto, dotadas do atributo que o art. 2º do Código Civil denomina personalidade civil, assentando que a Constituição Federal, quando se refere à ‘dignidade da pessoa humana’ (art. 1º, III), aos ‘direitos da pessoa humana’ (art. 34, VII, b), ao ’livre exercício dos direitos individuais’(art. 85, III) e aos ‘direitos e garantias individuais’(art. 60,§4º, IV), estaria falando dos direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Assim, a Carta Magna não faria de todo e qualquer estágio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas de vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva, e que a inviolabilidade de que trata seu art. 5.º diria respeito exclusivamente a um indivíduo já personalizado. (LENZA, 2009, p. 678).

Trazido o pensamento da suprema corte brasileira de que o expresso na Constituição trata que, apenas o indivíduo como pessoa tem o direito de dispor de seus direitos, ou seja, apenas o indivíduo como titular individual do direito pode decidir se utiliza ou não tão direito. No mesmo sentido ensina de uma maneira autoexplicativa, o voto do Ministro Celso de Mello, do STF, em que condena o Estado a custear medicamentos para tratar a AIDS, independe da existência ou não de previsão legal de recursos orçamentários, demonstrando assim a relevância e imponência do direito fundamental à vida, in verbis:

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção; o respeito indeclinável à vida. (Ministro Celso de Mello, STF, acórdão proferido em 31.01.1997).

Apresentando o brilhante voto do ministro, fica evidente a importância e relevância direito à vida, sendo utilizada a suprema corte como base para o princípio humanista, incluindo assim as situações em que ocorrerem um conflito aparente de normas constitucionais. Ou seja, não só se deve proteger o direito de dispor do indivíduo titular do bem jurídico, como também o Estado tem o dever de manter funcional este direito fundamental de qualquer indivíduo, sem que tente tomar o lugar de titular de tal direito e nem compelindo o indivíduo de exercê-lo. Ensina de maneira cirúrgica José Afonso da Silva: 

Vida, no texto constitucional (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade (Sic) funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que mude de qualidade, deixando, então de ser vida para ser morte. 10Tudo que interfere em prejuízo desse fluir espontâneo e incessante contraria a vida. (SILVA, 2010, p. 197).

Expresso o pensamento do professor citado, fica fácil de entender qual o bem jurídico que de forma direta será atingido pela pena de morte, sendo que a regulamentação e aplicação da pena de morte seria integralmente uma contrariedade ao direito à vida, garantido pela Constituição de 1988.

Os argumentos que se tornam favoráveis a pena de morte são os que tratam a pena capital como uma forma eficaz de intimidar os criminosos e que a taxa de reincidência do atual sistema penitenciário se mantem muito alta. Mas como apresenta Cesare Beccaria (1998, p. 90) de maneira brilhante em seu tratado, temos que entender que não é apenas o rigor de uma pena que leva o criminoso a desistir do objetivo de delinquir, mas sim a certeza de que lhe será imputada uma pena, mesmo que mínima, que causa um efeito de intimidação muito maior que um espetáculo a ser protagonizado por um carrasco ceifando a vida de um indivíduo. Além do mais, as penas previstas em nosso ordenamento jurídico tem caráter apenas de ressocialização, com o intuito de que o apenado reflita sobre as suas atitudes e nas consequências que destas lhe adveio e assim não volte a praticá-las.

 

2.1 CORRELAÇÃO ENTRE OS DIREITOS À VIDA E À CRENÇA NA DEMOCRACIA BRASILEIRA

De acordo com o pensamento da ilustre juíza Maria Lúcia Karam, a discussão que envolve o direito à vida é mais profundo e de certa forma acaba se correlacionando com o direito à crença. Como trata de maneira brilhante em sua doutrina:

Pode-se acreditar que a vida não pertença ao indivíduo que a vive. Pode-se crer que a vida seja um dom de Deus e que a Ele pertença e que, assim, somente Deus dela possa dispor de forma definitiva (ou destrutiva). Mas, esta é uma crença pessoal, inserida na esfera da liberdade individual de pensar e acreditar em tudo aquilo que se entenda conveniente. Se o indivíduo livremente escolher adotar essa crença, certamente há de lhe ser garantida a possibilidade de se comportar em conformidade com os preceitos morais ou religiosos que assim prescrevam a indisponibilidade da vida. O Estado, no entanto, não pode adotar um tal preceito. Se o adotar, estará abandonando sua necessária laicidade e, consequentemente, se afastando do modelo democrático. Vale repetir que a liberdade de crer (e de não crer), que há de ser garantida pelo Estado de direito democrático, só se efetiva quando são garantidas tanto as opções individuais de manifestar expressões da fé em um Deus (ou em diversos deuses), quanto às opções individuais de rejeitar qualquer crença religiosa. (KARAM, 2009, P.16)

De tal modo o Estado não pode dispor do direito individual de alguém de dispor do bem jurídico chamado vida, pois além de ferir o direito fundamental de viver da pessoa, também poderia estar afetando o direito à crença deste mesmo indivíduo, que por sua vez pode ter a fé de que apenas seu Deus ou deuses podem dispor de sua vida, pois para esse indivíduo a vida qual ele dispõe não é sua, mas sim uma concessão da entidade espiritual a qual este indivíduo credita toda a sua fé e atitudes. Sendo este o caso, o Estado não poderia se embasar em tal crença para aplicar ou não a pena de morte, pois neste caso estaria abandonando o viés democrático de um país laico, de tal forma que de maneira brilhante a carta magna de 1988 não permite que seja aplicada a pena de morte, salvo em casos de guerra, mas também não permite ao cidadão que disponha de sua vida a ponto de decidir que ela deva ser tirada por outra pessoa, ou pelo Estado.

Uma lei que expressa um preceito emanado de uma determinada crença religiosa, mesmo quando essa crença é compartilhada pela maioria ou pela quase totalidade da população, elimina a possibilidade de divergir e, assim, viola a liberdade de crer (e de não crer). (...) as leis se dirigem e obrigam todos os indivíduos. Consequentemente, não podem ser ditadas por convicções religiosas, que são sempre particulares ou setoriais. Leis ditadas por convicções religiosas violam não apenas a liberdade de crer (e de não crer), mas também o princípio da igualdade, na medida em que privilegiam os adeptos de uma determinada religião, assim tratando desigualmente os adeptos de outras religiões ou os não crentes. (KARAM, 2009, p. 16).

Passado o pensamento da ilustre doutrinadora, fica claro o sentido adotado pela teoria abordada até o momento. Se o Estado optar por seguir os preceitos desta ou daquela crença religiosa passa a tratar seus cidadãos com discriminação, favorecendo os preceitos de uma parcela da população e obrigando a outra parte a aceitar tais preceitos, pois a partir do momento que um país decide adotar um sistema de crenças religiosas este deixa de ser democrático, começando a se aproximar mais de um regime teocrático ditatorial, onde os preceitos de tal crença devem prevalecer sobre as demais. Sendo assim, o Estado estaria ferindo direitos fundamentais de uma parcela da população para favorecer os privilégios de outra. Em todo caso, ao adotar um modelo de crença religiosa para fundamentar uma possível aplicação da pena de morte, o Estado estaria violando o direito à crença de uma parte de sua população, bem como o direito à vida destes, que seriam compelidos de seus direitos ficando a mercê das vontades estatais. Como finaliza o pensamento, a professora Karam afirma: 

Se a vida não pertence nem a Deus (o Estado laico não pode afirmar que a vida pertença a Deus), nem ao indivíduo que a vive (se um objeto nos pertence, consequentemente dele podemos dispor), a imposição de sua indisponibilidade por parte do Estado estaria a conduzir à lógica conclusão de que o próprio corpo do indivíduo seria uma propriedade do Estado ou da sociedade. Mas isso significaria instrumentalizar o indivíduo, negar sua dignidade e totalitariamente contrariar os fundamentos do Estado de direito democrático. (KARAM, 2009, p. 16).

De todo modo, o Estado democrático é necessariamente laico, sendo-lhe vedada a adoção da crença de que a vida é pertencente somente a Deus, sendo assim o indivíduo que a vive não pode dela se dispor, sendo essa disposição definitiva ou destrutiva, também sendo vedada ao Estado a adoção de qualquer posicionamento que implique a possibilidade de tal indisponibilidade, sendo essa tal indisponibilidade uma transferência de titularidade do indivíduo para qualquer ente diverso a ele.

Ao ponto que se parte da premissa adotada pela professora Karam, de que o Brasil é um Estado laico, logo, não se pode afirmar que a vida é pertencente a um Deus ou vários deuses, e menos ainda que esta pertença ao Estado, pois assim os cidadãos seriam tratados apenas como objetos do poder público, certo é afirmar que cada um seja dono de sua própria vida, podendo fazer com ela o que bem entende, até mesmo podendo dispor. Sendo que o suicídio não é considerado crime por motivos lógicos, pois o Estado nunca teria como punir o agente que cometesse tal ato.

 

3 PRINCIPIOLOGIA FUNDAMENTALISTA DA DEMOCRACIA EQUILIBRADA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Como demonstrado pelo professor Rogério Greco em seu pensamento, onde ressalva que:

O inciso XLVII do art. 5º da Constituição Federal também preconiza que não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX (...). Todas essas limitações giram em torno de um princípio, cujas origens remontam ao período iluminista, conhecido como princípio da dignidade da pessoa humana. O ser humano possui valores inalienáveis que não podem deixar de ser observado pelo Estado, encarregado da manutenção da paz social. (GRECO, 2011, p.7).

Demonstrado o que preconiza o pensamento do ilustre professor, fica visível a conexão constitucional da previsão de aplicação da pena de morte apenas em casos de guerra declarada com os princípios norteadores dos direitos fundamentais presentes no ordenamento jurídico brasileiro, neste caso especificamente o direito de viver do indivíduo.

Na ciência jurídica os princípios são considerados como sendo normas gerais abstratas, que norteiam a criação de todo um sistema normativo, ou seja, os princípios são um meio de observação obrigatória para a criação de um ordenamento jurídico democrático. A palavra “princípio” no dicionário significa a origem ou causa primária. Como aduz com precisão Ruy Samuel Espíndola:

Pode-se concluir que a ideia de princípio ou sua conceituação, seja lá qual for o campo do saber que se tenha em mente, designa a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos ou normas por uma ideia mestra, por um pensamento-chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais ideias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem e/ou se subordinam. (ESPÍNDOLA, 2011, p. 59).

Aqui podemos ver e apontar os princípios como orientadores de todo um sistema de normas, seja ele positivado ou não. Tratando como positivados ou não, pois os princípios podem ser previstos de maneira expressa em textos normativos, já outros embora não estejam positivados de maneira expressa, são de seguimento obrigatório, razão esta que faz com que sejam denominados os princípios gerais do direito. Como ensina Ivo Dantas ao dizer:

Princípios são categoria lógica e, tanto quanto possível, universal, muito embora não possamos esquecer que, antes de tudo, quando incorporados a um sistema jurídico-constitucional-positivo, refletem a própria estrutura ideológica do Estado, como tal, representativa dos valores consagrados por uma determinada sociedade. (DANTAS, 2011, p. 60).

Como ensina o ilustre mestre, os princípios gerais do direito devem ser sempre bem interpretados, passo que ocorrendo o contrário nunca teremos a possibilidade de entender como realmente funciona determinado ordenamento jurídico, ou seja, se não formos capazes de entender a letra dos princípios norteadores de um sistema normativo nunca poderemos entender a eficácia de tal sistema. Neste sentido versa Manoel Messias Peixinho:

É problemática a definição de princípios gerais de direito, se se quer alcançar um enunciado formal e incontroverso, à semelhança de outros institutos jurídicos. Del Vecchio entende serem os princípios gerais os mesmos do Direito Natural. Gény, por sua vez, compreende os princípios gerais do direito como os que decorrem da natureza das coisas. Bianchi, Pacchioni e Clóvis Beviláqua consideram-nos como os princípios universais, presentes na filosofia e na ciência. (PAUPÉRIO, 1989, p. 309-310).

Outrora seguindo o pensamento contemporâneo que trata dos princípios, é relevante afirmar que o caráter normativo como as normas de alto nível de generalidade e formadoras de todo o sistema normativo, que possuem capacidade inclusive de verificar se há validade das normas de um ordenamento jurídico que em nível hierárquico lhe devem obediência.

Já se tratando do caráter normativo que os princípios possuem, explica o professor Ricardo Guastini com singela sutileza, apontando seis definições do que entende ser princípio que se encontram estreitamente relacionadas às disposições normativas:

Em primeiro lugar, o vocábulo ‘princípio’ [...] se refere a normas (ou a disposições legislativas que exprimem normas) providas de um alto grau de generalidade. Em segundo lugar [...], os juristas usam o vocábulo ‘princípio’ para referir-se a normas (ou a disposições que exprimem normas) providas de alto grau de indeterminação e que por isso requerem concretização por via interpretativa, sem a qual não seriam suscetíveis de aplicação aos casos concretos. Em terceiro lugar [...], os juristas empregam a palavra ‘princípio’ para referir-se a normas (ou disposições normativas) de caráter ‘programático’. Em quarto lugar [...], o uso que os juristas às vezes fazem do termo’ princípio’ é para referir-se a normas (ou a dispositivos que exprimem normas) cuja posição hierárquica das fontes de Direito é muito elevada. Em quinto lugar [...], os juristas usam o vocábulo ‘princípio’ para designar normas (ou disposições normativas) que desempenham uma função ‘importante’ e ‘fundamental’ no sistema jurídico ou político unitariamente considerado, ou num outro subsistema do sistema jurídico conjunto (o Direito Civil, o Direito do Trabalho, o Direito das Obrigações). Em sexto lugar, finalmente [...], os juristas se valem da expressão ‘princípio’ para designar normas (ou disposições que exprimem normas) dirigidas aos órgãos de aplicação, cuja específica função é fazer a escolha dos dispositivos ou das normas aplicáveis nos diversos casos. (GUASTINI, 2011, p.63).

Em suma princípios são utilizados como objetivos norteadores a serem seguidos para elaboração e implementação de um sistema normativo a ser adotado como ordenamento jurídico de um Estado democrático de Direito, sendo esses princípios sempre observados e bem interpretados para que tal ordenamento jurídico se torne realmente eficaz.

Destaca-se adiante a evolução relativa às fases pelas quais passa a juridicidade dos princípios que norteiam um sistema normativo. “Inicialmente, os princípios possuíam caráter jusnaturalista, seguindo-se a ela a fase positivista, para então, moderadamente, atribuir-se lhes uma visão pós-positivista”. (GRECO, 2011, p. 65). No mesmo sentido ensina o pensamento jusnaturalista do ilustre doutrinador Paulo Bonavides: Os princípios habitam ainda a esfera por inteiro abstrata e sua normatividade, basicamente nula e duvidosa, contrasta com o reconhecimento de sua dimensão ético-valorativa de ideia que inspira todos os postulados da justiça. (BONAVIDES, 2011, p. 232).

Ensina o mestre Rogério Greco:

Na segunda fase, considerada positivista, os princípios deveriam ser extraídos do sistema de norma posto em determinado ordenamento jurídico, servindo-lhe como fonte normativa subsidiária ou, na expressão de Gordilho Cañas, citado por Paulo Bonavides, como “válvula de segurança”, que garante o reinado absoluto da lei. Na fase pós positivista, as constituições, seguindo as lições de Paulo Bonavides, “acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”. Os Princípios, portanto, passam nesta última fase, a exercer a primazia sobre todo ordenamento jurídico, limitando, por meio dos valores por eles selecionados, a atividade legislativa, somente permitindo no caso específico do direito penal, a criação normativa que não lhes seja ofensiva. (GRECO, 2011, p. 65).

Desta forma assevera o pensamento do ilustre professor que os princípios devem ser tidos como uma fonte subsidiária para o sistema normativo, servindo como uma espécie de freio motor que garante o funcionamento eficaz de qualquer lei, pois esta estaria fundada nos princípios garantistas de uma democracia, embasando qualquer lei nos valores por eles estabelecidos para qualquer atividade legislativa, garantindo assim a criação de qualquer norma que não lhe afete.

No mesmo sentido complementa tal ideologia o ilustre doutrinador Paulo Bonavides quando assevera que:

A importância vital que os princípios assumem para os ordenamentos se torna cada vez mais evidente, sobretudo nas constituições contemporâneas, onde aparecem como pontos axiológicos de mais alto destaque e prestígio com que fundamentar na Hermenêutica dos tribunais a legitimidade dos preceitos da ordem constitucional. (BONAVIDES, 1997, p. 260).

Expresso o pensamento do doutrinador, se torna claro que os princípios nada mais fazem que compor a força de todo um ordenamento jurídico, estando eles evidentes através de qualquer regra para sustenta-la. Contudo um sistema normativo para ser rico e eficaz deve sempre se ater a uma Principiologia bem fundada, para que se exclua a necessidade de se legislar tudo de maneira extremamente meticulosa através das regras.

A seguir vejamos princípios que obrigatoriamente devem compor o sistema normativo de um Estado Democrático de Direito, estando sempre embasado na Principiologia contemporânea adotada no sistema jurídico brasileiro.

 

3.1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio em comento, por possuir um conceito deveras abrangente, encontra grande dificuldade em se formular um conceito jurídico básico à seu respeito. Sendo que sua definição e delimitação são extensas, tendo-se em vista que engloba diversas concepções, sendo um princípio criado e construído historicamente como valor moral do ser humano. De tal modo, passa a expressar o pensamento que compartilha em sua lição Ingo Wolfgang Sarlet, quando diz que:

Até que ponto a dignidade não está acima das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos, encontrando-se profundamente enraizados na prática social e jurídica de determinadas comunidades. Em verdade, ainda que se pudesse ter o conceito de dignidade como universal, isto é, comum a todas as pessoas em todos os lugares, não haveria como evitar uma disparidade e até mesmo conflitualidade sempre que se tivesse de avaliar se uma determinada conduta é, ou não, ofensiva à dignidade. (SARLET, 2010, p.60).        

Doravante tem-se como conceito básico de dignidade da pessoa humana algo que seja inerente ao ser humano, ou seja, um tipo de valor que não lhe pode ser suprimido, tendo-se em vista que a conduta desse indivíduo por mais tenebrosa que seja também é portador desse valor. Adotando o conceito expresso no pensamento de Sarlet, que procura de maneira esplendida condensar os pensamentos mais utilizados para se definir o que é a dignidade da pessoa humana, extrai-se que temos uma qualidade distintiva e intrínseca de cada ser humano, o que o faz merecedor de um respeito inigualável por parte do Estado e da sociedade, implicando assim um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a este indivíduo contra todo e qualquer ato que seja de cunho degradante e desumano, vindo-lhe a garantir condições mínimas existenciais para que tenha uma vida saudável, e também lhe propiciar uma participação ativa e corresponsável no seu próprio destino e existência, além de uma vida saudável com os demais componentes da sociedade. Neste mesmo sentido ensina Carlos Henrique Bezerra Leite: 

O princípio da dignidade da pessoa humana foi positivado no ordenamento jurídico brasileiro, com status de princípio fundamental (CF. Art. 1º, III), e é por isso que muitos constitucionalistas o consideram verdadeiro princípio conformador de todo o sistema jurídico nacional. Sabe-se que a tendência dos ordenamentos posteriores à traumática barbárie do nazi-fascismo repousa no reconhecimento da pessoa humana como o centro e o fim do Direito, de modo que diversos Países passaram a adotar a dignidade da pessoa humana como valor básica dos Estados Democráticos. (LEITE, 2011, p.44).

            Sendo a dignidade da pessoa humana consagrado pela Constituição de 1988 como um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, fato que confirma a premissa de que o Estado existe apenas em função do seu humano, ou seja, a dignidade da pessoa humana é de todo modo a maior finalidade do Estado e de uma sociedade democrática. De tal modo que complementa o pensamento de forma ilustre em sua obra Immanuel Kant:

No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade. (KANT, 2004, p.140)

            Tendo sido positivado em excelente hora o postulado da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro, sempre com uma estrutura inexcedível de uma norma de princípio constitucional, postulada como fundamento do Estado brasileiro segundo o artigo 1º, III, da Constituição de 1988, vale ressaltar como um pressuposto axiológico da atual organização política do país. Exta hierarquia juspositiva resulta em consequências inexoráveis e extremas, de tal modo que irradia ao plano da legalidade infraconstitucional, criando assim um padrão de interpretação e de execução das normas, sendo de observância obrigatória, mantendo-se consentânea com a total efetividade da clausula supralegal da dignidade da pessoa humana. Passo que deve ocorrer, a constitucionalização de toda e qualquer regra de direito que interceda para as condições existenciais indispensáveis a uma vida digna de um ser humano.

            

3.2 LIMITAÇÃO DAS PENAS

Levando em conta todo o histórico das penas, tendo em vista seu passado obscuro e horrendo para a humanidade, mais infamante ainda que a própria história dos crimes, sendo as penas mais produzidas numerosas vezes mais violentas do que os próprios delitos, enquanto que um delito as vezes tem uma violência ocasional, impulsiva e necessária, diferente da pena cruel a que lhe é imposta, pois esta é sempre esperada, programada e organizada pelo Estado contra um indivíduo infrator.

Sendo esse o caso da pena de morte, que ao longo da história tem sido a pena de natureza mais cruel aplicada aos delitos, a proibição de tal pena além de atender ao princípio da dignidade da pessoa humana, levando-se em consideração que ao se falar na aplicação da pena de morte esta irá de encontro com o principio da dignidade da pessoa humana, e qualquer violação a este principio não faria jus à limitação das penas, pois se determinada aplicação de pena não se depara com um limite legal ou moral esta mesma pena se encontra em desconformidade com os anseios da sociedade e contra qualquer sistema normativo democrático. Como ensina no mesmo sentido Rogério Greco: 

A Constituição funciona como limite negativo ou como limite positivo do Direito Penal. Para os partidários da limitação negativa, os Estados podem tipificar atentatórias a valores que não tenham sido reconhecidos pela Constituição, desde que tal incriminação não fira os valores constitucionais. Tomando-se como base a legislação nacional, tem-se que, sob essa perspectiva de limite negativo, o legislador ordinário não poderia (como não pode) criminalizar a conduta de associar-se para fins lícitos, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. A Constituição funcionando, efetivamente, como limitadora negativa, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, no inciso XLVII do art. 5º, versa que não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX. (GRECO, 2011, p. 125).

A pena a ser aplicada a um delito não visa o sofrimento do condenado, de tal modo também não pode desconhecer o réu de sua condição como pessoa humana, ou seja, a pena que lhe será aplicada não pode em hipótese alguma ser desumana ou degradante. De tal maneira a pena aplicada ao condenado não pode lhe causar sofrimentos de uma intensidade a ponto de lhe provocar humilhação. Como explana de maneira clara Ferrajoli: 

Acima de qualquer argumento utilitário, o valor da pessoa humana impõe uma limitação fundamental em relação à qualidade e à quantidade da pena. É esse valor sobre o qual se funda, irredutivelmente, o rechaço da pena de morte, das penas corporais, das penas infames e, por outro lado, da prisão perpétua e das penas privativas de liberdade excessivamente extensas. Devo acrescentar que este argumento tem um caráter político, além de moral: serve para fundar a legitimidade do Estado unicamente nas funções de tutela da vida e os demais direitos fundamentais; de sorte que, a partir daí, um Estado que mata, que tortura, que humilha um cidadão não só perde qualquer legitimidade, senão que contradiz sua razão de ser, colocando-se no nível dos mesmos delinquentes. (FERRAJOLI, 2002, p. 318).

Expresso os ensinamentos do ilustre doutrinador, fica evidente entendermos que a norma constitucional atua como um limite do direito penal, de modo que as penas sejam proporcionais aos delitos e não firam a humanidade de quem à elas for condenado, mantendo assim os princípios fundamentais para uma democracia. Sendo considerado também que tal limite se derivado princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, ficando assim demonstrada à essência do princípio da limitação das penas.

 

3.3 INTERPRETAÇÃO PRO HOMINE

Tal princípio é oriundo de um regime objetivo dos tratados internacionais de Direitos Humanos, sendo reconhecido por jurisprudência internacional, de modo que tal princípio é utilizado em qualquer país democrático de direito, como é o caso do Brasil que recepcionou a interpretação PRO HOMINE como um princípio fundamental da democracia brasileira. No mesmo sentido ressalta André de Carvalho Ramos:

Toda exegese do Direito Internacional dos Direitos Humanos, consagrada pela jurisprudência internacional, tem como epicentro o princípio da interpretação pro homine, que impõe a necessidade de que a interpretação normativa seja feita sempre em prol da proteção dada aos indivíduos. (RAMOS, 2005, p. 96).

O pensamento do citado professor esclarece tal princípio com três diretrizes para sua completa interpretação, primariamente é reconhecida a existência de direitos humanos que são inerentes à pessoa do indivíduo, ainda que estes não estejam previstos expressamente em tratados internacionais ou até mesmo na legislação interna dos países. Como por exemplo a Constituição de 1988, reconhece que os direitos e garantias por ela adotados não excluem a possibilidade de outros direitos decorrentes do regime da principiologia por ela adotados, até mesmo de tratados internacionais em que o Brasil seja parte, conforme trata em seu artigo 5º, §2º. Já na segunda diretriz de seu pensamento restringe ao máximo as limitações de direitos que são permitidas em alguns tratados internacionais. E finaliza seu pensamento dizendo que o princípio PRO HOMINE funciona como uma maneira de preenchimento das lacunas existentes nos tratados internacionais que tratam dos direitos humanos.

Portanto, fica fácil concluir que embora os direitos e garantias individuais sejam cláusula pétrea, tais direitos podem ser ampliados, porém nunca restringidos, com fulcro no princípio da interpretação Pro Homine, portanto, é certo afirmar que a pena de morte prevista em nosso ordenamento jurídico é passível de ser abolida.

 

3.4 SUPREMACIA DA NORMA MAIS FAVORÁVEL AO INDIVÍDUO

Trata-se de um princípio amplamente utilizado na hipótese de colisão de normas de direito interno e de direito internacional que versem sobre direitos humanos.

Versa André de Carvalho Ramos que, de acordo com tal princípio:

Nenhuma norma de direitos humanos pode ser invocada para limitar, de qualquer modo, o exercício de qualquer direito ou liberdade já reconhecida por outra norma internacional ou nacional. Assim, caso haja dúvida na interpretação de qual norma deve reger determinado caso, impõe-se que seja utilizada a norma mais favorável ao indivíduo, que seja a norma de origem internacional ou mesmo nacional. (RAMOS, 2005, p. 106)

Tal princípio, encontra-se positivado no art. 29, b, da Convenção Americana de Direitos Humanos, no art. 5º, item 2, do Pacto de Direitos Civis e Políticos, no art. 5º do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no art. 60 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Leciona a doutrina de Carlos Henrique Bezerra Leite:

Adota-se um critério dinâmico de hierarquia das normas jurídicas para a solução de antinomias (conflitos entre regras). Onde, no topo da pirâmide normativa, estará a norma mais favorável ao indivíduo, independentemente de tal norma estar prevista no ordenamento nacional ou internacional. (LEITE, 2011, p. 57).

O STF já aplicou o princípio em tela, no seguinte julgado:

HABEAS CORPUS - PRISÃO CIVIL-DEPOSITÁRIO JUDICIAL-QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA – CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, n.7) – HIERARQUIA CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS – PEDIDO DEFERIDO. ILEGITIMIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL. (STF-HC 90.450/MG, Rel. Min CELSO DE MELLO, NDJe-025, divulg. 05-02-2009, publ. 06-02-2009).

O princípio em tela não se aplica nas hipóteses em que a colisão ocorre entre os princípios ou direitos fundamentais, pois, em tais casos, há outros princípios específicos, como o da razoabilidade e proporcionalidade. Assim sendo, não prevalece o princípio da norma mais favorável na colisão de direitos fundamentais de indivíduos, como é o caso do exame de DNA, em que o presumido pai tem direito à integridade física, e o presumido filho tem direito à certeza de sua filiação.

Tal princípio analisado é de total aplicação à problemática estudada, qual seja a pena de morte na constituição de 1988, pois estamos claramente diante de uma antinomia jurídica entre uma norma de direitos constitucional e normas de direito internacional público, devendo prevalecer como foi estudado, a Supremacia da Norma Mais Favorável ao Indivíduo.

 

3.5. VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL

 Tal princípio é invocado como base dos direitos humanos, constitucional e dos direitos fundamentais, pois tal princípio não pode de maneira alguma ser violado, de modo que sua violação acarretaria no retrocesso de séculos de evolução da sociedade de qualquer país. Como bem explica em sua obra o ilustra doutrinador Wolfgang Sarlet, como se vê a seguir:

A problemática da proibição do retrocesso guarda íntima relação com a noção de segurança jurídica. Assim, convém relembrar que, havendo (ou não) menção expressa no âmbito do direito positivo a um direito à segurança jurídica, de há muito, pelo menos no âmbito do pensamento constitucional contemporâneo, se enraizou a ideia de que um autêntico Estado de Direito é sempre também – pelo menos em princípio e num certo sentido – Estado da segurança jurídica, já que, do contrário, também o ‘governo das leis’ (até pelo fato de serem expressão da vontade política de um grupo) poderá resultar em despotismo e toda a sorte de iniquidades. (SARLET, 2006, P. 34).

Desse modo, fica evidente no pensamento citado que a vedação do retrocesso social deve ser preservada, pois sua violação poderia levar a sociedade à um colapso tendo em vista que o rompimento de tal princípio levaria à desconstrução de toda formação da sociedade que existe atualmente. Fica claro aqui que a aplicação da pena de morte é completamente inviável na sociedade atual, pois métodos tão arcaicos e cruéis só poderiam causar um grande desgaste de todo valor moral e ético que foi construído ao longo dos séculos pela humanidade. Como resume de maneire incomparável em sua doutrina Bezerra Leite (2011, p. 63), que o direito à segurança jurídica é apenas um desdobramento do direito fundamental à segurança. Dito de outra maneira que o direito fundamental à segurança constitui gênero que tem como espécies não apenas o direito à segurança jurídica (respeito à coisa julgada, ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito), à segurança pessoal (direito à integridade física e psíquica), à segurança social (vedação da flexibilização das leis trabalhistas) e às chamadas cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º), mas também direito à proteção por meio de prestações normativas e materiais contra atos – do poder público e de outros particulares – violadores dos diversos direitos pessoais. 

Com fundamento em tal princípio, conclui-se que a aplicação da pena de morte no ordenamento jurídico brasileiro é infundada, ainda que seja revogada a atual Constituição, e o próprio poder constituinte originário estaria diante de um limite imposto pela ordem jurídica internacional, amparada pelos direito humanos e consequentemente, fundamentando tal premissa lógica, com a eficácia do princípio da vedação do retrocesso social. Tem-se aqui a garantia de que o poder constituinte originário não é ilimitado, e o princípio em comento visa garantir a segurança jurídica, onde, podemos afirmar que não existe nenhum direito mundano, sem que haja a certeza absoluta da prevalência da segurança jurídica ilimitada e inabalável.

 

4 ABOLICIONISMO PENAL

O abolicionismo penal é um movimento relacionado à descriminalização, sendo assim a retirada de determinadas condutas de leis penais incriminadoras e à despenalização, entendida como a extinção de pena quando da prática de determinadas condutas. Trata-se de um pensamento que tem como adeptos penalistas como Louk Hulsman, Thomas Mathiensen. Trata-se de um novo método de vida posto apresentar uma nova forma de pensar o direito penal, uma vez que se questiona o verdadeiro significado das punições e das instituições, com o objetivo de construir outras formas de liberdade e justiça. O pensamento serve como um dos meios de se amenizar o caos penitenciário em que se encontra o país. Isso porque pode ser aplicada rapidamente e apresentará resultados a curto prazo, estabelecendo penas somente aos atos criminosos que atinjam, verdadeiramente, o indivíduo ou a coletividade.

Pode-se ainda argumentar que tal medida seria uma espécie de incentivo para que se cometessem tais condutas, vez que estas não mais seriam condutas criminosas e sim atos da conduta humana. Mas o fato de se despenalizar não incentiva a conduta, prova disso é o tratamento atribuído ao usuário de drogas, ele não é criminoso, é dependente, não precisa ser encarcerado, merece ser curado, e, o fato de não mais se incriminar o usuário não resultou em aumento de usuários. Desse modo, apenas para concluir, o abolicionismo penal, que poderia, por exemplo, ser atribuído a crimes leves patrimoniais, é instrumento de justiça e segurança social e está diretamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana.

 

4.1 ASPECTO HISTÓRICO DO ABOLICIONISMO

A partir dos anos 1950 surgiram movimentos criminológicos que foram denominados usualmente como “movimentos de criminologia crítica” sujas bases atingiram os mais variados centros de conhecimento das áreas correlatas, como academias, sociologia, direito, criminologia, etc. Porém e decorrência do desenvolvimento das citadas teorias, da censura por meio de manifestação intelectual contrária, censura por meio de repressão política e física, além do envolvimento de seus pensadores com movimentos políticos de ‘esquerda’, socialistas libertários e revolucionários contrários ao status quo então vigente. Aliado a tais problemas a criminologia crítica indicou diferentes respostas às perguntas “o que fazer?” e “como fazer?”.

O nome talvez mais importante no movimento abolicionista tem sido o de Cesare Beccaria, com sua ilustre obre “Dos Delitos e das Penas”, o debate sobre a legitimidade desta pena capital tem sido levantado. Desde então esta obra vem sendo considerada como um clássico literário sobre o tema.

Na obra citada, o autor escreve sobre a pena capital posicionando-se contra ela, em seu tratado são levantados questionamentos sobre a aplicabilidade da pena de morte, e se é realmente justa em um governo sábio. Questiona ainda Beccaria a origem desse direito em que homens podem tirar a vida de seus iguais, e afirma que tal direito não tem a mesma origem que as leis que protegem.

Já na América Latina o nome que se destaca entre os demais, é Eugenio Raúl Zaffaroni, sendo ele definido como um defensor do realismo criminológico por alguns autores, pois em alguns momentos da carreira o ilustre doutrinador se aproxima das ideias abolicionistas não radicais. Sendo a margem da indefinição classificatória do posicionamento abolicionista de Zaffaroni, o também ilustre Louk Hulsman cita ele “As mais importantes contribuições para a integração da abordagem abolicionista no contexto da América Latina vem de Zaffaroni em seu livro ‘Em Busca de Las Penas Perdidas”

Segundo aponta Zaffaroni (2001, P. 98), ao se referir as diferenças de pensamento dos autores do abolicionismo, “neste sentido, deve ser assinalada a preferência marxista de Thomas Mathiense, a fenomenológica de Louk Hulsman, a estruturalista de Michel Foucault e, poderia ainda ser acrescentada, a fenomenológico-historicista de Nils Christie.”

Sendo importante ressaltar que a partir da diversidade de opiniões e contribuições de dezenas de autores abolicionistas, surgiu após o ano de 1980 pensamentos que afirmam a necessidade de se consolidar um senso comum, aproximando-se assim do movimento que se denomina realismo criminológico.

 

4.2 POSIÇÕES BÁSICAS DO ABOLICIONISMO

As posições básicas do abolicionismo penal podem ser verificadas do extrato do pensamento de seus principais autores, obviamente construindo-se com isso tão somente um esboço dos princípios e objetivos dessa corrente, pois a diversidade de posições doutrinárias e a inter-relação entre elas torna praticamente impossível delimitar quesitos básicos e comuns e a todas. Assim os autores abolicionistas, não sendo provenientes de idênticas vertentes de pensamento, não compartilham de uma completa coincidência de métodos, princípios e objetivos.

Louk Hulsman estabelece os valores morais como um limite para as violências propondo destruir a definição de delito em parceria com a resolução de problemas sociais. A própria nomenclatura de “crime” é substituída por “situações problemáticas”. Como se refere a alguns delitos, diz que: 

[...] a única coisa que tais situações têm em comum é uma ligação completamente artificial, ou seja, a competência formal do sistema de justiça criminal para examiná-las. O fato deles serem definidos como ‘crimes’ resulta de um decisão humana modificável; o conceito de crime não é operacional. [...]. É a lei que diz onde está o crime; é a lei que cria o ‘criminoso’. (HULSMAN, 1993, p. 64).

Sendo que o delito não tem uma realidade ontológica, assim sendo o delito é apenas um produto social da política criminal que também constrói, de tal modo, a realidade da sociedade. Os problemas são reais, mas o delito é um mito comum, que tem consequências reais, quais sejam as de criar novos problemas e ainda mais graves. Assim, Hulsman parece se inclinar pela última solução possível, fazendo uma aposta bastante corajosa na indiferenciação das fortes fronteiras formadas entre os seres humano, ou seja, entre o ‘eu’ e o ‘outro’, levando a acreditar uma diferenciação entre ‘amigos’ e ‘inimigos’.

Zaffaroni defende que o atual sistema oenal tem uma legitimidade um tanto utópica, pois a legitimidade não pode ser suprida pela legalidade, como cita em sua obra: 

O abolicionismo nega a legitimidade do sistema penal tal como atua na realidade social contemporânea e, como princípio geral, nega a legitimação de qualquer outro sistema penal que se possa imaginar no futuro como alternativa a modelos formais e abstratos de solução de conflitos, postulando a abolição radical dos sistemas penais e a solução dos conflitos por instâncias ou mecanismos informais. (...) (ZAFFARONI, 2001, p.89).

Na verdade, existem diferentes tipos de abolicionismo, sendo possível falar até mesmo em um abolicionismo anárquico, mas o abolicionismo que aqui se refere não é este, e sim o abolicionismo que representa a mais original e radical proposta político criminal dos últimos anos, a ponto de ter reconhecido o seu mérito até mesmo por seus mais severos críticos, sendo assim demonstrado o abolicionismo como um pensamento fundamentado e viável. De maneira bastante generalista, podem-se indicar esquematicamente as seguintes características ou aspectos relacionados ao abolicionismo:

1) aumento de políticas preventivas das situações, atuação antes de se tornar situações problemáticas (delito/crime);

2) solução dos conflitos sem a necessidade de apelar para o modelo punitivo atual, fazendo uso, por exemplo, do modelo conciliador.

3) deslocamento do poder punitivo do Estado para um tecido social, revigorado, baseado em princípios morais e éticos comunitários.

4) abolir não o direito penal, mas o sistema punitivo atual, mudando percepções, comportamentos, extinguindo os paradigmas do sistema penal, sobretudo o encarceramento.

 

4.3 PENA DE MORTE E O ABOLICIONISMO

Na esteira desta discussão sobre pena de morte, será necessário alcançar o máximo da propositura de quem deseja que esta situação ocorra, e com qual objetivo. Ora é inevitável perceber, que outrora o poder do Monarca era de controle absoluto sobre a vida e a morte de cada “súdito”, e esta vertente seccionava a manutenção do poder absoluto do Rei. Nos dias atuais, a quem interessa a outorga deste poder? Ao cidadão que em redes sociais apela para justiça vindicativa, aquela que tolera inclusiva a justiça com as próprias mãos? Ou então, não obstante aquele que pleiteia o cargo máximo de um país?

A mudança sútil, porém, inevitável de mudar o paradigma do suplício para corpos     dóceis, o que na prática muda se a prática, porém, não seu objetivo primal que é o controle, a maneira de controlar, sem a rigidez da aparência do uso da força, com riqueza de detalhes se usa uma estratégia menos afrontosa, contudo, com eficiência. O que isto pode significar em termos de mudança no que se permitia e o que passou a permitir? Há        sem dúvida a ideia de mudança radical, quando a violência deixa de ser objeto necessário, para haver uma forma de controle através de outra situação, menos acachapante, podendo ser vista como uma mudança de fato e de verdade. (DUARTE, 2017, p.79 e 80). 

É de suma importância verificar este fato, haverá vencedores ao se modificar o eixo da estrutura penal brasileira, e certamente haverá perdedores se esta empreitada ocorrer.E pior ainda, a pena de morte se descoberta depois que como no caso histórico aqui narrado, descobrir que o condenado a pena capital é inocente, como se poderia consertar tal situação?

Para não perder a rédea da situação que transmuta nesta questão, se faz importante declinar reapresentar como na história das penas se situa este aspecto de penalizar de forma capital o ser humano que transgredisse a lei.

A história da pena revela que a sua existência foi modelada por diversos totens e tabus que lhe imprimiam contornos místicos enquanto os diversos castigos corporais até a morte traduziam as expressões cruentas da defesa e da vingança. O infrator também poderia ser condenado à perda da paz que se caracterizava pela expulsão do clã e a impossibilidade de sobrevivência diante das forças hostis da natureza, da agressão de animais ou da dificuldade na colheita de alimentos. (DOTTI, 1998, p. 31) 

Ao mensurar como a história narra a evidência de excesso de zelo, para não dizer penas sanguinárias, fica evidente que diante do crime praticado, buscava se a vingança, algo que durante um período o direito penal conviveu pacificamente, por óbvio que mudanças começaram a ocorrer principalmente na base de mudar a orientação da população sobre o efeito pernicioso trazido por esta maneira de executar a aplicação da pena, deixando de ser algo público, eram realizados em plena praça pública, como também era uma forma de apontar para a figura poderosa do Monarca que se manifestava como todo poderoso, diante dos seus súditos, envergando o direito sobre vida ou morte de cada pessoa..

Os espetáculos eram demonstrações de poder e força do Estado, era uma forma de apresentar ao povo o controle do monarca e a amplitude alcançada por ele, sem que com isso perdesse seu objetivo central que é controlar os “súditos”, de forma a não terem controle sobre a própria vida. Essa dependência gerada por este poder é claramente observável a transmitir esta dependência é o cerne de quem pretende controlar. O carrasco era a tipologia do Monarca, que encarnava na execução sua figura arguta e singular, apresentando de forma viril a força do Estado sobre os súditos, sendo implacável e cruel havia a clara intenção de ser o Todo Poderoso, aquele que perscruta tudo e a todos. Neste ponto requerer justiça, ou equidade era totalmente desnecessário para o governante, afinal o suplício servia com outros propósitos e não somente a aplicação de uma pena. Era acima de tudo empreender a visão de predomínio, de disciplina, de controle. (DUARTE, 2017, p. 33 e 34). 

Diante desse retrato histórico cumpre se perguntar, quem estaria tão interessado que estas medidas voltassem do arcabouço da história até nossos dias? O povo que, infelizmente é conduzido como massa de manobra, ora para um lado, ora para outro lado? Ou aqueles que pretendem empunhar o poder, a exemplo dos monarcas como divindade?

As respostas a esta pergunta têm que passar pela leitura que se faz de outros países que abandonaram as velhas roupagens de solução “mágica”, para a realidade dos fatos. Longe do discurso sociológico, ou de direitos humanos cegos ambos a realidade central do crime, o direito penal não pode se permitir retroceder, centenas de anos, por conta da falência do Estado frente a criminalidade. O anteparo tem que ser buscado fora do discurso raso. Se faz mais do que necessário buscar de forma translúcida meios eficazes para transformar um problema de grandes proporções, para algo que realmente traga uma solução não como paliativo, mas construindo uma estrutura ainda não alcançada, para tanto se faz necessário abandonar a vaidade e procurar entre os países que mudaram e reconstruíram o sistema penal, e retirar o que se pode e deve ser aplicado no Brasil.

Com esta ideia em mente é oportuno se deter frente a proposta de dois autores robustos do sistema carcerário e penal, Zaffaroni e Hulsman. 

Vem do primeiro autor esta ideia de como poderia funcionar o sistema prisional e aplicação do direito penal:

Na hipótese de se alcançar este modelo e o direito penal mínimo proposto – e, inclusive, aceitando-se a manutenção deste direito penal mínimo de forma a evitar a vingança e um controle totalitário por parte dos órgãos executivos de sistema penal – impor-se-á o questionamento da possibilidade de se neutralizarem esses perigos através de meios que, menos violentos do que a pena, sejam capazes de resolver os conflitos de forma efetiva. De antemão, não se deve excluir a possibilidade do modelo de sociedade que -  implícita ou explicitamente – corresponda a uma intervenção penal mínima, e encontrar, finalmente, a forma de resolver os conflitos suprimindo, inclusive, este direito penal mínimo. Deste ângulo, o direito penal mínimo apresentar-se-á como um momento do caminho abolicionista. (ZAFFARONI, 2014, p.105). (Em busca das penas perdidas).

Zaffaroni propõe, de forma explicita e possível a análise de buscar retirar da pena o teor de vingança, algo que realmente o Direito Penal em vários países, inclusive o Brasil, já expos em sua carta Magna, alçando a vida como bem jurídico que deve ser tutelado como o maior bem da sociedade. Então é coerente que Zaffaroni defenda, tal condição com base no valor de bem jurídico mais elevado na Constituição.

 Já Hulsman, é um pouco mais radical, entenda-se por ser europeu e ser alemão, um dos povos mais disciplinados. Tendo em vista esta visão, não é difícil entender porque ele defende o abolicionismo completo, ou seja, de forma mais ampla possível.

Seria excelente que a discussão e estas ideias pudessem sanar este problemático trágico nos países e cidades, como se pode observar não pode, então fica uma questão importante, a reflexão, observando os dois lados do problema, não apenas imaginando e se fixando apenas em uma solução.

 

Considerações Finais

O tema é espinhoso e de difícil aceitação geral, pois, sempre se teve a ideia de que na aplicação da pena de morte, se iria diminuir o número de crime e, por conseguinte de pessoas praticando crimes.

Ledo engano, em nenhum momento da história antiga ou recente, se conseguiu diminuir o número de crimes apenas por instituir a pena de morte. Ao contrário, pode se afirmar que quanto mais duras as penas, mais sanguinárias, o crime caminhava junto, se tornava mais cruel e muito mais crescente.

Há países atualmente que reproduz um número de psicopatas e sociopatas, tão grande que há cadeias próprias para quem tem esta fascinação por crimes violentos, e tormentosos; não esquecendo dos “serial killers”, fazendo com que haja departamentos especializados em traçar perfis, analisar os casos de forma muito mais amiúde do que os crimes rotineiros, e a pena de morte existe e não inibe o crime nem o criminoso.

Por isso, o convite a reflexão olhando não apenas uma lado, ter que se livrar dos praticantes de crimes, mas pensar no processo estabelecido no teor do estudo das penas no Brasil, que a pena tem duas elementares basilares: retribuição e prevenção. 

Lembrar que nossa Constituição e principalmente o Código Penal trabalha com estas teses, devem nos fazer repensar algumas posições assumidas.

Portanto, sem a busca da polêmica e nem de verdade absolutas, o convite é simples e importante, refletir de forma calma e pacifica com empatia e sensibilidade para os problemas que cercam o crime no Brasil.

Nunca é tarde para lembrar, ninguém nasce como “criminoso”.   

 

Referências bibliográficas

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BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Gulbenkian: Serviço de Educação Fundação Calouste, 1998. COSTA, José de Faria (Trad.).

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Data da conclusão/última revisão: 15/03/2021

 

 

 

Jean Pablo Malesza de Paula

Acadêmico do 9 semestre de Direito do Centro Universitário São Lucas, Ji-Paraná- RO;

Técnico em informática pelo Instituto Federal de Rondônia.