Breves considerações sobre a história do processo penal brasileiro e habeas corpus
A história do poder punitivo é rude, pois é capaz de suprimir a liberdade e, em alguns casos até mesmo a própria vida.
Gisele Leite
Com a velocidade estonteante da divulgação através dos meios de comunicação, dá-se a formação da opinião pública sobre os mais diversos assuntos, e, entre eles, os crimes que causam impacto e polêmica no seio da sociedade brasileira.
O direito, sem dúvida, não é mais assunto restrito de juristas e doutos.E nem reside no restrito circuito acadêmico.
O cidadão comum cada vez mais tenta engajar-se dentro do contexto dos fatos que envolvem crimes, decisões judiciais, decisões governamentais que infalivelmente irão influenciar direitos e deveres.
Longe já caminha o tempo, em que os conteúdos das decisões judiciais se revestiam de um teor exacerbadamente erudito, rebuscado e, por vezes até, ininteligíveis. É curial que os juristas expliquem e muito bem o que é o direito, e, afinal para que serve.
Embora de difícil definição em que pese as mais relevantes e memoráveis opiniões doutrinárias, a finalidade do Direito se revigora sempre em garantir a sobrevivência do homem no seio da sociedade, enfatizando mais e mais a função social dos valores jurídicos e quiçá da própria ciência jurídica.
É assaz importante que cada vez mais haja um número maior de pessoas que bem conheçam seus direitos principais que são aqueles que representam as garantias individuais e, estão presentes na Constituição Federativa Brasileira.
A história do direito processual penal no Brasil retrata o enredo de liberdade e de punição e passa por diversas óticas as questões penais onde há sempre o homem como sujeito.
A história do poder punitivo é rude, pois é capaz de suprimir a liberdade e, em alguns casos até mesmo a própria vida. Como foi caso, por exemplo, de Tiradentes, Frei Caneca, entre outros mais anônimos, porém, não menos mortais.
O direito processual diferentemente do direito penal que se preocupa em definir os crimes e atribuir-lhe pena. É aquele que regulamenta o modo como é demonstrada a verdade sobre o fato típico e, ainda da responsabilidade criminal.
E, ainda trata o modo pelo qual a decisão judicial deve resolver o conflito entre o interesse de punir e o interesse de liberdade que nasce com o crime.
É o ramo do direito que informa quando, por que e de que forma uma pessoa pode ser presa. Outro significado é o referente ao processo como instrumento concreto, e que corresponde ao conjunto dos atos praticados em direção a direção. Processo é, pois o método de compor a lide penal que possui peculiaridades cruciais quer para o mundo jurídico quer para a sociedade.
O método para a pesquisa da verdade criminal não se baseia na brochura estética em que traduz o processo, ao que chamamos vulgarmente de autos. E na minha modesta opinião deveriam ser baixos... Enfim, o processo penal é meio pelo qual o juiz vai ver a verdade e, decidir se alguém é culpado ou inocente.
É o Estado o titular do direito de punir ou “jus puniendi”. Tendo em vista que o crime não lesa tão-somente direitos individuais, mas sobretudo sociais também e perturba as condições de harmonia e de estabilidade, no dizer Magalhães Noronha.
Adiante o doutrinador ainda assevera: “Mas incumbe ao Estado que é um meio e não um fim a consecução do bem comum, que não conseguiria alcançar se não estivesse revestido do jus puniendi, do direito de punir o crime, que é o fato mais grave que o empece na consecução daquela finalidade”.
É curial que jus puniendi é limitado e nas sociedades civilizadas vige geralmente o princípio da reserva legal Nullum crimen, nulla poena sine lege que limita o direito de punir.
Mesmo diante de gravame delito, não se pode discricionariamente aplicar a sanção que só é cabível mediante processo regular e julgamento, pois a ação penal atinge fatalmente o status libertatis do indivíduo, daí: Nulla poena sine judicio.
Deve o Estado além de ter o direito de punir, dispor de outro direito que vai realizar aquele que é o jus persequendi ou jus persecutionis (direito de ação) que de certa forma materializa e cristaliza o jus puniendi.
O jus persecutionis só se realiza através de normas preestabelecidas forma dat esse rei, que é a forma que dá o ser ao direito. Enfim este direito é exarado na sentença que cumpre sua missão de dirimir o conflito entre o crime e o direito de liberdade do acusado.
O processo tal como o procedimento, enquanto um é método, outro é ritmo, se traduz em um conjunto de atos legalmente ordenados para apuração do fato, da autoria e exata aplicação da lei. O fim é este: a descoberta da verdade, o meio.
De Marsico conceitua processo penal dizendo: ”O direito processual penal estuda o conjunto das normas ditadas pela lei, para aplicação do direito penal na esfera judiciária, tendo por fim não só a apuração do delito e a atuação do direito estatal de punir em relação ao réu, mas também a aplicação das medidas de segurança adequadas às pessoas socialmente perigosas e a decisões sobre as ações conexas à penal...”.
Nem todos os doutrinadores preferem a expressão direito processual penal, há quem prefira direito judiciário penal como faz Vicente de Azevedo.
Apesar da tentativa de serem sinônimas coisas que em vernáculo pátrio é quase que impraticável, esclarece sabiamente João Mendes; “O direito judiciário é o complexo de princípios e leis que regem a atividade do poder judiciário e dos auxiliares, na administração da justiça” acrescenta que o Direito Judiciário “abrange o processo e muito mais: abrange princípios como ciência, e leis sobre as ações; princípios e leis sobre as provas; princípios relativos ao processo.”.
Há de se salientar que a defesa do acusado e a regularização de um julgamento idôneo e justo é um grande conquista da humanidade. Mesmo ante a confissão é curial o processo penal para que se possa apurar a culpa do réu, e, para isto, é imprescindível a presença de um julgado imparcial para que se atue em busca da justiça.
A vingança pessoal não é mais admitida em nosso sistema jurídico, atualmente só o Estado está autorizado a punir e, assim mesmo através de um devido processo legal e culminar a sua decisão por meio da sentença do juiz.
Em Roma Antiga havia apenas duas infrações que instigavam a perseguição pública (crimina), perduellio (traição e atentado contra a segurança do Estado) e parricidium (morte do pater do chefe do grupo) e, ambas atingiam o governo.
As demais infrações, entre as quais o furto e as ofensas físicas ou morais eram puni d as pela própria vítima que então assumia a vingança.
Mas as vinganças foram implacáveis, e as injustiças eram toda praticadas com cada vez maior freqüência gerando um perigoso círculo vicioso.
Na Idade Média não havia aplicação centralizada da justiça, só com o direito canônico e, mais tarde, com o Estado absoluto cristalizou-se o monopólio dos meios de coerção.
Brasil enquanto colônia lusitana herdou um sistema jurídico já estabelecido em Portugal onde vigiam inicialmente em 1521 as Ordenações Afonsinas. Aplicadas efetivamente foram as Ordenações Filipinas a partir de 1603.
As Ordenações do Reino eram compilações das leis de Portugal e fundamentavam a estrutura judiciária do Ancien regime. Reproduziam as regras do direito canônico. Por muito tempo coexistiram as normas canônicas ao lado das normas do poder secular.
O Código Afonsino foi o primeiro de todos e foi em sua época avançadíssimo e regulamentava assuntos da administração do estado e representava bem o ideal de centralização do poder.
Outro dado interessante é que em todas Ordenações Portuguesas o Livro V (quinto) era dedicado aos delitos e às penas, ou seja, à matéria criminal.
Para se imaginar com a máquina judiciária funcionava na época basta ler o romance de Ana Miranda, “Boca do inferno” (Companhia das Letras) que tem como personagens Gregório de Matos e o Padre Vieira envolvidos no assassinato de alcaide-mor Francisco de Teles de Menezes, na Bahia, na segunda metade do século XVII que teve inúmeras implicações políticas.
A então chamada ”devassa”, ou seja, a investigação realizada pela autoridade para descoberta de crimes, bem resume a situação política do Brasil colonial do século XVII, “havia uma conjuntura sombria e arrasada onde vigiam princípios misturados de origens romanas, canônicas, num entrelaçar bárbaro-cristão terrivelmente conflitante”.
A noção do direito variava entre regras de viver e a definição do pecado também. Ana Miranda logo avisa em sua obra que a Portugal não convinha que houvesse na Colônia letrados, de sorte que para ser advogado eram necessários oito anos de estudos em Coimbra.
Outro caso também homérico que nos pode ser útil para entender o processo penal, é por meio de Tiradentes que fora acusado de lesa-majestade e condenado à força em 1792.
Várias devassas instauram-se em Vila Rica e Rio de Janeiro e, então, Lisboa enviou para cá um tribunal para o julgamento. Entre 12(doze) condenados à morte apenas Tiradentes foi levado à execução. Não obstante enforcado, esquartejaram-lhe o corpo e ainda o ofertaram à apreciação exemplar do público.
Naquela época, as Ordenações Filipinas ditavam as regras penais e processuais no Brasil, e todas as penas eram cruéis, e a pena capital poderia ser por enforcamento, por fogo, precedida de longos tormentos.
Penaliza-se ainda por açoites, confiscação de bens, (degredo para África ou Índia) marcas infamantes, serviços nas galés (trabalho forçado). Todas as normas repressivas eram implacavelmente atrozes.
Aliás, utilizava-se de métodos torturantes quando havia provas contra pessoa que insistia em negar sua culpa. Tais contundentes meios serviam para extrair a confissão da pessoa que insistia em negar sua culpa e, esta, na qualidade de regina probatorum, era suficiente para arrostar um condenação , se repetida em juízo, em lugar diverso daquele em que as torturas tivessem sido praticadas e quando as dor estivesse passado.
Tais eram as medidas para que a confissão fosse tida como verdadeira. Fidalgos, juízes, doutores em cânones, leis e medicina e membros do alto clero não eram submetidos aos tormentos, na maioria dos casos. Porém, tal exceção não se aplicava ao crime de lesa-majestade, falsidade, moeda falsa, feitiçaria, sodomia e furto.
Com a vinda da família real para o Brasil após 1808, a edição das normas passou a ser feita aqui, constituíam os alvarás e decretos, onde se concedia perdão e se comutavam as penas.
O crime de heresia era conhecido pelos juízes eclesiásticos, mas a Igreja mão executava as penas impostas conforme previa o código filipino.
A igreja foi uma poderosa instituição que sobreviveu à época medieval, adotando e transmitindo desde a Antiguidade, a organização hierárquica e centralizada, efetivamente burocrática, conseguindo impor seu poder mesmo ante as estruturas frágeis e fragmentadas.
A Igreja reconhecidamente um poder supranacional, bem acima das coroas e dos privilégios nobiliásticos. Durante a Alta Idade Média (1050-1300) papas dotados de personalidade peculiar eram apoiados pelo entusiasmo popular e exerciam seu poder que fora mais fortalecido com as cruzadas.
Interessante notar que no século XII, os papas passaram a ser coroados com barrete e a tiara de ouro aderindo francamente à simbologia da monarquia.
Como jurista mereceu amplo destaque o papa Inocêncio III (1198-1216) que estudou direito em Bolonha e elaborou formas para o início do procedimento criminal. A inquisição era a investigação realizada pelo próprio juiz diante da notoriedade do crime.
Inocêncio III no quarto Concílio de Latrão traçou a imprescindibilidade do processo escrito, o que representou uma importante conquista dentro da história do processo criminal.
O papa Gregório IX(1227-41) compilou normas jurídicas em Decretais, bem elaboradas serviram de método que fora acolhido pelas Ordenações Afonsinas.
A Igreja inicialmente era coerente com os preceitos do cristianismo antes de se iniciar a perseguição de heresias e heréticos.
Havia a preocupação com o indivíduo, com sua dignidade, tendo-se proibido as ordálias e os juízos de deus (quer correspondiam aos modos de resolução de conflitos por resistência física em provas e em duelos).
O próprio Gregório IX o das célebres Decretais instituiu a Inquisição papal em 1231 trazendo para o direito canônico a pena de queima de hereges (já anteriormente adotada pelo poder secular).
O direito canônico era compilado para ser aplicado somente aos membros da Igreja, mas Bonifácio VIII que se tornou papa em 1294 deu maior abrangência à forma de inquirição idealizada por Inocêncio III e, a partir de então, iniciou-se o caminho para que a Santa Inquisição controlasse o Ocidente e suas respectivas colônias por cerca de três séculos.
O Tribunal de Inquisição do Santo Ofício estabeleceu-se em 1536 em Portugal estando vinculado ao rei e, então coexistiam o juízo secular e o juízo eclesiástico.
As vezes aconteciam que o mesmo delito, como, por exemplo, a bigamia estivesse submetida às três esferas diferentes de aplicação de justiça, não obstante tais competências acolhessem regras jurídicas, muitas vezes análogas e semelhantes.
No Brasil não se instalou propriamente o Tribunal do Santo Ofício e nem mesmo ocorreram os autos-de-fé que eram espetáculos montados para que o povo presenciasse a queima dos condenados pela Santa Inquisição.
Mesmo assim se fez presente a Santa Inquisição no Brasil através dos enviados de Portugal e pela remessa de nossos processados a Lisboa. Bispos aqui tiveram também a função inquisitorial embora não fosse do Santo Ofício.
Ocorreram várias visitações de Santo Ofício e, quando aqui chegavam se submetiam as autoridades civis locais. Na época, se preocupava em reprimir o judaísmo, as heresias e os delitos sexuais (como a bigamia e a sodomia).
Mesmo quando cessaram as visitações, a partir do século XVII, o santo Ofício consolidou com seus emissários espalhados pelas colônias continuando a reprimir os crimes de heresia e outros.
Ronaldo Vainfas relata que com a chegada do inquisitor, eram afixados editais da fé nas portas das igrejas, e eram lidos aos domingos. Objetivavam convocar as pessoas a confessarem seus pecados e faltas e a delatarem umas as outras. Enumerava também quais delitos deveriam ser comunicados, para incentivar a reflexão.
O tempo da Graça era o período de trinta dias que o visitador concedia para que ocorressem as confissões espontâneas. Se feitas nesse prazo não acarretariam penas corporais, foi tal método muito utilizado pelo inquisitor Heitor Furtado em 1591 na Bahia.
As visitações do Santo ofício distinguiam-se das diocesanas (da Igreja) que eram mais simplificadas e pedagógicas. Embora a Inquisição fosse subordinada ao rei, e, não aos bispos, como estava o tribunal eclesiástico, os propósitos de ambos eram os mesmos e os quadros do Santo Ofício foram preenchidos por membros do clero. A Igreja colaborou decididamente com a Inquisição.
Os métodos da Santa Inquisição em todos os lugares onde passou sempre foram os mesmos: segredo das apurações, acolhimento de notícias imprecisas de atos proibidos, a confissão como prova máxima e geralmente obtida mediante tortura.
O que atualmente é considerado degradante, cruel e desumano todavia, naquela época revelava-se apenas como um procedimento burocrático normal na Justiça do Antigo Regime.
Também em Portugal se utilizava a tortura como método, a partir das Ordenações Manuelinas, bem antes do advento da Inquisição (E não se fazia diferente no Brasil colônia.).
É um clássico exemplo sobre os métodos de inquisidores de Nicolau Emérico, escrito em 1320. Tais regras do direito canônico bem elucidavam o significado da investigação criminal.
Muito do atual e vigente sistema investigatório criminal teve enfim sua gênese na forma com a qual a Igreja apurava os atos que ofendiam os preceitos da fé. Eram métodos burocraticamente aplicados, pois a Igreja, como se constatou, resistiu muito tempo, e, particularmente à Idade das Trevas (a idade média) em razão de sua apurada organização institucional.
Michel Foucault em sua obra “A verdade e as formas jurídicas” esclareceu o motivo pelo qual o procedimento de inquirição de faltas e crimes, adotado pela Igreja nas visitas que os bispos realizavam as dioceses e que significa uma forma de saber-poder.
O inquérito serviria para dar autenticidade ao que seria, a partir da investigação, considerado como uma forma legítima de saber-poder. Até hoje em dia, permanece o inquérito como a forma adotada para a investigação de crime e autoria.
Somente após a Independência do Brasil ocorrida em 1822, houve a possibilidade do Brasil formar ordenamento penal e processual penal próprio. A consciência nacional inspirada pelas dificuldades sociais e econômicas e ainda por ideais humanistas revolucionários vindo da Europa e da América do norte estava em livre trâmite nos meios intelectuais e de políticos no Brasil.
Acreditava-se na liberdade como um estado a salvo do controle esmagador do Estado sobre as condutas individuais. Frei Caneca (condenado à morte por fuzilamento por participar na Confederação do Equador em 1824) e Cipriano Barata (jornalista que lutou pela emancipação brasileira e pela real autonomia após independência) acreditaram nessa concepção de liberdade que valorizava a lei como o único limite para o agir humano.
Em 1791, já havia a Declaração universal dos direitos do homem e do cidadão inaugurando o regime liberal-individualista, e os periódicos não cansavam de divulgar os novos ideais de liberdade e igualdade.
Cesare Beccaria também havia publicado seu famoso livro Dos delitos e das penas discutindo e questionando todos os métodos judiciários do Antigo Regime. Aliás, na Itália ele, Pietro Ferri entre outros intelectuais iluministas publicavam o periódico Il Caffe que servia para criticar o desumano sistema repressivo vigente.
No Brasil também circulavam os folhetos e panfletos a divulgar as idéias iluministas e humanistas, destacando a discussão sobre a liberdade. A liberdade de expressão já era bem considerada, e em 1821 promulgou-se a lei sobre a liberdade de imprensa.
Neste contexto, surgiu a Constituição Brasileira de 1824 outorgada por D.Pedro I e que estabeleceu no art. 179 direitos civis e políticos apesar de bastante liberal no tocante os direitos individuais, dispunha com precisão sobre as possibilidades de restrição à liberdade. Apresentava, também, o que se denomina princípio da legalidade, estabelecendo que “nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” (art.179, 1º.) E acrescentava: “que nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública”.
Todavia, a Carta Magna do Imperador destinava-se aos poucos brancos e mestiços que eram eleitores. Os escravos permaneciam excluídos das novas disposições, pois não eram considerados cidadãos. Somente os descendentes de escravos libertos poderiam votar, se financeiramente preparados, já que o voto era censitário. Nem mesmo os alforriados eram considerados cidadãos brasileiros. No Rio de Janeiro, em 1821 uma importante pesquisa revela que 46 % da população era de escravos.
Assim o arremedo de cidadania brasileira se revelava superficial e apesar de liberal a Constituição Imperial era imposta e continha terríveis paradoxos como o fato de a lei ser igual para todos apesar de consentir a escravidão, excluindo os escravos da cidadania. Apesar disto, os direitos e garantias então estabelecidos inicialmente seriam bastante valiosos para o desenvolvimento do ordenamento jurídico brasileiro.
A Carta outorgada no Brasil aboliu açoites, torturas, marcas de ferro quente e outras penas cruéis. Recomendou que as cadeias deveriam ser limpas, seguras e arejadas. Ainda perdurava a pena de morte. Quanto à escravidão esta seria problema a ser tratado pelo direito civil por se tratar de propriedade patrimonial.
Ressalte-se que no que tange aos escravos, não logrou êxito em proibir as punições corporais. Na verdade, os escravos vivam uma difícil transição em ser coisa e gente ao mesmo tempo para o direito.
No Brasil, já naquela época vigia a dificuldade de concretização das normas escritas e ainda uma ideal de repressão penal que jamais fora executado.
As Ordenações Filipinas continuariam vigentes toda vez que não contrariasse os preceitos constitucionais até vir a ser editado um novo Código Processo Criminal em 1832 cuja elaboração já tinha sido determinada no texto constitucional.
Permaneceu indefinido o sistema penal brasileiro até 1830, com a edição do Código Criminal do Império, e, logo após o Código de Processo Criminal.
As prisões eram locais tenebrosos, o calabouço era horroroso e destinado a açoites, prisão e guarda de escravos. E havia ainda algo pior que era o Aljube que era a prisão para escravos e não-escravos. Os presos detidos em condições desumanas muitos nem haviam sequer sido julgados ou condenados.
Os crimes não estavam nitidamente definidos bem como as penas a serem aplicadas que apenas seguiam o livre pensar do magistrado. As normas proibindo condutas podiam ser editadas por autoridades administrativas ou judiciais.
Em boa hora o Código Criminal veio a solucionar tais nebulosidades quanto à definição dos tipos penais e a gradação das penais apesar de manter a pena capital por enforcamento, assim como as galés, trabalho forçado. Os açoites como pena corporal fica reservado aos escravos e não poderiam exceder a mais de 50(cinqüenta) por dia.
O Código Criminal ainda previa que para escravos condenados à pena diversa das de morte e galés, a punição aconteceria por açoites, em número determinado pelo juiz. Após bem dadas às surras, o escravo seria devolvido ao seu senhor, que deveria ainda mantê-lo acorrentado a um ferro por tempo determinado pelo juiz criminal.
O primeiro Código de processo penal brasileiro foi o de 1832 e denominava-se Código de Processo Criminal de Primeira Instância, foi liberal e oferecia muitas garantias de defesa aos acusados. Valorizava os juízes, conferindo-lhes funções importantes. Havia, na época, além dos juízes de direito, juízes de paz que exerciam atribuições policiais e eram eleitos.
O Código de Processo Criminal seguindo o código Criminal distinguia os modos de proceder para os crimes públicos e para os particulares. Os primeiros davam causam à ação penal promovida pelo promotor público ou por qualquer cidadão (quando cabível a ação penal popular), entre eles estavam incluídos os crimes políticos.
Já os crimes contra os particulares conferiam ao ofendido a possibilidade de promover a ação penal, até mesmo o homicídio eram considerado particular, pois ofendia a segurança individual.
A relevante distinção se faz curial até hoje, pois as legislações variam conforme os poderes que possuem os ofendidos no processo criminal. Também quem não fosse a vítima poderia igualmente promover a ação penal, quando o crime fosse público, tal era a ação penal popular que hoje não mais existe.
Em verdade, ainda existe uma única hipótese em que qualquer cidadão pode acusar: quando for crime de responsabilidade cometido pelo Presidente da república ou por ministro (art. 14 da Lei 1.079/50) que deverá ser feito perante a Câmara dos Deputados.
A ação penal é conceito técnico jurídico e que pode ser explicado como medida adotada para que seja iniciado o processo que vai redundar na condenação ou absolvição de quem estiver sendo acusado por crime.
Aliás, a natureza processual do direito de ação é tema inquietante principalmente pelo fato de seu enquadramento da ação penal no sistema legal normativo. Poucas referências existiram no Código Criminal de 1830. Pondera Frederico Marques que as regras contidas nos arts. 100 e 100 do atual Código Penal brasileiro melhor estariam se fossem postas no CPP.
Porém o fato de ser disciplinada no CP não lhe fere a natureza jurídica que continua mesmo sendo processual, aliás, sobre o caráter adjetivo da norma alega G. Leone, que não se infere da sua localização e, sim do objeto de sue conteúdo, de sua finalidade.
Realmente, existem normas no processo penal que não possuem evidentemente o caráter processual penal, como àquelas relativas à prisão administrativa (arts. 319 e 320 do CPP).
A ação penal é um momento da persecutio criminis e, o inquérito policial não integra processo, mas compreende-se no procedimento, pois, enquanto o primeiro é atividade jurisdicional que objetiva a aplicação da lei, o procedimento é o modo pelo qual essa atividade se realiza e se efetiva.
Conceituou a ação penal João Mendes de Almeida Júnior como “o direito de invocar a jurisdição do juiz é um atributo do autor; é o direito de requerer em juízo aquilo que é devido ao autor” – jus persequendi in judicio, quod sibi debetur, como define Celso, reproduzido nas Instituta de Actionibus.
Em suam, a ação é o direito de invocar-se o Poder Judiciário para aplicação do direito objetivo e que se subordina a condições.
Em princípio, toda a ação penal é pública, pois é corresponde a um direito subjetivo perante o Estado-Juiz. A distinção que se faz de ação pública e privada repousa unicamente na legitimidade para agir.
Assim, a pública a ação quando movida pelo próprio Estado -Administração, por intermédio do ministério Público que é órgão de natureza especial do Executivo, não se subordinando como outros órgãos e guardando inteira soberania no processo.
O Código de Processo Criminal foi alterado duas vezes, em 3/12/1841, logo após D. Pedro II assumir o trono, aos 14 anos foi editada a Lei 261 famosa por ter feito um retrocesso: a reforma reduziu toda a liberdade do ordenamento processual ao subtrair dos juízes de paz as atribuições de investigar de investigar para entregá-las aos chefes de Polícia e seus delegados. Naquele momento da história o fortalecimento do aparato policial repressivo foi medida reacionária centralizadora.
A reforma de 1841 fortaleceu o aparato repressivo do Estado, em época de crise na sociedade agravada por rebeliões que agitaram o país com abdicação do primeiro imperador em 1831.
Os liberais estavam profundamente descontentes e iniciou-se em 1845 um movimento para nova reforma que só viria a se concretizar em 1871.
Foi a Lei 2.033, em 1871 que criou o inquérito policial instrumento com nomen iuris que ate hoje documenta as investigações de crime e de autoria realizadas pela Polícia.
O regulamento desta lei, de no. 4.284 menciona em seu art. 42, que o inquérito “consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices”. Embora o sistema de investigação já existisse, é em 1871 que aparece com tal denominação e vinculado à atividade policial.
A inquirição realizada pela autoridade policial no inquérito policial servia para auxiliar a autoridade judiciária ou o promotor posteriormente, quando, neste exato instante era produzida a prova que resultaria na propositura da ação penal.
A apuração preliminar do crime voltava para os juízes que eram auxiliados pela polícia. Era crença geral que com isso se resolveria o impasse gerado com difícil separação entre as funções da polícia e da judicatura.
A Constituição de 1891 com um Brasil já republicano trouxe em seu bojo, o federalismo e a descentralização do poder. E, com isto, surgiu a possibilidade de cada Estado ter seu próprio Código de Processo Penal. Nem todos criam suas próprias legislações. Rio de Janeiro, Maranhão, Rio Grande do Sul, Amazonas e outros criam suas leis processuais.
Estabeleceu a Carta Magna republicana, direitos e garantias que deveriam ser observadas por todos e, entre estas, a extinção das penas de morte ( com exceção da estabelecida nas leis militares para tempos de guerra).
É indispensável abordarmos o habeas corpus que é a ação que visa livrar o cidadão de uma constrição penal ilegítima e ilegal. No Brasil, tal instituto apareceu, pela primeira vez, mencionada no Código Criminal de 1830 e no Código de Processo Criminal de 1832 e, partir daí, permaneceu no ordenamento jurídico pátrio, embora seu alcance tenha variado.
Em momentos de ditadura sua aplicação se restringia, o Ato Institucional 5, de 1968 vedou sua utilização quando o crime fosse político, contra a segurança nacional, a ordem econômica e economia popular..
Bem antes disto, em 1937 na era getuliana a Carta Constitucional havia fixado que, no estado de emergência, os juízes não poderiam interferir nas prisões e desterros, apesar de não suspender literalmente o habeas corpus.
Então, o habeas corpus em 1891 podia ser utilizado para combater toda e qualquer violência ou coação, apenas aquelas que afetam a liberdade.
Mesmo com a criação posterior da medida chamada de mandado de segurança, o habeas corpus concentrou-se na defesa da liberdade e, portanto, passou a ser disciplinado pelo direito processual penal.
Residualmente, restou ao mandado de segurança a missão que até hoje guarda em sua essência que é coibir abuso de poder não incidente sobre a liberdade.
Ao impetrar o habeas corpus, provoca-se o Poder Judiciário para que em posição de reexame e correição determine o fim da coação praticada por outro juiz ou por autoridade envolvida na investigação criminal.
O habeas corpus pode procurar a soltura do paciente (que é como se chama a pessoa que resta constrangida), o trancamento da ação penal ou a anulação de ato que, embora não atingindo necessariamente a liberdade, sempre estará violando, já que no processo penal, é sempre o direito de ir e vir que está, em última análise em jogo.
É especificamente com Rui Barbosa que o habeas corpus adquire uma importância política, pois possibilitou ao Poder Judiciário a interferência indispensável na solução de algumas questões.
A sua grande contribuição foi demonstrar da importância política do direito e, ainda a importância jurídica da política. Rui Barbosa consagrou a união do direito com a política e, provou que o direito, não obstante possa e deva ser construído segundo critérios sistemáticos objetivos, nunca está dissociado da política. E o direito pode e deve ser instrumento, portanto, para o alcance das finalidades republicanas.
Rui Barbosa como advogado, defendendo acusados por crimes políticos, perante o recém-criado Supremo Tribunal Federal foi inovador, pois com suas ações permitiu que o Judiciário pudesse exercer o poder que a ordem jurídica lhe atribuía.
Ao impetrar os inúmeros habeas corpus em sua brilhante carreira jurídica, Rui Barbosa provou que representava a comunidade inteira, e, agia, sobretudo em nome da ordem jurídica.
Qualquer pessoa do povo pode impetrar ordem de habeas corpus em favor da pessoa cuja liberdade esteja em perigo por ato de autoridade.
Pois é ação que pode ser promovida sem a interferência de advogado, que bem espelhou seu discurso proferido em 26 de março de 1989 no Supremo Tribunal Federal, in verbis: “A liberdade não entra no patrimônio particular, como as coisas que estão no comércio, que se dão, trocam, vendem, ou compram: é um verdadeiro condomínio social; todos o desfrutam, sem que ninguém o possa alienar, e, se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a reivindica”.
Rui Barbosa acreditava que o Poder Judiciário devia rever e corrigir os atos do Poder Executivo, e muito se dedicou para demonstrar tal premissa.
Naquele tempo, os julgamentos no STF eram freqüentados pelo povo que aplaudiam, rechaçando as teses defendidas. Tal fenômeno hoje não tem mais lugar, pois a justiça afastou-se das pessoas comuns e só alguns poucos advogados e acadêmicos assistem às sessões, embora estas sejam públicas.
Excepcionam-se, os casos em que a imprensa como intermediária entre os processos e a sociedade, transmitindo as informações e formando opinião que, depois, repassam aos que realizam o processo penal.
As atividades do STF iniciaram em 1892, e no mesmo ano, passou a decidir importantes casos em que se discutia direitos e garantias individuais.
Durante o governo de Floriano Peixoto que sucedeu ao de Deodoro da Fonseca, foi decretado o estado de sítio, quando foram presas muitas pessoas, até mesmo alguns deputados protegidos por imunidade parlamentar.
Entre estes, estavam o almirante Eduardo Wanderkolk, Olavo dos Guimarães Bilac, José Carlos do Patrocínio, além de muitos coronéis e tenentes. Há a sinistra possibilidade de desterro dos presos para lugares inóspitos como a Amazônia, para aonde muitos foram enviados.
Então, Rui Barbosa não hesitou e impetro a valiosa ação e, perdeu. Conta-se que o julgamento foi ocasião de especial expectativa, tendo sido avisado que Rui Barbosa sofreria atentado no STF.
Embora derrotado, Rui mostrou o valor do habeas corpus como meio de controlar o Executivo e proteger direitos e garantias individuais. Alegara que o estado de sítio não poderia ter sido decretado e, por tal razão, as prisões ocorridas eram ilegais.
Cogitaram os ministros que o Congresso deveria manifestar-se sobre o estado de sítio. O STF andava cauteloso em questionar o Executivo. È uma decisão histórica que merece mesmo uma leitura.
Noutra ocasião, o “águia de Haia” impetrou o habeas corpus que destinava a libertar os militares e civis que, no navio Júpiter, quiseram invadir cidade do Rio Grande, para apoiar os rebeldes. Ele obteve, contudo, apenas uma vitória parcial, com resultado libertador para os civis.
Muito recentemente, tive a grata oportunidade de assistir a apresentação de monografia de final de curso de Direito na Estácio, Campus Méier, do aluno Rodrigo Guerra Peres Cespes que tratava do cabimento do habeas corpus nas transgressões disciplinares militares.
Onde é interessante frisar que a transgressão disciplinar militar é antes de tudo, um ato administrativo. Pontes de Miranda bem traduz a transgressão disciplinar militar “na obediência por parte dos subordinados às ordens dos superiores, comportando-se assim dentro da esfera do dever de obedecer e do direito de mandar”.
Em que pese que boa parte da doutrina repudie a aplicação do habeas corpus à esfera militar, a indagação acerca da inconstitucionalidade do art. 142, parágrafo segundo, da Constituição Federal Brasileira, é certo que não há.
Pois nosso sistema jurídico diferentemente o da Alemanha não admite a inconstitucionalidade das normas constitucionais originárias, portanto, o direito pátrio interno adota somente o controle da constitucionalidade das normas infraconstitucionais em face da Constituição vigente.
Revela-se que a má técnica do legislador constituinte originário fazendo constar a restrição do habeas corpus nas transgressões disciplinares disciplinada no título “Da defesa do estado e das Instituições Democráticas” e, não mais no título “Dos Direitos e Garantias Individuais”.
Acrescenta Paulo Tadeu Rodrigues Rosa que se fosse a intenção do constituinte de limitar o seu cabimento nas transgressões disciplinares o teria feito expressamente no título dos “direitos e garantias fundamental”, o que não ocorreu.
Se a punição foi imposta por autoridade manifestamente incompetente, ou de qualquer modo, ao arrepio das normas regulamentares que vinculam a ação do superior que pune, a ação heróica é certamente cabível.
Desta forma, em relação ao binômio liberdade-prisão, a regulamentação constitucional, referente a toda espécies de prisões quer sejam penais, processuais, civis e disciplinares.
Concluiu o brilhante graduando Rodrigo Cespes pela total insubsistência das chamadas prisões para averiguações, inclusive no regime castrense, que consistem em verdadeiro desrespeito ao direito de liberdade e são passíveis de responsabilidades, seja ela civil, criminal e por ato de improbidade administrativa.
Com efeito, o art. quinto da CF estabelece entre outros princípios o da isonomia, preceituando que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
A prisão administrativa decreta não subtrai do militar sua condição de cidadão e, nem mesmo seus direitos e garantias constitucionais fundamentadas e vigentes na Carta Magna.
Desta forma, se a prisão administrativa fora praticada com ilegalidade, encontra-se sujeita ao controle jurisdicional do Judiciário.
Portanto, o habeas corpus não discute o mérito da prisão administração e nem das questões disciplinares militares e, sim, a legalidade da aplicação da sanção constritiva da liberdade de ir e vir. O habeas corpus é antes de tudo um writ e, sobretudo uma forma de controle de legalidade do exercício do poder proferido pelo Executivo.
O presente artigo traça mui parcialmente breves considerações sobre a história do processo penal brasileiro, sem contudo, jamais exaurir o tema, mas visando dar uma idéia pelo menos panorâmica para entendermos as principais características dominantes no processo penal pátrio.
Referências:
Bajer, Paula Processo penal e cidadania, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, Ed., 2002.
Tourinho Filho, Fernando da Costa Manual de processo penal, São Paulo, Saraiva, 2002.
Noronha, E. Magalhães Curso de direito processual penal, São Paulo, Saraiva, 2002.
Cespes Peres, Rodrigo Guerra, in monografia intitulada “Cabimento do Habeas Corpus nas transgressões disciplinares militares”, orientada pelo brilhante professor Antônio Carlos Martins, Rio de Janeiro, julho de 2003.
Gisele Leite
Co-editora do site jus vigilantibus.Professora universitária;
Mestre em Direito e em Filosofia;
Conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.