Resumo:
A culpabilidade é um instituto de extrema importância para o direito penal brasileiro, assim como para toda a dogmática jurídica penal.
Embora diversas vezes citada pelo Código Penal vigente, é desguarnecida de conceito e funções pré-estabelecidas, missão que fica a cargo da doutrina e da jurisprudência, o que justifica a ausência de uniformidade de entendimentos e a existência de diversas teorias acerca da culpabilidade.
Atualmente é compreendida como princípio limitador ao direito de punir do Estado, como um critério analisado pelo juiz no momento de aplicação da pena, quando irá se ater a análise de três elementos essenciais: imputabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. A ausência de qualquer destes elementos implicará na inexistência da própria culpabilidade.
Palavras-chaves: Culpabilidade. Excludentes. Imputabilidade. Potencial consciência da ilicitude. Exigibilidade de conduta diversa.
Sumário: Introdução. 1. Das excludentes de culpabilidade. 1.1. Da inimputabilidade. 1.1.1. Da semi-imputabilidade. 1.2. Da ausência da potencial consciência da ilicitude. 1.3. Da inexigibilidade de conduta diversa. Conclusão.
Introdução:
A culpabilidade é requisito indispensável para aplicação de pena e, para alguns, para caracterização de crime, havendo grande discussão nesse ponto.
Anteriormente, considerava-se o dolo como espécie da culpabilidade, pois esta era estudada através de uma concepção psicológica entre o indivíduo e a conduta por ele praticada. No começo do século XX, desenvolveu-se a teoria normativa da culpabilidade e o dolo/culpa passaram a ser elementos, e não mais modalidades. A avaliação da culpabilidade em determinado crime dependia do dolo do agente, isto é, da intenção de praticar o crime de forma voluntária. Quando mais evidente o dolo, portanto, mais intensa seria culpabilidade.
Esse entendimento foi superado por Hans Welzel, que transpôs o dolo e culpa para a própria tipicidade penal. Hoje consideramos o dolo como elemento subjetivo do tipo, e não como elemento da culpabilidade. O dolo, nesse sentido, não pode ser confundido como consciência potencial da ilicitude.
Atualmente, o entendimento majoritário da doutrina é que a culpabilidade compreende a imputabilidade, o potencial consciente de ilicitude e a possibilidade de conduta adversa.
Portanto, inquestionavelmente a culpabilidade merece ser estudada e bem compreendida, ao passo que, ainda que uma conduta seja criminosa, ou seja, constitua fato típico (previsto em lei) e antijurídico (contrário ao ordenamento jurídico) não será passível de punição se não houver a Culpabilidade.
1) Das excludentes de culpabilidade
Culpabilidade é o juízo de valor social que responsabiliza o imputável, capaz de compreender o caráter ilícito de determinada conduta e nas circunstâncias em que se encontrava, era razoável exigir que agisse conforme determina a lei.
Desta definição, extrai-se os três elementos essenciais da culpabilidade: Imputabilidade, Potencial Consciência da Ilicitude e Exigibilidade de Conduta Diversa.
Ausentes um destes elementos, está presente a excludente de culpabilidade, também chamadas de exculpantes, eximentes ou dirimentes.
1.1) Da inimputabilidade
A Imputabilidade é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível.
Adotando um critério estritamente biológico, o art. 27 do Código Penal considera inimputável, o menor de dezoito anos de idade.
Ao adotar este critério, o Código Penal concedeu uma presunção absoluta de incapacidade de entendimento da responsabilidade penal pelos seus atos.
Os fatos típicos praticados pelo menor não o submetem a pena, mas a medidas protetivas prevista nos arts. 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que vão do encaminhamento aos pais e responsáveis (art. 101, I) à internação (art. 121 e seguintes).
O art. 26 do Código Penal ainda considera inimputáveis, as pessoas com desenvolvimento mental incompleto ou retardado.
Enquanto no desenvolvimento incompleto não há maturidade psíquica em razão da precoce fase de vida do agente ou falta de conhecimento empírico, no desenvolvimento retardado a capacidade não corresponde às expectativas para aquele momento de vida, e a pela capacidade jamais será atingida.
Dada à sua pouca capacidade mental, ficam impossibilitados de efetuar uma correta avaliação da situação de fato, não tendo, pois, capacidade de entendimento do fato tipo que praticaram. Classificam-se em: débeis mentais, imbecis e idiotas. São, pois, as oligofrenias os atrasos mentais, insuficiências congênitas, ou pelo menos muito precoces, do desenvolvimento da inteligência e se opõem classicamente às demências, que são deteriorações de uma inteligência que havia se desenvolvido naturalmente.
Nesta categoria de desenvolvimento mental retardado incluem-se os surdos-mudos não instruídos, os quais, em consequência da anomalia e da falta de instrução para adaptar sua limitação, acabam não tendo capacidade de entendimento e autodeterminação. Isso porque as dificuldades em relação às suas faculdades sensoriais acabam afetando o seu poder de compreensão.
Também são inimputáveis, os índios não adaptados à civilização. Estes são considerados como detentores de desenvolvimento mental incompleto.
Na verdade, a expressão não caracteriza bem a situação que gera a inimputabilidade do silvícola, porque não se trata de patologia, mas simplesmente da ausência de conhecimento de todas as complexas normas regulam a conduta social, regras estas que não são do conhecimento dos silvícolas não adaptados.
Em caso de prática de um fato típico por um silvícola, o art. 56 da Lei 6001/76, o Estatuto do Índio, dispõe que o juiz, ao fixar a pena, deve considerar o grau de integração do silvícola.
Assim, o silvícola estará sujeito a uma pena de reclusão ou detenção, mas que deverá ser cumprida em regime especial de semiliberdade em estabelecimento do próprio órgão federal de assistências aos povos indígenas, no caso, a Funai, a Fundação Nacional do Índio, como determina o parágrafo único do art. 56 do Estatuto do Índio.
O art. 28, II do Código Penal dispõe que a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos, não afasta a culpabilidade.
Logo, a contrário sensu, a embriaguez total involuntária e não culposa acaba afastando a culpabilidade. É o que dispõe o parágrafo 1º do citado art. 28 do Código Penal.
O citado dispositivo legal exige ainda que, em razão da embriaguez completa, causada por caso fortuito ou força maior, no momento da prática da conduta típica, o agente não era capaz de inteiramente entender o caráter ilícito da conduta ou, caso entendesse, portar-se de forma diferente.
Isto porque se ele for capaz de entender, ainda que parcialmente, o caráter ilícito de sua conduta ou for capaz de conduzir-se de outra forma, terá a pena reduzida, mas apenas se comprovar que a embriaguez era completa e foi causada por caso fortuito ou força maior.
A embriaguez será considerada causada por caso fortuito ou força maior, por exemplo, quando o agente não percebe que está se embriagando, seja por desconhecimento das características da bebida, seja por terceiro esta lhe forçando a beber. Existe também o exemplo clássico daquele quase se afogou ao cair num tonel de vinho.
Por fim, também são inimputáveis, os portadores de doença mental.
Esta, para fins penais, caracteriza-se pela perturbação mental ou psíquica de qualquer ordem, capaz de eliminar ou afetar a capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou a de comandar a vontade de acordo com esse entendimento. São os casos de epilepsia, cleptomania, psicose, neurose, esquizofrenia, paranóias, psicopatia etc.
1.1.1) Da semi-imputabilidade
Com exceção da imputabilidade do menor, que, devido ao critério biológico, é absolutamente inimputável, o doente mental e o agente com desenvolvimento mental incompleto ou retardado poderão ser responsabilizados se demonstrado que, apesar da menor capacidade mental, tinha alguma capacidade de entender o caráter ilícito da conduta ou tinha condições de determinar-se de outra forma, que não a prática do tipo penal.
Nestas hipóteses, constatada a doença ou a incapacidade mental, a pena será reduzida de um a dois terço, conforme seu grau de entendimento e determinação.
A análise destas condições será feita na forma dos arts. 114 e seguintes do Código de Processo Civil, abrindo um incidente de insanidade, que pode ocorrer ainda na fase de inquérito.
Neste caso, o processo criminal é suspenso, sendo nomeado ainda curador para o acusado.
Se os peritos concluírem que o acusado era inimputável ao tempo de prática delituosa, o processo prosseguirá com a presença do curador.
Vale mencionar que se a inimputabilidade for superveniente, em razão da incapacidade de responder ao processo, este continuará suspenso até que o acusado recupera as condições para se defender. Ou seja, não é permitido atribuir-lhe um curador para realizar a defesa. O acusado continua mantendo o direito de defender-se pessoalmente, diferentemente do inimputável, que, em razão da pouca possibilidade de recuperação, acaba sendo representado por um curador.
É importante mencionar que o processo continua contra o inimputável porque se demonstrada sua inocência ou ausência de provas, mesmo incapaz, não estará sujeito a medida de segurança. A questão será restrita a matéria civil, resolvendo-se pelo instituto da interdição.
Ao final do processo, se apurado que o agente era inimputável realmente, se for prevista a pena de reclusão para o tipo, o réu será encaminhado para internação. Já se a pena era de detenção, ele receberá tratamento ambulatorial. Esta pena, no entanto, somente se aplica se permanecerem as causas da imputabilidade. Se estas cessaram, o réu não é submetido sequer a tratamento ambulatorial. Afinal, não era responsável pela prática de seus atos no momento da conduta criminosa.
Já se a conclusão for pela semi-imputabilidade, permanecendo as causas, o juiz substituirá a pena privativa de liberdade pela internação ou pelo tratamento ambulatorial.
1.2) Da ausência da potencial consciência da ilicitude
A Potencial Consciência da Ilicitude é a capacidade do agente de entender, ainda que apenas potencialmente, que sua conduta viola uma proibição legal.
Difere-se na ausência da consciência da ilicitude, que é uma circunstância geral de atenuação da pena, conforme art. 65, II do Código Penal.
Vale lembrar que o art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe que a ninguém está autorizado descumprir a Lei sob a alegação de desconhecê-la.
Assim, se o agente demonstrar que não tinha consciência da ilicitude do fato terá apenas a pena atenuada.
Está ausente a potencial consciência da ilicitude nas hipóteses de erro de proibição e no erro de tipo.
O art. 21 do Código Penal, em sua primeira parte, repete a norma do art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil. No entanto, o erro inevitável sobre a ilicitude do fato, afasta a culpabilidade.
No erro de proibição, o agente acredita que sua conduta é lícita, autorizada pela Lei, mas não é. É exemplo a retomada de imóvel, dias após a ciência da invasão. O § 1º do art. 1.210 do Código Civil admite o desforço pessoal desde que seja de imediato.
Se todas as circunstâncias levaram o agente acreditar que poderia realizar o desforço a qualquer tempo, estará isento de pena do exercício arbitrários das próprias razões.
Na prática, esta possibilidade é remota, pois somente pessoas com pouco contato com a sociedade civilizada teria esta percepção equivocada da ilicitude de sua conduta.
O mais provável é que as circunstâncias gerem a falta de consciência da ilicitude da conduta, mas sendo que esta consciência era possível de se atingir. É a hipótese do erro inescusável sobre a ilicitude do fato. Neste caso, o parágrafo único do art. 21 do Código Penal reduz a pena de um sexto a um terço.
Mais comum é o erro de tipo, previsto no § 1º do art. 20 do Código Penal.
Ocorre o erro de tipo quando o agente equivoca-se sobre a presença de algum dos elementos do tipo penal, ou seja, o agente acredita que está praticando todos os elementos do tipo, quando na verdade, está percebendo equivocadamente a realidade.
É o clássico exemplo do furto de coisa própria. O tipo do art. 155 do Código Penal exige o elemento “coisa alheia”. Se o agente está furtando coisa que é sua, ainda que acredite que era de terceiro, não responderá por qualquer crime. No Brasil, não se apena a mera intenção se não gera lesão ao bem jurídico tutelado.
O agente somente responde por crime praticado em erro de tipo se houver ao menos um resultado culposo e o crime tem sua versão culposa. Ou seja, se o crime for doloso, como o furto, o agente não comete qualquer crime.
1.3) Da inexigibilidade de conduta diversa
A Exigibilidade de Conduta diversa consiste na possibilidade de exigir do agente que, diante das circunstâncias, haja de acordo com uma determinação legal.
A primeira hipótese de inexigibilidade de conduta diversa é a coação moral irresistível.
Decorre do próprio bom senso, a impossibilidade de condenar uma conduta, mesmo criminosa, de quem não teve outra opção senão praticar o crime em razão de esta coato de forma irresistível, ainda que seja só moral.
Como já exposto anteriormente, na coação física irresistível ou vis absoluta, o agente é mero instrumento do verdadeiro agente, porque sequer chega a realmente praticar a conduta.
Já na vis relativa ou compulsiva, o agente pratica a conduta, pois a coação é moral, ou seja, o agente atua em razão de grave ameaça a si ou a terceiro.
Contudo, em ambas as hipóteses, o autor da coação, física ou moral, responderá pelo crime, por ter o domínio do fato criminoso.
A coação moral, no entanto, deve ser irresistível. Ou seja, mera ameaça de mal futuro e incerto não exclui a culpabilidade. Não se trata de exigir heroísmo do agente, mas ao menos que este atue para evitar uma lesão evitável ao bem juridicamente tutelado.
Também haverá exclusão da culpabilidade quando a conduta é praticada em obediência hierárquica.
O art. 22, segunda parte, do Código Penal exige, no entanto, que a ordem não pode ser manifestamente ilegal. Se for ilegal, mas não manifestamente, e ainda assim o agente atuou, responde pela colaboração como coautor. Salvo, apenas, que o agente tenha incidido em erro sobre a ilegalidade da conduta. Neste caso, fica isento de pena pelo erro de proibição.
Também não é qualquer relação hierárquica que admite a excludente.
Basicamente ela só incide nas relações de direito público, especificamente, as administrativas, em que o não cumprimento das ordens hierárquicas pode gerar penalidade legalmente prevista, pois na Administração Pública, a hierarquia é um dos seus princípios basilares.
Conclusão:
O Direito Penal existe para proteger os direitos mais importantes do ser humano. Apenas os direitos mais básicos podem ser tutelados pelo Direito Penal. Dentre eles, claramente o direito à vida.
Somente a Lei pode prever situações em que o bem jurídico penalmente tutelado é lesado, no entanto, não existe crime. São as hipóteses de exclusão da tipicidade, excludentes de ilicitude ou da culpabilidade.
A culpabilidade é um instituto de múltiplas funções, de conceito ainda não definido e em constante evolução.
Se considerada todas as transformações pelas quais a culpabilidade tem passado, que vão desde os tempos remotos, quando bastava a verificação do nexo causal entre a conduta praticada e o resultado ocorrido, sem qualquer análise de dolo ou culpa, para que o sujeito fosse considerado culpado. Ou seja, desde os tempos em que vigorava a Responsabilidade Objetiva, até os dias atuais em que parcela majoritária dos doutrinadores acreditam ser a Culpabilidade um critério normativo, de reprovabilidade analisado pelo juiz no momento de aplicação da pena. É permissível inferir que o conceito de culpabilidade continuará evoluindo concomitantemente ao desenvolvimento social da humanidade.
Hodiernamente, em que pese a existência de posicionamentos contrários, a doutrina majoritária admite como mais adequada a Teoria Normativa Pura, que exclui definitivamente os elementos subjetivos (dolo e culpa) da culpabilidade e os transfere para a tipicidade. E, por conseguinte, lhe atribui três elementos essenciais, quais sejam: imputabilidade, potencial consciência de ilicitude e a inexigibilidade de conduta diversa.
A ausência de qualquer desses elementos implica na inexistência da própria culpabilidade. Sem culpabilidade a possibilidade de aplicação de pena também estará excluída, considerando que não é moralmente, nem legalmente correto atribuir punição a quem não possuía capacidade psíquica de compreender o caráter ilícito de determinada conduta, ou não tinha condições de conhecer a ilicitude desta, ou ainda, não era possível exigir atitudes conforme o direito.
O elo que une a culpabilidade à possibilidade de aplicação da pena permite a afirmação de que “Nulla poena sine culpa”, isto é: sem culpabilidade não haverá pena. O crime pode existir sem a culpabilidade, mas a pena não existirá sem aquela.
Referências bibliográficas:
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
JESUS, Damásio de. Direito penal. V. 2. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Fundamentos de direito penal brasileiro: lei penal e teoria geral do crime. São Paulo: Atlas, 2010.
Data da conclusão/última revisão: 22/08/2017
Michel Ito e Lilian Cavalieri Ito
Michel Ito: Procurador do Município de DiademaLilian Cavalieri Ito: advogada
Código da publicação: 3708
Como citar o texto:
ITO, Michel; ITO, Lilian Cavalieri..As excludentes de culpabilidade. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1467. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/3708/as-excludentes-culpabilidade. Acesso em 8 set. 2017.
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