Imagine-se, para exame judicial, a propositura de ação tendo, como exclusivo pedido, usucapião de bem público ou cobrança de débito oriundo de contrato de aposta. A entrada em vigor do atual Código de Processo Civil (CPC/15) iniciou uma relevante mudança no tratamento processual de contextos como o acima.
A princípio, pode-se dizer que os sobreditos pedidos são legalmente vedados, conforme disposições de súmula, do Código Civil (CC) e/ou da Constituição Federal (CF).
Dentre essas vedações, a da usucapião de bem público está preceituada nos arts. 183, § 3º (aplicação no âmbito urbano), e 191, parágrafo único (aplicação no âmbito rural), da CF; no art. 102 do CC (incidência em qualquer âmbito); e na súmula 340 do Supremo Tribunal Federal (incidência em qualquer âmbito). A proibição do outro pleito está contida no art. 814, caput, do CC, segundo o qual débitos de aposta não geram dever de adimplemento, e no parágrafo 1º desse mesmo artigo, que estende a previsão acima (do caput) aos contratos que estabeleçam os referidos débitos.
No Código de Processo Civil anterior (CPC/73), esses pedidos, por colidirem com regras de direito material, de modo a inviabilizá-los em um processo (sendo indiferente, para tanto, os fatos ou elementos do caso concreto), configuravam pretensões sem possibilidade jurídica ou juridicamente impossíveis. Em harmonia a essa compreensão, a passagem abaixo, de Cândido Rangel Dinamarco, que inclusive menciona, como exemplo, um dos casos supracitados:
O petitum é juridicamente impossível quando se choca com preceitos de direito material, de modo que jamais poderá ser atendido, independentemente dos fatos e das circunstâncias do caso concreto (...). A causa petendi gera a impossibilidade da demanda quando a ordem jurídica nega que fatos como os alegados pelo autor possam gerar direitos (pedir a condenação com fundamento em dívida de jogo).[1]
Ainda no CPC/73, a aludida possibilidade jurídica era tratada como uma das condições da ação, nos termos do art. 267, VI. E a ausência dessa condição em uma lide implicaria carência de ação e indeferimento da exordial por inépcia (conforme o art. 295, I e parágrafo único, III). A consequência seria a extinção processual sem apreciação do mérito, segundo o art. 267, I e VI.
Porém, no CPC/15, não há mais referência à expressão “condições da ação”. Também, inexiste qualquer norma sobre possibilidade jurídica. Perante esse quadro, surgiram, ao menos, três corrente doutrinárias, lastreadas em elementos do ordenamento jurídico, sobre como deve agir o magistrado ao se deparar com lide integrada apenas por pleito juridicamente proibido.
Uma das correntes, defendida, por exemplo, por Alexandre Freitas Câmara[2], expõe que a análise de pedidos juridicamente impossíveis não provocaria apreciação do mérito e que tais pedidos significariam também ocasiões sem interesse de agir. Como o art. 485, VI, do CPC/15 estabelece, na ausência do interesse, extinção processual sem exame do mérito, os pleitos juridicamente impossíveis continuariam, na visão da corrente em comento, gerando essa extinção. O sobredito jurista argumenta, em prol dessa visão, que um indivíduo, ao objetivar judicialmente algo legal e expressamente vedado, apresenta uma pretensão inapta a lhe proporcionar utilidade, implicando falta de interesse processual.
Porém, essa corrente, nos campos doutrinário e jurisprudencial, parece ser minoritária. Uma forte crítica a ela consiste em afirmar que, mesmo em face de um pedido sem possibilidade jurídica, pode existir necessidade ou utilidade na providência almejada através dele. E, portanto, ao fazê-lo, um demandante terá interesse processual. Exemplo disso é um conflito por herança de pessoa viva. O requerimento quanto à herança é juridicamente impossível devido à inocorrência do evento “morte”, mas os litigantes, caso herdeiros, apresentarão, por ostentarem essa condição, interesse de agir.
As outras duas correntes possuem, entre si, similar ponto de partida. Consideram, assim, que a possibilidade jurídica, ao haver sido retirada pelo legislador do CPC/15, não é mais condição da ação, passando a ser elemento pertinente ao mérito e ocasionando, quando inexistente, a improcedência da lide (e, não, a inadmissibilidade). O aludido ponto de partida foi adotado, inclusive, em um julgado do STJ, abaixo transcrito:
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RESCISÓRIA. PRESCRIÇÃO. IMPOSTO DE RENDA. CINCO MAIS CINCO. MATÉRIA NÃO TANGENCIADA PELO ACÓRDÃO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RESCINDENDO. RESCISÓRIA JULGADA IMPROCEDENTE. (...) 3. No regime do CPC de 2015, em que as condições da ação não mais configuram categoria processual autônoma, diversa dos pressupostos processuais e do mérito, a possibilidade jurídica do pedido deixou de ser questão relativa à admissibilidade e passou a ser mérito. Afirma a Exposição de motivos do Anteprojeto do Novo CPC que "a sentença que, à luz da lei revogada seria de carência da ação, à luz do Novo CPC é de improcedência e resolve definitivamente a controvérsia". (...) Ação rescisória julgada improcedente. (STJ, Ação Rescisória nº 3.667 - DF (2006/0236076-5) - Relator: Ministro Humberto Martins; julgamento em 27/04/2016)
Entretanto, essas duas correntes diferenciam-se na forma como ocorrerá a improcedência da ação.
Uma delas propugna que a improcedência deverá acontecer mediante julgamento antecipado do mérito, previsto no art. 355 do CPC/15. Os adeptos de tal posição alegam, ao explicá-la, que o referido diploma processual não apresenta norma autorizando genericamente rejeição liminar de ação que tenha apenas pedido juridicamente impossível. E concluem, por esse fator e em prol ainda dos princípios do contraditório e ampla defesa, que o magistrado, mesmo conhecendo a impossibilidade jurídica do pleito, deve ordenar a citação do réu e, só após o prazo para a respectiva manifestação, decidir, naquela via do julgamento antecipado, pela improcedência da lide. Dentre os mencionados adeptos, há Camila Chagas Saad[3].
Já a outra corrente expressa que deverá ocorrer uma improcedência liminar do pedido (imediata, antes da citação), o que equivalerá a uma situação atípica dessa improcedência. Um dos defensores da corrente é Fredie Didier Júnior[4], o qual argumenta que determinar a citação perante um pedido juridicamente impossível apenas produzirá atos processuais inúteis e elevará, sem necessidade, a duração e o custo processuais. Também, em virtude da citação e considerando a posterior improcedência, o autor deverá adimplir honorários para o advogado do réu, fato que ampliará ainda mais o prejuízo daquele.
Prosseguindo em sua argumentação, Didier Jr. reputa a improcedência liminar, diante de pedidos sem possibilidade jurídica, um notável mecanismo contra ações abusivas, possibilitando o rápido fim de lides que possam estar voltadas à extorsão processual. Ademais, para reforçar sua visão, o jurista menciona o art. 918, III, do CPC/15, que já estabelece a rejeição liminar dos embargos à execução quando claramente protelatórios.
Expostas as três correntes e considerando tanto as respectivas características quanto os argumentos a seu redor, filio-me à última examinada.
Entendo que o legislador, ao não mais reputar impossibilidade jurídica uma hipótese extintiva sem apreciação do mérito (ao contrário da ilegitimidade ou falta de interesse), sinalizou tratá-la como aspecto dele. E, caso realmente verificada, na demanda, como exclusivo objeto, usucapião de bem público ou cobrança de débito proveniente de aposta (exemplos), haverá aí, pela expressa ilegalidade existente, situações de incontroversa improcedência. E, nesse quadro, citar o réu, cujo objetivo é a improcedência, para responder a uma lide que, com certeza, trilhará esse caminho é medida tão somente inclinada à demora ou onerosidade processuais (seja para o demandante, em função dos honorários sucumbenciais; seja para o Estado, devido, por exemplo, ao consumo de energia elétrica para a prática de atos judiciais desnecessários ou atraso em outros processos pela atuação de servidores naqueles atos).
Portanto e em favor também dos postulados da eficiência e economia processual, compreendo que o juiz, face ao quadro acima, deve apreciar o mérito e julgar liminarmente improcedente o pedido. Essa compreensão é fortalecida pelos julgados abaixo, do TJSP, TJMS e TJDFT, que apresentaram similar posicionamento:
Apelação. Usucapião extraordinário movida contra COHAB/BAURU. Sentença que julgou a ação liminarmente improcedente. Efeito suspensivo ao recurso. Deferimento. Aplicação do artigo 1.012, caput do CPC/2015. Demanda que não se enquadra nas hipóteses previstas no §1º do aludido artigo. Nulidade processual. Afastamento. Caso que autorizava o pronunciamento liminar de improcedência da ação ante a natureza pública do bem imóvel que a autora pretende usucapir. Juízo "a quo" que observou as normas processuais pertinentes (art. 332, §1º, CPC/2015). Justiça gratuita. Pedido formulado pela ré em sede de contrarrazões. Deferimento. Interpretação do artigo 98 do CPC/2015 e da Súmula 481 do C. STJ. Presença de provas da alegada hipossuficiência da ré. Demonstração da ré de que passa por dificuldades financeiras. Julgamentos neste sentido proferidos por esta C. Corte de Justiça. Mérito. Inexistência de direito ao usucapião. Imóvel de propriedade da COHAB/BAURU. Por se tratar de sociedade de economia mista, com predominância de capital público e finalidade social, os bens por ela destinados a programa habitacional para o atendimento de necessidades da população de baixa renda, detém natureza material de bem público. Destinação do bem ao interesse público. Observância ao artigo 183, §3º e 191, § 1º, da Constituição Federal e a Súmula 340, do Supremo Tribunal Federal: "Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião." Recurso recebido e processado em seu duplo efeito. Justiça gratuita deferida à ré. Preliminar rejeitada. Recurso interposto pela autora não provido. (TJSP, Apelação nº 1001447-51.2017.8.26.0344 - Relator: Desembargador Edson Luiz de Queiroz; julgamento em 08/05/2018)
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE USUCAPIÃO – SENTENÇA DE EXTINÇÃO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR – CASSADA – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO – CAUSA MADURA – USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO – PEDIDO JURIDICAMENTE IMPOSSÍVEL – ART. 332 DO NCPC C/C SÚMULA 340 DO STF – IMPROCEDÊNCIA LIMINAR DO PEDIDO. 1. Na hipótese, está presente o interesse de agir, pois evidenciada a necessidade, utilidade e adequação da demanda para a solução da lide. 2. Porém, a pretensão de usucapião de bem público na forma proposta, por encontrar vedação constitucional, consiste em pedido juridicamente impossível, o que, segundo a nova sistemática processual, inaugurada pelo Código de Processo Civil de 2015, enseja extinção do processo, com resolução do mérito, por improcedência liminar do pedido. (TJMS, Apelação nº 0800645-20.2016.8.12.0002 - Relator: Desembargador Sideni Soncini Pimentel; julgamento em 14/02/2017)
PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. CIVIL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. SILÊNCIO ELOQUENTE. USUCAPIÃO DE IMÓVEL PÚBLICO. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. IMPROCEDÊNCIA LIMINAR DO PEDIDO. CONSTITUIÇÃO DO DISTRITO FEDERAL. DESAPROPRIAÇÃO DE ÁREAS PARTICULARES. PROPRIEDADE DO ENTE FEDERATIVO. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. DISTRIBUIÇÃO ENTRE OS VENCEDORES. 1. Identifica-se silêncio eloquente no novel Código acerca de da possibilidade jurídica do pedido, de modo a revelar que o legislador de 2015, propositadamente, não a previu, a qual passa a ser examinada em capítulo outro, no da improcedência liminar do pedido, segundo orienta a mais balizada doutrina. Passa a ser tema de mérito, e não mais de condição da ação, categoria esta, aliás, não mais mencionada pelo Código atual, levando a crer que as condições da ação integram doravante os pressupostos processuais. 2. Consoante o parágrafo terceiro do artigo 183 da Constituição Federal de 1988, os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (...) 6. Apelação não provida. Recursos adesivos providos para adequação dos honorários de sucumbência. (TJDFT, Apelação nº 20090110647998APC (0049460-24.2009.8.07.0016) - Relator: Desembargador Flavio Rostirola; julgamento em 31/08/2016)
NOTAS:
[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil: volume II. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 308.
[2] CÂMARA, Alexandre Freitas. Será o fim da categoria “Condição da Ação”? Uma resposta.a.Fredie.Didier.Junior..Disponível.em:.<http://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/sera-o-fim-da-categoria-condicao-da-acao-uma-resposta-a-fredie-didier-junior/>. Acesso em: 29 abr., 2020.
[3] SAAD, Camila Chagas. A impossibilidade jurídica do pedido e a improcedência liminar do pedido...no.,.Código.,de.,.Processo...Civil..de..2015..Disponível.em:.<https://semanaacademica.org.br/system/files/artigos/artigo_-_camila_chagas_saad_-_semana_academica_-_issn_2236-6717.pdf>. Acesso em: 27 abr., 2020.
[4] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 21ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2019, p. 704 e 705.
Data da conclusão/última revisão: 04/12/2020
Alan Vinícius Vicente
Advogado (OAB/PE nº 49.435). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduando pela Escola Superior de Advocacia (ESA - OAB/PE)
Código da publicação: 10837
Como citar o texto:
VICENTE, Alan Vinícius..Da impossibilidade jurídica à improcedência liminar do pedido: alteração trazida pelo vigente CPC. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1016. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/10837/da-impossibilidade-juridica-improcedencia-liminar-pedido-alteracao-trazida-pelo-vigente-cpc. Acesso em 1 fev. 2021.
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