O artigo em questão aborda um modus operandi para as atividades judiciais crescentemente almejado no Brasil, a justiça cidadã, em presente sintonia com o neoprocessualismo e a constitucionalização de normas processuais. Objetiva, sobretudo, retratar, por fundamentos legislativos ou doutrinários e argumentos autorais, como a referida justiça vem sendo buscada no país, através de instrumentos que estão e continuarão beneficiando-a. A seção inicial apresentará as bases dessa justiça, as quais permitirão detectar e compreender o supramencionado benefício. As seções seguintes examinarão aqueles instrumentos beneficiadores e as respectivas contribuições para uma justiça cidadã. Nessa direção, a seção “2” analisará a conciliação e mediação, com referências à Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, aos centros de solução de conflitos e a postulados conectados aos dois institutos. A seção “3” abrangerá mecanismos judiciais integradores, seja por estabelecerem comunicações entre juízos, seja por inter-relacioná-los para evitar divergências judiciais. E a seção “4” versará sobre ferramentas de inteligência artificial de variados tribunais brasileiros, já implementadas ou com implementação próxima.

INTRODUÇÃO

O processo civil enfrentou, ao longo do tempo, várias mudanças em termos de representação. Conforme Elpídio Donizetti (2019, p. 26 a 28), na primeira fase, praxismo, o sistema processual era compreendido como mero segmento do direito privado, sem autonomia, e considerado apenas e erroneamente como forma de exercício de direitos. O praxismo foi sucedido pelo autonomismo, no qual o direito processual afastou-se da estrita visão procedimental, aproximando-se da noção autônoma de ciência e caminho em busca da proteção jurisdicional. 

Em seguida, passou-se a defender um processo orientado a resultados materialmente justos e atuante como mecanismo de pacificação social, inseparável da ética e seus fins nos âmbitos político, social e econômico. Essa era a etapa processual instrumental. A partir dessa etapa, originou-se a presente, neoprocessualismo, caracterizada pela constitucionalização dos direitos e garantias processuais e pela natureza publicística do processo, à disposição estatal para efetivar justiça. 

O neoprocessualismo manifesta-se também no processo brasileiro, o qual vivencia, para Cândido Rangel Dinamarco (2017, p. 429 e 430), uma oitava fase, introduzida pela promulgação do vigente código processual, em 2015. Segundo o jurista, observa-se, na atual fase e no referido ordenamento, uma exaltação das disposições constitucionais em sua projeção sobre o sistema processual. E uma das principais marcas dessa etapa é a crescente procura por uma justiça cidadã.

Devido à importância dessa justiça e à crescente necessidade de buscá-la ou intensificá-la, em harmonia ao neoprocessualismo, este trabalho objetivará expor, mediante pesquisas legislativas ou doutrinárias e argumentos autorais, como a necessidade vem sendo atendida no Brasil. Para a exposição, o trabalho, além de apresentar, analisará instrumentos brasileiros que estão e continuarão contribuindo para a cidadania na justiça.

Assim, na seção “1” deste texto, serão explanadas as bases de uma justiça cidadã, com arrimo na evolução conceitual do termo cidadania, explanações que possibilitarão compreender os benefícios, para a referida justiça, de alguns instrumentos, a serem tratados nas seções “2”, “3” e “4”. Estas, portanto, voltar-se-ão especificamente à explicação desses instrumentos e benefícios. E versarão, respectivamente, sobre conciliação e mediação; mecanismos judiciais integradores; e plataformas de inteligência artificial em juízos brasileiros. 

        

1. OS PILARES PARA UMA JUSTIÇA CIDADÃ

Para melhor visualizar os significados e o funcionamento de uma justiça cidadã, convém explanar conceitualmente a cidadania. Esta encontra-se conectada ao desenvolvimento humano, e as relações sociais a si concernentes inserem-se no contexto do Estado. Nesse panorama, as concepções de cidadania não são estáticas, permanentes, alterando-se temporal, espacialmente ou ainda conforme o complexo de interesses em torno de quem almeja ser cidadão. Consequentemente, variados momentos históricos geraram diferentes reflexões e sentidos sobre cidadania. 

Na direção dessa fluidez conceitual, Fábio Konder Comparato (1996, p. 3) estabelece três fases históricas para a cidadania: a exclusivamente política das origens, a da reação individualista, e a verificada na atualidade. 

Na etapa inicial, arrimada na civilização greco-romana, eram reputados cidadãos somente os participantes do funcionamento de uma cidade-estado, os quais apresentavam direitos políticos. Durante tal etapa, a participação ocorria diretamente, sem a presença de representantes. Aristóteles (1995, p. 85), com pensamentos alusivos a esse período, entendia o cidadão como "aquele que tem uma parte legal na autoridade deliberativa e na autoridade judiciária” da cidade. Conforme o entendimento, na visão aristotélica, cidadão seria o indivíduo com poder para participar de decisões políticas e legais, consultivas ou judiciais, apto a governar ou ser governado.

Posteriormente, com o advento dos Estados Liberais, surgiu a fase individualista da cidadania. Segundo Comparato, na referida época, o termo em comento passou a apresentar duas dimensões: universal e nacional. Na primeira, enxergava-se a pessoa tutelada em seus direitos naturais, independentemente da nacionalidade. E, na segunda, encontravam-se apenas os nacionais de um Estado, titulares de direitos políticos. Distintamente da primeira, na fase em questão, a atuação política do cidadão acontecia indiretamente, mediante instrumentos representativos. Percebe-se, assim, que nessa etapa houve uma cisão entre cidadania civil e cidadania política, referindo-se aquela à consolidação da soberania individual e esta, à delegação da soberania coletiva.

Quanto à atual etapa da cidadania, importante o ensinamento de Paulo Hamilton Siqueira Júnior (2010, p. 461), que a define em duas vertentes: restrita e ampla. Pela restrita, a palavra sobredita liga-se ao direito de integrar o processo emissor de decisões políticas, como eleitor ou como elegível. Já a cidadania, no sentido amplo, representa o dinâmico conjunto de direitos e deveres que estabelece o nível de inserção do indivíduo nos variados âmbitos da convivência social.

É adepto da vertente restrita, por exemplo, Paulo Bonavides (2010, p. 82). Consoante a respectiva lição, a cidadania significa um status (ou estado) relativo à capacidade pública de uma pessoa, à reunião dos direitos políticos e obrigações que ela possui face ao Estado. Dentre os direitos, prossegue Bonavides, há o de votar e ser votado, e, dentre os deveres, obediência à legislação estatal, realização do serviço militar e fidelidade à Pátria. 

Em relação à vertente ampla, pode-se afirmar que um dos inspiradores foi o sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall, através da obra Citizenship and Social Class, publicada a partir de 1950. 

Na referida obra, Marshall (1967, p. 76) explica a cidadania como um estado atribuído aos membros integrais de uma sociedade e constituído por direitos civis, políticos, de primeira geração, e por direitos sociais, de segunda geração. Para o sociólogo, a cidadania apenas será plena quando presentes e respeitadas essas três modalidades de direitos, circunstância ligada ao grau de inclusão social de cada indivíduo. Por conseguinte, as práticas cidadãs só estarão concretizadas quando atendidos os direitos fundamentais ou humanos em suas variadas esferas.

Aprofundando seus ensinamentos, Marshall (1967, p. 63) detalha cada uma das espécies acima de direitos. Nesse quadro, apresenta os direitos civis como resultantes de conquistas históricas do século XVIII e imprescindíveis à liberdade individual. Dentre os quais, os direitos fundamentais à vida, liberdade, propriedade e igualdade. Em seguida, define os direitos políticos, evidenciados no século XIX, como os garantidores da participação dos titulares nas atividades políticas, seja integrando um órgão com autoridade política, seja elegendo componentes desse órgão. 

Por fim, o doutrinador britânico enxerga nos direitos sociais aqueles historicamente obtidos no século XX, influenciados pelo socialismo e pela atuação de movimentos operários e sindicais. E menciona, como exemplos, os direitos à educação, saúde, trabalho, salário justo, e a benefícios sociais.

Em harmonia aos pensamentos de Marshall, visualiza-se, abaixo, a lição de Norberto Bobbio (1986, p. 353) sobre os direitos dos cidadãos na atualidade:   

(...) estes direitos podem ser classificados em civis, políticos e sociais. Os primeiros são aqueles que dizem respeito à personalidade do indivíduo (liberdade pessoal, de pensamento, de religião, de reunião e liberdade econômica), através da qual é garantida a ele uma esfera de arbítrio e de liceidade, desde que seu comportamento não viole o direito dos outros. Os direitos civis obrigam o Estado a uma atitude de não impedimento, a uma abstenção. Os direitos políticos (...) estão ligados à formação do Estado democrático representativo e implicam (...) uma participação dos cidadãos na determinação dos objetivos políticos do Estado. Os direitos sociais - direito ao trabalho, à assistência, ao estudo, à tutela da saúde, liberdade da miséria e do medo - (...) implicam, por seu lado, um comportamento ativo por parte do Estado ao garantir aos cidadãos uma situação de certeza.

Percebe-se, portanto, que ambos, Marshall e Bobbio, argumentam a observância de mesmas três categorias de direitos para a concretização da cidadania. 

Na direção desses raciocínios, Andreia Cadore Tolfo (2013, p. 38) faz uma incisiva crítica à concepção restrita da expressão em análise. Assevera a autora que, devido ao panorama histórico de evolução dos direitos humanos e às correlatas projeções político-sociais, a sobredita concepção está ultrapassada. Segundo Tolfo, esse entendimento cedeu lugar a uma compreensão que deve se adequar aos requisitos do atual sentido dos direitos do homem e da dignidade da pessoa humana.  Em seguida, conclui a autora que, na cidadania, insere-se o cumprimento das distintas gerações de direitos humanos, sendo cidadão aquele que usufrui dos direitos políticos, sociais, civis, de solidariedade e econômicos, direitos que se complementam e se integram.

Em linha com as exposições de Tolfo, o ensinamento de Hannah Arendt (apud LAFER, 1997) sobre cidadania:

A cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. (...) é esse acesso ao espaço público (...) que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos.

Ademais, Tolfo (2013, p. 39) acrescenta que, para ser cidadã, é essencial cada pessoa apresentar os direitos fundamentais verdadeiramente respeitados e efetivados, verificando-se a cidadania com o efetivo atendimento dos direitos assegurados no sistema jurídico de um país. E, para esse atendimento, Boaventura de Sousa Santos (1989, p. 12) ressalta a indispensabilidade da construção de novos espaços políticos, aumento dos espaços públicos, e do aparecimento de novos sujeitos coletivos aptos a intensificar a democracia.

Aos direitos supramencionados, inerentes à cidadania, há deveres correspondentes, sendo então a cidadania integrada, de forma inseparável, por direitos e obrigações. Essas obrigações consistem, por exemplo, em observar os direitos humanos ou fundamentais dos demais cidadãos, tutelar a natureza, tutelar os patrimônios público e social de um Estado.

Ainda sobre os direitos cidadãos, Comparato (1996, p. 10 e 11) destaca, dentre eles, o de participação, refletido no agir buscando gerar um destino próprio. E propugna, em prol das ações cidadãs, a manifestação desse direito em cinco esferas: distribuição de bens materiais e imateriais; tutela dos interesses difusos ou transindividuais; controle do poder político; administração da coisa pública; e tutela dos interesses transnacionais. 

Transgredidos esses direitos ou obrigações, concernentes à cidadania, a vítima, segundo Lígia Airemoraes Siqueira e Marcelo Leandro Pereira Lopes (2002), deve dispor de garantias e princípios processuais para restaurar o atendimento das normas violadas. Consequentemente, não só o direito material embasa a concepção de cidadania, mas também o direito adjetivo ou processual. 

Reunindo as informações expostas ao longo deste capítulo e adotando, como mais aceitável, uma interpretação ampla, pode-se asseverar, então, que cidadania é o complexo de direitos, sobretudo humanos ou fundamentais, e deveres correlatos cuja observância atribui aos respectivos titulares o status de cidadãos. E justiça cidadã é aquela que, mediante instrumentos legais e condutas de seus servidores, partes processuais ou terceiros interessados, propicia, garante a concretização dos supracitados direitos e deveres. 

Nos próximos capítulos deste texto, serão explanados alguns desses instrumentos que, na sociedade brasileira, têm sido muito importantes para a construção ou existência de uma justiça cidadã.

 

2. UMA JUSTIÇA COM CIDADANIA ATRAVÉS DA CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO      

Antes de expor as contribuições da conciliação e mediação para uma justiça cidadã, convém abordar o tratamento da legislação brasileira para tais mecanismos e apresentá-los conceitualmente.

No Código de Processo Civil (CPC), sancionado em março de 2015, é patente o enfoque a esses dois mecanismos. Algumas normas retratantes do enfoque são os arts. 3º, § 2º, conforme a qual o Estado efetuará, sempre que possível, a solução consensual dos litígios; 3º, § 3º, que prevê o dever, para magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Parquet, de incentivo aos sobreditos mecanismos; e 139, V, que institui, como obrigação dos juízes, a busca, a qualquer tempo, da autocomposição, sobretudo em conjunta atuação com mediadores e conciliadores judiciais.

Uma das raízes do destaque, no CPC, à conciliação e à mediação foi a Resolução n. 125/2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Fredie Didier Júnior (2019, p. 324 e 325) considera a resolução o mais importante conjunto normativo sobre aqueles dois instrumentos até a publicação do vigente diploma processual. Ademais, ressalta que esse ordenamento estabelece a Política Pública de tratamento adequado dos conflitos de interesses, erigindo, como o respectivo organizador na esfera judiciária, o CNJ. A resolução, inclusive, traz novidades que viriam a ser também disciplinadas no CPC, como os centros de solução de conflitos, os quais serão ainda melhor abordados neste capítulo. 

Outra marca da relevância, no CPC, aos mecanismos pacificadores em exame é a previsão da audiência de conciliação ou de mediação, em capítulo próprio e no art. 334. Pela sistemática do CPC anterior, o réu era citado para efetuar contestação. Já consoante o artigo acima, o réu será citado para, em regra, participar da aludida audiência, direcionada primordialmente ao exercício daqueles mecanismos pacificadores. A audiência só não ocorrerá, segundo o art. 334, § 4º, quando for incabível a autocomposição ou ambos os polos da lide emitirem desinteresse na solução consensual. 

Observado o tratamento processual para a conciliação e mediação, passa-se agora ao exame conceitual dos institutos e às distinções entre si. 

Segundo Dinamarco (2017, p. 216), conciliação é um instrumento de solução de conflitos marcado pela interferência de um indivíduo, conciliador, entre os litigantes para estimulá-los à autocomposição, podendo lhes propor soluções, a serem acatadas ou não. E a mediação é outro instrumento pacificador no qual um terceiro, mediador, também incentiva os conflitantes à autocomposição, mas de forma que, após restaurada a comunicação, encontrem, por si próprios, soluções para a lide, com vantagens mútuas. Ambos os instrumentos podem ser extraprocessuais, aplicados antes do processo, ou endoprocessuais, exercidos durante o processo (MEDINA, 2018, p. 156).

Percebe-se, acima, a primeira diferença entre tais instrumentos: a formulação de soluções pelo terceiro, possível na conciliação e vedada na mediação. Dinamarco (2017, p. 496) enuncia uma segunda distinção, prevista no art. 165, §§ 2º e 3º, do CPC: o vínculo anterior. Conforme o jurista, o conciliador agirá, sobretudo, em situações sem liame anterior entre as partes, como aquelas envolvendo direitos de vizinhança ou responsabilidade extracontratual. Já o mediador agirá, principalmente, em situações com o referido vínculo, a exemplo de contextos de direito familiar ou responsabilidade contratual.

Oportuno registrar que os institutos em análise são inerentes à presença, no CPC, de um sistema de justiça multiportas, onde se pode obter a proteção dos direitos por variados caminhos (DIDIER JR., 2019, p. 201). Verifica-se aí uma contribuição dos sobreditos institutos à justiça cidadã. Como ampliam as vias para a tutela jurídica e, consequentemente, para a obtenção de soluções justas, com eliminação das insatisfações - um dos pilares do acesso à justiça, consoante Ada Pellegrini Grinover (2010, p. 40) -, a conciliação e mediação favorecem esse direito. E, fundando-se o acesso à justiça no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal (CF) e sendo, portanto, um direito fundamental, os mecanismos pacificadores, ao propiciá-lo, também propiciam uma justiça cidadã.   

Outras colaborações para uma justiça cidadã visualizam-se nos centros de solução de conflitos, introduzidos pelos art. 8º a 11 da Res. n. 125/2010 do CNJ e preceituados também no art. 165, caput, do CPC. Tais centros, após implantados pelos tribunais, serão os locais públicos preferencialmente incumbidos das sessões e audiências de conciliação e mediação. E a ocorrência destas no juízo do processo será excepcional. Visto que representará aumento dos espaços públicos, de participação popular, essa implantação favorecerá a cidadania na justiça, na direção do raciocínio de Boaventura de Sousa Santos, já apresentado neste texto.

Também, por serem especificamente voltados à conciliação e mediação, com profissionais capacitados para ambas, esses centros proporcionarão melhor execução desses mecanismos e melhor emprego das correspondentes técnicas. Poderão atender, assim, a seguinte visão de José Carlos Barbosa Moreira (1994, p. 203), relacionada à importância da técnica no processo:

No Brasil (...), as noções técnicas (...) nem sempre parecem haver-se enraizado com a firmeza necessária no patrimônio cultural de todos os operadores do direito (...). Ora, com má técnica não se conduz a bom termo processo algum. É indispensável, portanto, que os processualistas se ocupem da técnica. Se não o fizerem, ninguém mais o fará (...). 

Na linha dessas palavras, pelo favorecimento à técnica nos centros em exame, aumentará a probabilidade de uma boa aplicação normativa, referente aos instrumentos pacificadores, e da concretização de direitos mediante essa aplicação, fatores em prol da cidadania na justiça.

Ainda sobre os referidos centros, o art. 8º, § 3º, da Res. n. 125/2010 do CNJ preocupa-se com o acesso à justiça, ao permitir a atuação de conciliadores e mediadores itinerantes em alguns locais, como comarcas no interior de um estado, enquanto não implementados, neles, aqueles centros. Isso pode evitar, por exemplo, litigantes, de uma dessas comarcas e com poucos recursos, desistirem da autocomposição estritamente por não conseguirem se deslocar até o centro mais próximo. Essa permissão legal, portanto, ao beneficiar o acesso à justiça, contribui para uma justiça cidadã.       

Mais favorecimentos a uma justiça cidadã podem ser extraídos de princípios conectados à conciliação e mediação, dentre os quais, eficiência, economia processual, informalidade, autonomia da vontade e decisão informada. 

Segundo Donizetti (2019, p. 52 e 62), eficiência e economia processual relacionam-se à obtenção do máximo de resultado no processo e de uma proteção efetiva, adequada na menor duração possível, com o mínimo de atos judiciais e, logicamente, de recursos financeiros. Um dos fundamentos desses postulados é o art. 5º, LXXVIII, da CF, um direito fundamental. Portanto, ao possibilitar, muitas vezes, o fim da fase cognitiva processual de modo célere, antes da instrução probatória e outras etapas, e sem os atinentes custos, os instrumentos pacificadores em estudo atendem os mencionados postulados, o referido direito e uma justiça cidadã.

A informalidade traduz, segundo Didier Jr. (2019, p. 330) e Dinamarco (2017, p. 217), o desnecessário cumprimento de formas processuais na conciliação e mediação, não se aplicando, nestas, os ritos e simbologia intrínsecos à atividade jurisdicional. Prepondera, então, nesses instrumentos, a simplificação procedimental, sabiamente retratada por Barbosa Moreira (1994, p. 200) nessa passagem: 

A simplificação do procedimento tem o claro sentido de agilizar a marcha dos pleitos, descongestionar o aparelho judiciário e facilitar a composição dos litígios. (...) simplificar pode constituir um dos caminhos para ensejar aos menos providos de meios o exercício eficaz do direito de ação, e portanto para proporcionar-lhes mais desimpedido acesso à justiça.

Percebe-se, no ensinamento, a relação da simplificação com a economia processual, eficiência e o acesso à justiça, pilares, como já visto, para a cidadania na esfera judicante.

Por sua vez, autonomia da vontade representa a plena observância, nos mecanismos pacificadores de lides, das intenções dos litigantes, vedando-se forçá-los à autocomposição (DIDIER JR., 2019, p. 329). Esse princípio tem, como raiz, o direito fundamental de liberdade, previsto no art. 5º, caput, da CF, e transgredi-lo afeta a participação das partes, naqueles mecanismos, em prol de soluções justas, direito ínsito a uma justiça cidadã. Assim, respeitar tal postulado significa proporcioná-la.

E, pelo princípio da decisão informada, o acordo, na mediação ou conciliação, só deve ocorrer após adequado entendimento dos respectivos efeitos e da matéria do litígio, sendo essencial as partes estarem bem informadas, com auxílio dos conciliadores ou mediadores (DIDIER JR., 2019, p. 330). Verifica-se aí um nexo com o direito à informação, o qual, para Victor Gentilli (2002, p. 43), insere-se na cidadania, significando, nesse âmbito, o direito de cada um às melhores circunstâncias possíveis para alcançar as preferências particulares, efetuar escolhas e julgamentos pessoais autonomamente. Portanto, o postulado da decisão informada consubstancia um dos caminhos para uma justiça cidadã. 

Através dos argumentos apresentados, compreende-se que a conciliação e mediação, por suas características, previsões legais e o arcabouço principiológico que as acompanha, são relevantes para uma inserção cada vez maior da cidadania na justiça. 

 

3. INTEGRAÇÃO: UM DOS ALICERCES PARA UMA JUSTIÇA CIDADÃ

Segundo o dicionário Houaiss de língua portuguesa (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1093 e 1094), integração refere-se à inserção e à adaptação de elementos num coletivo, os quais passam a agir como seus constituintes naturais e a perfazer um todo coerente. Por sua vez, o dicionário Michaelis (2010, p. 482), analisando essa palavra no âmbito de um grupo, define-a como ajustamento mútuo dos seus componentes e respectiva identificação com as pretensões e valores do grupo. 

Cotejando as duas definições e aplicando-as ao sistema judiciário brasileiro, pode-se dizer que, nele, integração expressa a inclusão, de modo harmônico, dos órgãos judiciais - varas e tribunais, por exemplo -, que, por relações, comunicações entre si - ajustamentos recíprocos - conseguem melhor atuar em prol do respeito a direitos, sua aplicação e do cumprimento de deveres, objetivos do sistema judiciário com os quais aqueles órgãos identificam-se. 

Antes do CPC vigente, entre tais órgãos, eram dois os mecanismos integradores, comunicativos: a carta de ordem e a precatória (MEDINA, 2018, p. 194), mantidas no referida diploma através, respectivamente, do inciso I e inciso III do art. 237, incidindo ainda, para ambas, os arts. 260 a 268. 

Carta de ordem é aquela emitida por um juízo de instância superior ao juízo destinatário, vinculado àquele, para o exercício de ato(s) extrínseco(s) aos limites da sede do emitente (PINHO, 2019, p. 451). Já a carta precatória envolve órgãos de mesma instância e competência territorial distinta, sendo expedida por uma comarca, seção ou subseção judiciária para que outra, a destinatária, realize ou ordene, no espaço de sua competência territorial, um ou mais atos processuais de interesse da expedidora (ALVIM; GRANADO; FERREIRA, 2019, p. 450 e 451). 

Tais instrumentos comunicativos devem ser emitidos, sobretudo, eletronicamente, conforme o art. 263 do CPC, o que reduz o tempo e os custos do envio ao destinatário. Uma medida, portanto, de eficiência, economia processual, e voltada à cidadania na justiça. O CPC estabelece ainda, para os instrumentos e no art. 262, natureza itinerante, permitindo encaminhamento a órgão distinto do que deles consta, em prol da concretização do(s) ato(s) requerido(s) e em contextos, por exemplo, de erro de endereçamento. Isso evita o retorno da carta ao emitente para nova emissão e elimina o óbice, alusivo ao erro, para a prática de atos processuais, efeitos que propiciam a economia processual e o acesso à justiça, havendo aí outra contribuição a uma justiça cidadã.

Também, através das cartas em exame, o juízo expedidor pode obter do receptor dados importantes para decisões, relativos, por exemplo, a provas testemunhais ou periciais. Essa obtenção favorece o direito à informação, ínsito, como já visto neste texto, a uma justiça cidadã.

Através do presente CPC, foram acrescentados, aos mecanismos integradores acima, a carta arbitral, que efetiva comunicações entre órgãos do Poder Judiciário e juízos arbitrais, e um instrumento mais amplo, abrangente: a cooperação nacional, disciplinada nos arts. 67 a 69. 

Esse instrumento engloba uma variedade de auxílios entre órgãos no território brasileiro para o exercício de atos processuais, instituindo, assim, uma obrigação de mútua cooperação, mediante servidores e magistrados, aos juízos estaduais ou federais, especializados ou comuns, em todas as instâncias jurisdicionais, inclusive de distintos ramos de atuação. Humberto Theodoro Júnior (2019, p. 278) argumenta que a extensão dos referidos auxílios supera os limites das cartas precatórias ou de ordem, passando estas a serem meios comunicativos excepcionais ou subsidiários. Nessa direção, segundo o jurista, almeja-se preferencialmente o uso das modalidades de cooperação nacional em relação à expedição de cartas.

Tais modalidades, consubstanciadas nos incisos do art. 69, são o auxílio direto, relativo a intercâmbios diretos entre servidores e juízes, sem intromissão de outro organismo ou autoridade; a reunião de processos, verificada, por exemplo, em ocasiões de conexão processual, ou o apensamento, forma de aglutinação entre processos, sem modificar as correspondentes numerações originárias; a prestação de informações, a ser praticada sem maiores formalidades; e os atos concertados, aqueles resultantes de comum acordo entre magistrados cooperantes em prol de alguns procedimentos, dentre os quais, execução de decisões e centralização de processos repetitivos (DONIZETTI, 2019, p. 212 e 213).

A reunião ou apensamento processual e esses atos a favor da centralização proporcionam um julgamento uniforme a lides, obstando a emissão de decisões conflitantes. Isso favorece a segurança jurídica, inserida no direito à segurança, por sua vez, fundamental, conforme o art. 5º, caput, da CF. Por conseguinte, favorece também a cidadania na justiça.

Outro favorecimento à cidadania pode ser percebido na modalidade "prestação de informações", claramente conectada ao direito cidadão à informação.

Também, quanto aos requerimentos dessa e das demais espécies cooperativas, o art. 69, caput, prevê a dispensa de formas específicas. A dispensa, ao afastar submissão a formalismos, implica simplificação procedimental, o que beneficia a eficiência, a economia processual, em harmonia ao pensamento de Barbosa Moreira, já retratado neste artigo, e, portanto, beneficia uma justiça cidadã.

No Brasil, além das cartas e da cooperação nacional, podem ser considerados integradores da estrutura judicial mecanismos pelos quais pronunciamentos de um órgão vinculam outros, obrigando-os a segui-lo. Tal órgão, então, interfere nos juízos vinculados, produzindo conexões entre si. Exemplificam esses mecanismos os incidentes de assunção de competência (IAC), de resolução de demandas repetitivas (IRDR); e os recursos especiais e extraordinários repetitivos.

O IAC, tratado no art. 947 do CPC, pode ser proposto pelo relator da matéria objeto do incidente, de ofício ou a pedido da parte, Defensoria Pública ou Ministério Público (MP). Observa-se quando recurso, reexame necessário ou lide de competência originária de tribunal abranger questão de direito com considerável alcance social, a qual não precisa se repetir em processos. Nesses panoramas, o julgamento, inicialmente a cargo de um órgão do tribunal, pode ser conferido a outro órgão, maior, cuja manifestação vinculará, em outros processos quanto à sobredita questão jurídica, os demais colegiados do tribunal e todos os magistrados sujeitos à sua competência. Caberá, inclusive, reclamação contra decisão, em 1º grau ou de um desses órgãos, que violar a referida manifestação, a qual só será afastada caso revista (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2019, p. 610 a 614).

Já o IRDR, preceituado nos arts. 976 a 987 do CPC, verifica-se, além dos casos processuais de aplicação do IAC, em ações de competência originária de magistrado. Distintamente também, exige-se para o IRDR que esses contextos envolvam questão de direito efetivamente repetível em processos. Em tais circunstâncias, aquele magistrado, um relator, ambos de ofício; qualquer das partes, o MP ou Defensoria Pública, esses três mediante petição, poderão solicitar ao presidente de tribunal o incidente em análise, cujo julgamento caberá a um dos órgãos desse juízo incumbidos da uniformização jurisprudencial. Aceito o incidente, o relator do julgamento suspenderá, pelo correspondente prazo, todos os processos com a questão jurídica repetível, na área de atuação do tribunal. E o que for decidido, exceto havendo revisão, atingirá cada um desses processos e os futuros, a surgirem na mesma área, envolvendo aquela questão (DONIZETTI, 2019, p. 1345 a 1349).

Ainda sobre o IRDR, qualquer dos seus legitimados pode requerer, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou Supremo Tribunal Federal (STF), a suspensão, a nível nacional, dos autos com a questão repetível, ocasião na qual, posteriormente, um desses tribunais emitirá pronunciamento vinculativo no território brasileiro (DONIZETTI, 2019, p. 1349).   

Por sua vez, os recursos especiais e extraordinários repetitivos, delineados nos arts. 1036 a 1041 do CPC, manifestam-se quando há pluralidade dessas modalidades recursais, com similar questão jurídica. Nesse quadro, em regra, o presidente ou vice-presidente de Tribunal de Justiça (TJ) ou Tribunal Regional Federal (TRF) escolherá dois ou mais desses recursos para julgamento pelo STJ ou STF. Até o término deste, ficarão sobrestados os demais processos abrangendo a supracitada questão, em território estadual ou regional e, após ordem do relator no STJ ou STF, nacional. A tese resultante do julgamento, servindo de parâmetro, será aplicada em tais processos e nos futuros com essa questão, contextos nos quais os acórdãos recorridos opostos à tese deverão ser reexaminados pelo juízo prolator (DONIZETTI, 2019, p. 1468 a 1470).

Oportuno mencionar a doutrina de Araken de Assis (2017, p. 900 e 979), conforme a qual a escolha dos recursos especiais e extraordinários poderá ainda, nesta ordem, ser efetuada pelo relator no STJ e pelo relator no STF.  

Compreende-se que os incidentes, apreciados até então, e esses procedimentos recursais geram decisões que, a nível estadual, interestadual ou nacional, recairão em diversos processos, presentes ou futuros, com semelhante matéria jurídica, evitando tratamentos judiciais colidentes e propiciando uma ordem jurídica uniforme, estável. Extrai-se daí nítida conexão desses mecanismos com a isonomia e a segurança jurídica. E, assim, nítida conexão com uma justiça cidadã.

Também, as decisões em tais mecanismos possibilitam resolver, com menores despesas e tempo, a gama de processos juridicamente similares, ao serem aplicadas, muitas vezes, no início da respectiva tramitação e antes de várias etapas processuais, como a instrutória. Dessa maneira, são favorecidas a eficiência, a economia processual e, novamente, a cidadania na justiça.

Outro favorecimento à cidadania constata-se no dever do art. 979 do CPC, de maior publicidade possível à implementação e análise do IRDR, exigindo-se do CNJ a criação de um cadastro eletrônico para o exercício dessa publicidade. A previsão, segundo Luiz Guilherme Marinoni (2019, p. 618), facilita o conhecimento das lides submetidas ao incidente e das decisões deste, sendo consectária do direito cidadão à informação.

Beneficiam ainda uma justiça cidadã as permissões, nos recursos especiais e extraordinários repetitivos, de audiências públicas, requisição de dados a tribunais inferiores sobre a controvérsia, e de atuação de terceiros nela interessados. Tal atuação e as audiências diversificam os debates em torno da matéria recursal e podem fornecer, acerca desta, argumentos de experts, estando relacionadas ao direito à participação. Esses fatores, aliados à requisição de dados, ampliam o conhecimento dos julgadores para o exame dos recursos, outro contexto positivo para o direito à informação. E, dessas contribuições aos dois direitos, decorre o benefício à justiça cidadã.

Perante as exposições desta seção, conclui-se que os mecanismos integradores apresentados, pelas contribuições a postulados constitucionais ou direitos fundamentais, alicerçam efetivamente uma justiça com cidadania. 

 

4. FERRAMENTAS INTELIGENTES PARA UMA JUSTIÇA COM CIDADANIA 

Nos últimos anos, tem se observado, no Poder Judiciário do Brasil, crescente movimento modernizador do exercício de variados atos processuais. Um dos frutos do movimento é a criação, em órgãos judiciais brasileiros, de ferramentas de inteligência artificial, objetivando aprimorar esse exercício. Tais ferramentas representam softwares destinados à reprodução, por máquinas e em menor tempo, de funções humanas, racionais, a exemplo da detecção do significado em linguagem escrita ou falada (HEWLETT PACKARD ENTERPRISE, 2019). E favorecem, assim como os mecanismos judiciais pacificadores ou integradores, uma justiça cidadã, o que se perceberá nesta seção. 

Dentre essas ferramentas inteligentes, podem-se citar Victor, do STF; Radar, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG); Elis, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE); Poti, Jerimun e Clara, as três do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN); e Sinapses, do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO). 

Victor, lançada em agosto de 2018, resultou de uma parceria entre servidores do STF e integrantes da Universidade de Brasília (UNB). E foi desenvolvida para executar quatro funções no Tribunal: transformação de imagens, no Processo Judicial Eletrônico (PJe), em textos; definição do início e término de documentos presentes no STF; localização e classificação das peças processuais mais usadas no Tribunal; e identificação de temas de repercussão geral com maior incidência. A referida transformação de imagens, por exemplo, antes efetuada por um servidor em quase três horas, ocorre, através da Victor, em cinco segundos, e o servidor, naquele período, pode, agora, atuar em atividades mais complexas no processamento judicial, havendo aí melhor emprego de bens humanos e materiais (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018b).

Um dos usos da Victor, através das sobreditas funções, acontece na análise dos recursos extraordinários que chegam ao STF, com definição de quais estão conectados a temas de repercussão geral. Há o objetivo de que esse pré-processamento, pela ferramenta inteligente, possa se realizar em todos os tribunais brasileiros logo após a interposição recursal, o que reduziria o tempo do pré-processamento em dois ou mais anos (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018a).

Por sua vez, a ferramenta Radar foi originada em junho de 2018, por membros da Diretoria Executiva de Informática (Dirfor) do TJMG. A Radar possibilita aos usuários procuras inteligentes de processos mediante diferentes critérios, como palavras-chave, momento de distribuição, juiz, demandante ou advogado, inclusive em autos eletrônicos ou administrativos. Dentre os fins das procuras, estão a localização e separação de recursos com similar objeto, para o qual haja precedentes do STF, STJ ou de um IRDR. Isso propicia um exame ágil de casos repetitivos, na primeira ou segunda instância mineira, através daquela localização, com posterior reunião desses casos e julgamento por uma decisão paradigma (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, 2018a).

Uma demonstração de benefícios do software mineiro aconteceu em novembro de 2018, durante sessão da 8ª Câmara Cível do TJMG. Nessa ocasião, através do software, 280 processos com questão jurídica repetível foram julgados em menos de um segundo (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, 2018b).

Outra plataforma inteligente na justiça brasileira, Elis, foi desenvolvida pela Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação (Setic) do TJPE e concluída em novembro de 2018. Pode, entre as funções, triar processos eletrônicos a partir de lides escolhidas por funcionários da Vara de Executivos Fiscais da Capital, e identificar, em tais processos, a presença ou não de prescrição, divergências cadastrais, incompetência processual ou erro na certidão de dívida ativa (CDA). Elis ainda consegue incluir petições executivas em sistema de juízos pernambucanos e assinar despachos (BRITO, 2018).

Antes da implantação dessa ferramenta, servidores do TJPE precisavam de quase 18 meses para triar 80.000 processos eletrônicos executivos. Elis é apta a exercer a mesma triagem com mais precisão e em 15 dias ou até antes (FERREIRA, 2018, apud BRITO, 2018).

Já os softwares Poti, Jerimun e Clara surgiram no começo de 2019, provenientes do trabalho conjunto de integrantes do TJRN e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Poti já está em funcionamento, realizando automaticamente penhora online em contas de inadimplentes, transferindo o quantum penhorado para contas definidas nos autos e atualizando o valor de demandas executivas. Também, não localizando recursos dos devedores, essa ferramenta pode ser configurada para tentar a penhora em intervalos sucessivos de 15, 30 ou 60 dias, função que aumenta a chance de bloqueios efetivos (BAETA, 2019b). Sem a Poti, um servidor do TJRN concretizava, no máximo e mensalmente, quase 300 ordens de penhora, número que, agora, a ferramenta alcança em apenas 35 segundos (SABOYA, 2019, apud BAETA, 2019b). 

As demais plataformas potiguares, Jerimun e Clara, estão ainda em etapa de testes. A primeira classificará e rotulará processos. A segunda analisará documentos, indicará atos judiciais e proporá decisões, introduzindo-as em um sistema para aceitação ou não do julgador (BAETA, 2019b).

A seu turno, a ferramenta Sinapses foi lançada no 2º semestre de 2018, oriunda do Núcleo de Inteligência Artificial do TJRO. A ferramenta possibilita a elaboração de outros sistemas inteligentes para a esfera judicial (BAETA, 2019a) e confere mais agilidade ao exame de lides mediante operações de predição. Nessas operações, durante a construção de uma peça jurídica ou texto pelo julgador, a Sinapses mostra qual o movimento processual recomendável, após pesquisar, em segundos, vários contextos semelhantes em processos já decididos (ANDRADE; MONTENEGRO, 2018).

Acompanhando o surgimento desses softwares e objetivando estendê-los a outros órgãos brasileiros ou desenvolver novos sistemas, o CNJ, pela portaria n.º 25, publicada em 22 de fevereiro de 2019, instituiu o Laboratório de Inovação para o PJe e o Centro de Inteligência Artificial aplicada ao PJe. Conforme o art. 1º da portaria, o laboratório possui, dentre as funções, colher dados sobre inteligência artificial em juízos brasileiros e estender, nacionalmente e no processo eletrônico, ferramentas inteligentes de algum dos juízos. Já o centro tem os fins de pesquisar, desenvolver e criar outras ferramentas inteligentes para uso nessa modalidade processual.

Um dos softwares alvo da função extensora do laboratório é Sinapses, tratado acima. Inclusive como base para a extensão, os presidentes do CNJ e do TJRO assinaram, em outubro de 2018, um termo de cooperação técnica, que preceitua a incorporação da Sinapses ou outras futuras plataformas desse tribunal ao PJe. Assim, realizada a incorporação, cada tribunal brasileiro poderá contribuir, produzindo, através da plataforma rondoniense, ferramentas a serem replicadas aos demais no PJe. E, pelo mesmo termo, o CNJ compromete-se a garantir infraestrutura suficiente às atividades incorporadoras e a financiar a capacitação técnica dos funcionários, de ambos os pactuantes, responsáveis por tais atividades (ANDRADE; MONTENEGRO, 2018). 

Examinados esses sistemas judiciais inteligentes, convém, agora, expor os respectivos favorecimentos para uma justiça cidadã.

Cada um dos sistemas apresenta, entre as consequências, encurtar consideravelmente o tempo para execução de atos processuais diversos, possibilitando concluir, mais precisamente e em horas ou segundos, o que demandaria meses, dias ou o trabalho de vários servidores. Esse fator gera o alcance, em processos, de mais resultados efetivos em menor período e diminui custos, ao propiciar, por exemplo, menores consumo de energia elétrica e necessidade de trabalho humano para os sobreditos atos. E, nesses dizeres, notam-se contribuições à eficiência, à economia processual e, portanto, a uma justiça cidadã. 

Também, no tempo que, antes, exerciam os atos concretizados atualmente pelos softwares, os servidores conseguem dedicar-se a atividades de maior complexidade ou que exijam mais conhecimento, como elaboração de decisões, sentenças, acórdãos, ou colheita de provas. Isso pode elevar intensamente o número de processos julgados, beneficiar o exame probatório e melhorar a realização de atividades decisórias, com maior formulação de soluções justas, aptas a afastar toda a insatisfação. Observa-se aí favorecimento ao cumprimento de direitos e ao acesso à justiça, aspectos relacionados a uma justiça com cidadania. 

Essa contribuição a práticas cidadãs, mediante o acesso à justiça, pode ser detectada ainda nas plataformas Clara e Sinapses. Ao proporem ao julgador, respectivamente, decisões e movimentos processuais recomendáveis, ambas colaborarão em reduzir erros, equívocos nas ações decisórias. Colaborarão, assim, no acesso supracitado. 

Outra contribuição a uma justiça cidadã decorre do Laboratório de Inovação para o PJe. Ao aproveitar, através do laboratório, ferramentas inteligentes de um órgão judicial brasileiro para incorporá-las aos demais, o CNJ aproximá-los-á, ampliando, entre si, a integração, fator positivo para a cidadania na justiça, como se pôde verificar em seção anterior deste texto.

Podem-se constatar mais benefícios a uma justiça cidadã no software Radar. A rápida localização, efetuada por esse sistema, de recursos materialmente semelhantes para submetê-los a decisão uniforme, oriunda, por exemplo, de IRDR, intensifica o exercício desse ou outros mecanismos integradores, a queda de conflitos processuais e a segurança jurídica, efeitos em prol da cidadania na justiça.

Face ao exposto, é possível afirmar que a inteligência artificial, pelos favorecimentos à eficiência, economia processual, acesso à justiça, integração, segurança jurídica, funciona como propulsora de uma justiça cidadã. 

 

CONCLUSÃO

Durante o artigo, buscou-se apresentar as raízes de uma justiça cidadã em seção própria para, através delas e em seções posteriores, analisar instrumentos brasileiros que a favorecem e expor os favorecimentos. Em cada uma das seções, conclusões parciais foram produzidas e serão, adiante, retomadas objetivamente. 

Na seção inicial, sobre os pilares de uma justiça cidadã, após exibidas as mudanças conceituais do termo cidadania, concluiu-se pela atual existência de dois sentidos para o termo: restrito, alusivo à participação em decisões políticas, e amplo, inspirado em pensamentos do sociólogo Thomas Humphrey Marshall. Este sentido foi considerado o mais aceitável e, com base no mesmo, definiu-se a justiça cidadã como aquela que, por mecanismos legais e atos de seus servidores, partes processuais ou terceiros interessados, proporciona, assegura a concretização de direitos, principalmente humanos ou fundamentais, e correlatos deveres.

Na sessão seguinte, sobre conciliação e mediação, ficou estabelecido que, ao ampliarem os caminhos para a proteção jurídica e o alcance de soluções justas, favorecem o acesso à justiça e, consequentemente, seu funcionamento cidadão. Também, compreendeu-se que os centros de solução de conflitos, por aumentarem os espaços públicos, estimularem a técnica processual e terem caráter itinerante, beneficiam a cidadania na justiça. Concluiu-se ainda que a conciliação e mediação, mediante os correspondentes postulados da eficiência, economia processual, informalidade, autonomia da vontade e decisão informada, todos fundados em direitos fundamentais, trazem mais benefícios ao exercício judicial cidadão.

Na terceira seção, relativa a instrumentos judiciais integradores, assentou-se que as cartas de ordem e precatórias, devido à predominante emissão eletrônica, mais eficiente e econômica processualmente; à natureza itinerante; e à contribuição ao direito à informação, propiciam uma justiça cidadã. Entendeu-se, ademais, que a cooperação nacional, por modalidades favoráveis à segurança jurídica, ao direito à informação, e pela dispensa de forma específica no pedido, benéfica à simplificação procedimental, contribui para a cidadania na justiça. Também, ficou definido que os mecanismos integradores de combate a divergências judiciais, ao proporcionarem uma ordem jurídica estável e a resolução de vários processos no início da tramitação, geram mais contribuições à eficiência, economia processual, segurança jurídica e, portanto, a uma justiça cidadã. 

Ressaltaram-se ainda, na terceira seção, a previsão, para o IRDR, de maior publicidade possível, e as permissões, para os recursos especiais e extraordinários repetitivos, de audiências públicas; requisição de dados a tribunais inferiores; e atuação de terceiros. Preceitos normativos em prol dos direitos à informação, à participação, e de uma justiça com cidadania.

Enfim, na quarta seção, voltada a plataformas judiciais inteligentes, concluiu-se que agilizam fortemente diversos atos processuais e podem elevar a atuação de servidores em atividades jurídicas complexas, beneficiando a elaboração de decisões e a formulação de soluções justas. Resultam desses efeitos favorecimentos à justiça cidadã. E, na mesma seção, estabeleceram-se outros favorecimentos através das ferramentas Clara e Sinapses, ao proporem decisões ou movimentos processuais recomendáveis, fortalecendo o acesso à justiça; do Laboratório de Inovação para o PJe, por integrar juízos brasileiros durante a incorporação do software de um órgão aos outros; e através da plataforma Radar, ao acelerar o julgamento de recursos repetitivos, com benefício à segurança jurídica.

Portanto, através dessas considerações e dos argumentos construídos neste trabalho, nota-se a forte relação dos mecanismos judiciais pacificadores, integradores e inteligentes com a cidadania na justiça. Extrai-se da percepção a importância, para a presença ou intensificação de uma justiça cidadã, de os órgãos judiciais brasileiros investirem ou ampliarem os investimentos nesses mecanismos.  

 

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Data da conclusão/última revisão: 05/12/2020

 

Como citar o texto:

VICENTE, Alan Vinícius..Caminhos para uma justiça cidadã no Brasil. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1017. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/10865/caminhos-justica-cidada-brasil. Acesso em 11 fev. 2021.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.