Não é de hoje que doutrina e jurisprudência pátrias têm se preocupado com a efetividade da tutela jurisdicional, pois, como sabido, a finalidade precípua da jurisdição é, em “ultima ratio”, solucionar adequadamente as situações de crise de direito, por meio do restabelecimento da ordem jurídica violada.
Bem por isso, nas palavras da professora Maria Celia Nogueira Pinto e Borgo (BORGO, 2019, p. 174), “a tutela jurisdicional deve ser compreendida pelo prisma da proteção efetiva, por meio do processo, a direitos violados ou sob ameaça de violação, nos termos do artigo 5º, XXXV da Constituição Federal.”
Trata-se, como logo se percebe, da visão instrumental do processo, perspectiva na qual a técnica é valorizada como garantia de realização do direito material; essa compreensão traz consigo, de forma inexorável, a certeza de que o direito processual deve se adaptar tanto quanto possível ao direito material, valendo-se de técnicas que o concretizem em termos práticos.
O mestre Cândido Rangel Dinamarco (DINAMARCO, 2009, p. 339/340) já pontuava que a realidade dos conflitos e das variadas crises jurídicas em que eles se traduzem gera a necessidade de instituir procedimentos diferentes entre si, segundo peculiaridades de diversas ordens, colhidos no modo de ser dos próprios conflitos, na natureza das soluções ditadas pelo direito substancial e nos resultados que cada espécie de processo propõe-se a realizar.
Significa dizer, em outras palavras, que nem sempre um procedimento padrão, com fases preestabelecidas na lei e composto de atos cuja prática é dotada de relativa higidez conduz à efetividade da tutela prestada. Disso resulta, como corolário natural, que por ser o processo instrumental, o procedimento deve ser adaptado à realidade dos conflitos e das soluções buscadas.
Até porque, verdade seja dita, não interessa ao Estado, tampouco à sociedade, um processo que, a pretexto de cumprir friamente determinada formalidade positivada, se mostre imperfeito, com resultado injusto e contrário ao direito material. A formalidade do processo não pode ser um valor superior à efetividade da prestação jurisdicional, tampouco deve se sobrepor ao que é justo, conforme o direito.
Não se quer dizer com isso, absolutamente, que as regras procedimentais não devam ser observadas, notadamente poque é a forma que oferece a necessária segurança jurídica e previsibilidade quanto a atuação do juiz e das partes. Contudo, o estrito cumprimento das regras procedimentais deve ser abrandado quando sua observância ilimitada puder contrariar a sua própria finalidade.
Essa, a propósito, é a orientação externada pelo preclaro José Roberto dos Santos Bedaque (BEDAQUE, 2010, p. 18), segundo o qual “a técnica processual deve ser observada não como um fim em si mesmo, mas para possibilitar que os objetivos, em função dos quais ela se justifica, sejam alcançados.”
E prossegue:
“Não obstante o aprimoramento técnico alcançado pela ciência processual, alguns aspectos ainda carecem de melhor desenvolvimento. A radical mudança de perspectivas verificada nos últimos anos – em razão do quê o processualista deixou de se preocupar exclusivamente com conceitos e formas, para dedicar-se à busca de mecanismos destinados a conferir à tutela jurisdicional o grau de efetividade que dela se espera – impõe sejam revistas idéias concebidas à luz de outra realidade histórica.”
De tudo isso se extrai, portanto, que a forma deve servir ao processo e à consecução de seu fim que é, relembre-se, a proteção efetiva a direitos violados ou sob ameaça de violação.
Estabelecida tal premissa, convém relembrar que a ação de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente tem o seu procedimento disciplinado pelo Decreto-Lei 911, de 01 de outubro de 1969 (BRASIL, 1969), texto normativo que sofreu diversas alterações em sua redação original com o passar dos anos.
Dentre as modificações legislativas impingidas ao mencionado Decreto-Lei, encontra-se a introduzida pela Lei 13.043, de 13 de novembro de 2014 (BRASIL, 2014), responsável pela alteração do texto contido no Art. 3º, §3º, que, desde então, passou a ter a seguinte redação:
“Art. 3º (...)
§ 3º O devedor fiduciante apresentará resposta no prazo de quinze dias da execução da liminar.”
A técnica de produção legislativa empregada sugere que nas ações de busca e apreensão fundadas no Decreto-Lei 911/69 (BRASIL, 1969), o réu (devedor fiduciante) apenas poderá oferecer contestação depois de executada a medida liminar.
Referida compreensão, no entanto, respeitadas as posições divergentes, não se mostra a mais adequada, inclusive estando pendente de julgamento no Superior Tribunal de Justiça o Recurso Especial 1.799.367/MG, afetado ao rito dos recursos repetitivos para formar precedente qualificado sobre o tema.
É sabido, como bem esclarecido pelo desembargador Hugo Crepaldi (CREPALDI, 2016), que por meio da alienação fiduciária em garantia tem-se a transferência da propriedade resolúvel da coisa ao credor fiduciário, com a finalidade de garantir o cumprimento da obrigação ajustada entre as partes, tornando-se o devedor fiduciante possuidor direto do bem. Ocorrendo o pagamento integral da dívida, resolve-se a propriedade fiduciária, consolidando-se nas mãos do então devedor a propriedade plena do bem. Todavia, em caso de inadimplemento, o credor poderá se valer da ação de busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, observando as disposições do Decreto-Lei 911/69 (BRASIL, 1969).
Clarividente, nesse diapasão, que a ação de busca e apreensão tem por finalidade o desfazimento do correspondente negócio jurídico, consolidando a propriedade plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciante, que ficará autorizado a transferi-lo à terceiros, livre do ônus da propriedade fiduciária, inclusive com a expedição de novo certificado de registro de propriedade.
Justamente em razão das consequências advindas do comando judicial pretendido em ações desta natureza (mormente o desfazimento do negócio jurídico e alijamento do devedor da posse do bem) é que o legislador previu determinados requisitos para que a ordem de busca e apreensão seja deferida (cuja ausência importará na rejeição do pleito), quais sejam: a coisa deverá ser individualizada, com o valor da dívida pormenorizada e informação do vencimento, além de ser imprescindível a juntada do contrato e, especialmente, a comprovação da mora.
Nesse contexto, ressoa cristalino o entendimento de que o réu, ciente da expedição de uma ordem para apreender seus bens e dispondo de elementos que evidenciem a ausência dos requisitos legais que autorizam a medida de busca e apreensão, não pode ser compelido à aguardar a execução da medida para, só então, se defender.
É medida de justiça que lhe seja franqueada a possibilidade de se adiantar e, desde logo, fulminar a ilegalidade presente.
Ora, não se mostra consentâneo ao interesse do Estado, especialmente quando analisado sob o viés da efetividade da prestação jurisdicional, exigir que, mesmo tendo conhecimento de que o credor fiduciante deixou de demonstrar os requisitos exigidos para o manejo da ação, o devedor fiduciante precise aguardar que ocorra a apreensão do respectivo bem para, só então, concretizada a ilegalidade, apresentar defesa, expondo fundamentos e provas que, acaso analisados antes da efetivação da medida, poderiam evitar a prática de atos processuais desnecessários.
Vale dizer, nenhuma efetividade teria a prestação jurisdicional na hipótese em que, mesmo presente nulidade que fulminaria a ação já no seu nascedouro, fosse a parte contrária obrigada a aguardar a execução da medida liminar de busca apreensão (que, dependendo da taxa de congestionamento da serventia judicial competente, pode demorar anos) para que pudesse apresentar ao juízo fato impeditivo, modificativo e/ou extintivo do direito do autor, capaz de coibir o próprio recebimento da petição inicial.
Em verdade, nesse caso, a pretexto de cumprir formalidade prevista em lei, estar-se-ia admitindo a violação de direito de um dos litigantes, contrariando a própria finalidade da norma e, porque não dizer, do Direito como um todo, uma vez que, nas palavras do inesquecível Giuseppe Chiovenda (CHIOVENDA, 1930, p. 110) “O processo deve dar, na medida do possível, a quem tem um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que tem direito de conseguir.”
Tal posição, merece registro, foi albergada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 236.497/GO, de relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barros, no qual restou assentado que “O Decreto-lei 911/69 exige a comprovação da mora ou do inadimplemento do devedor (Art. 3º, caput). O réu tendo conhecimento de que o autor não comprovou a mora, não precisa esperar pela expropriação de seus bens, para depois apresentar defesa”.
Nessa mesma diretriz, mais recentemente, no julgamento do Recurso Especial 1.419.197/MG, o Tribunal Cidadão, dessa vez sob a relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, reiterou o entendimento de que “não é extemporânea a contestação apresentada antes do cumprimento da liminar na ação de busca e apreensão, que deve ser analisada, já que o réu não é obrigado a aguardar a execução da liminar, que lhe é desfavorável, para se defender.”
Clarividente, nessa ordem de ideias, que a formalidade preconizada no Art. 3º, §3º, do Decreto-lei 911/69 (BRASIL, 1969, Art. 3º) não pode ser utilizada como obstáculo para que o réu apresente defesa antes mesmo da efetivação da medida de busca e apreensão, sendo este, afinal, o mecanismo que melhor confere à tutela jurisdicional o grau de efetividade que dela se espera, especialmente em razão da realidade histórica atualmente vivenciada.
A legitimidade da tese aqui defendida, destaque-se, é reforçada pelo fato de que embora disponha sobre o termo inicial da contagem do prazo para o oferecimento de defesa (execução da liminar de busca e apreensão), o Decreto-Lei 911/69 (BRASIL, 1969) não veda, em momento algum, a apresentação espontânea de resposta pelo réu, podendo-se concluir, então, que o marco temporal escolhido pelo legislador não cria qualquer óbice para apresentação da resposta antes disso, tão somente estabelecendo que, a partir dele, se inicia o prazo para defesa.
Também essa foi a orientação externada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.535.065/DF, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino:
“O marco temporal estabelecido pelo legislador - da execução da liminar - serve, em verdade, tão somente para demarcar o inicio da contagem do prazo de 15 dias estabelecido pela regra legal.
Ou seja, o marco temporal escolhido pelo legislador não cria qualquer óbice para apresentação da resposta antes disso, tão somente estabelecendo que, a partir dele, se inicia o prazo para resposta.
Não há, portanto, vedação à antecipação da resposta do réu ao marco legal, que é a execução da liminar.
Inexistindo vedação legal para apresentação espontânea da resposta do réu, não há falar em "só cumprida a liminar é que o réu pode contestar", pois tal vedação não está contida na lei. (...)”
E não se diga, como inadvertidamente pode vir a ser alegado, que a ausência de expressa manifestação sobre a possibilidade de apresentação de defesa antes da execução da medida liminar de busca e apreensão seria fruto do silêncio eloquente do legislador, com o claro propósito de não admitir tal procedimento.
Isso porque, como se sabe, a caracterização do silêncio eloquente decorre da existência de alguma razão jurídica para o tratamento diferenciado dado àquela situação não tratada de forma expressa. Se há justificativa para o tratamento diferenciado, temos silêncio eloquente. Do contrário, acaso não seja possível identificar fundamento que justifique a diversidade, o caso é de omissão legislativa.
Voltando os olhos para a hipótese aqui estudada, é nítida a ausência de qualquer justificativa jurídica para se proibir o réu de apresentar defesa em momento anterior à execução da medida liminar de busca e apreensão, consubstanciando a inércia do legislador, nesse aspecto, em omissão legislativa, que pode, inclusive, ser suprida pela aplicação supletiva do Código de Processo Civil, conforme expressa previsão do Art. 1.046, §2º, do Novo Códex (BRASIL, 2015, art. 1.046), que assim dispõe “in verbis”:
Art. 1.046. Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
(...)
§2º. Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código.
No ponto, com relação à referida incidência supletiva, importante trazer à baila as judiciosas ponderações do mestre Pontes de Miranda que, citando o saudoso processualista Barbosa Moreira, bem lembrou que as regras constantes do Código de Processo Civil constituem o reservatório comum da disciplina de todos os feitos, desde que compatíveis com os diplomas legais extravagantes que lhes tracem o procedimento (MIRANDA, 1939, p. 72).
Significa dizer, em outras palavras, que o Código de Processo Civil, na qualidade de lei geral, é, ainda que de forma subsidiária e supletiva, a norma a espelhar o processo e o procedimento no direito pátrio, sendo normativo suplementar aos demais institutos do ordenamento.
Diante disso, pode-se sustentar, em complemento às razões acimas alinhavadas, que a regra do Art. 3º, §3º, do Decreto-Lei 911/69 (BRASIL, 1969, Art. 3º) deve ser complementada pela norma do Art. 218 do NCPC (BRASIL, 2015, Art. 218), segundo o qual “será considerado tempestivo o ato praticado antes do termo inicial do prazo.”
Entendimento diverso importaria em restrição indevida ao direito de defesa do réu, pois, à revelia da norma específica, consideraria intempestiva a resposta oferecida antes mesmo do início do prazo para tal mister, em evidente afronta ao Código de Processo Civil que ostenta, como dito acima, a qualidade de normativo suplementar aos demais institutos do ordenamento.
Portanto, concluindo, inobstante o Decreto-Lei 911/69 dispor, em seu artigo 3º, §3º, que o prazo da contestação tem início após a execução da medida liminar de busca e apreensão, nada impede (ao contrário, tudo recomenda) que o réu, ciente da expedição de uma ordem para apreender seus bens e dispondo de elementos que evidenciem a ausência dos requisitos legais que autorizam a medida na forma como pleiteada, adiante-se e apresente, desde logo, sua peça defensiva, sendo esta a conclusão que, certamente, chegará o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1.799.367/MG, afetado ao rito dos recursos repetitivos para formar precedente qualificado sobre o tema.
REFERÊNCIAS.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 18.
Op. Cit. p. 17.
BORGO, Maria Celia Nogueira Pinto e. Breve análise sobre flexibilização procedimental por meio de negócio jurídico processual no código de processo civil brasileiro de 2015. Revista Jurídica da UniFil, Ano XV - nº 15, p. 174. Disponível em “http://periodicos.unifil.br/index.php/rev-juridica/issue/view/63”. Acesso em 13.05.2021.
BRASIL. Decreto-Lei n.º 911, de 1º de Outubro de 1969. Altera a redação do art. 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, estabelece normas de processo sôbre alienação fiduciária e dá outras providências. Brasília, DF, out. 1969. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/del0911.htm.
BRASIL. Lei n.º 13.043, de 13 de novembro de 2014. Altera o Decreto-Lei n.º 911/69, de 1º de outubro de 1969. Brasília, DF, nov. 2014. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13043.htm#art101.
BRASIL. LEI N.º 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 236.497/GO, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/12/2004, DJ 17/12/2004.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.419.197/MG. Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/08/2015, DJe 27/08/2015.
CHIOVENDA, Giuseppe. Dellazione nascente dal contratto preliminare, Saggi di diritto processuale civile, 1, Roma, Foro Italiano, 1930, pág. 110.
CREPALDI, Hugo. Temas polêmicos da ação de busca e apreensão em alienação fiduciária. Disponível em “https://www.conjur.com.br/2016-mai-04/crepaldi-divergencias-busca-apreensao-alienacao-fiduciaria”. Acesso em 13.05.2021.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol III, 6ª ed., São Paulo, Malheiros: 2009, p. 339-340.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil de 1939, 2ª ed., t. 1, p. 72.
Data da conclusão/última revisão: 13/05/2021
Ygreville Gasparin Garcia
Advogado; sócio fundador da "F & G - Felini e Garcia Advogados Associados"; pós-graduado em Direito Público; autor de artigos jurídicos.
Código da publicação: 11289
Como citar o texto:
GARCIA, Ygreville Gasparin..Viabilidade da contestação antes da busca e apreensão nas ações regidas pelo Decreto-Lei 911/69. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 20, nº 1046. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/11289/viabilidade-contestacao-antes-busca-apreensao-nas-acoes-regidas-pelo-decreto-lei-911-69. Acesso em 1 set. 2021.
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