O objetivo precípuo desta sucinta análise é trazer à luz aspectos de lógica formal aplicáveis ao direito processual civil, não como uma questão fechada, mas sim como tentativa de abrir uma janela a um novo horizonte de discussões.
O foco desta brevíssima análise terá como alvo dois aspectos, um já se tornando rotina para os advogados, a regulamentação infraconstitucional da repercussão geral, com a novel praxe de os vice-presidentes e presidentes de tribunais a quo não apenas se recusarem a conhecer de recursos extraordinários, como também partirem para negativa de conhecimento, e criação de óbices ao trâmite regular de agravos do art. 544 do CPC.
A lógica formal é terreno altamente escorregadio, onde, conforme faremos referência adiante, notórios cientistas já deslizaram, portanto não teríamos a pretensão de apresentar uma certeza, o que não nos impede de abrir uma honesta discussão sobre elementos que apontam a não sustentabilidade, inclusive por sérios gravames de inconstitucionalidade, do atual modelo como vem sendo aplicado. Inclusive pela forma como o Supremo Tribunal Federal parece vir conduzindo sua jurisprudência, qual parece ter caráter defensivo meramente reativo, quando a situação exige um viés proativo paradigmático.
Não é redundante repetição, e sim oportuno trazer o que nos tem a dizer, a respeito da repercussão geral e a uniformização de demandas repetitivas, a lógica formal. É que, a despeito de não pretendermos reduzir o direito à unicamente lógica, há, contudo, aspecto de verdade de que o direito, como ciência que é, se beneficia também da lógica, tanto quanto não prescinde desta. O que pretendemos explorar aqui é um paradoxo que surgiu em estudos de filosofia da linguagem, o Paradoxo de Russel. Um primeiro exemplo de que podemos nos servir, visando introduzir o Paradoxo de Russel, é apresentado pelo professor de lógica e PhD Raymond Smullyan .
Suponha-se a seguinte afirmação:
Você não tem nenhuma razão para acreditar nesta frase.
Se a afirmação for verdadeira, então afirma sua falsidade. Sendo falsa, não é verdade o que afirma. Disto deduz-se que há razões para acreditar na frase; porém, acreditando no que a frase diz, temos a demonstração de sua falsidade. Podemos apresentar aqui, visando retomar adiante, outra proposição apresentada pelo mesmo autor: certo empresário resolveu oferecer uma recompensa de algumas centenas de dólares para qualquer empregado que oferecesse sugestões eficazes que levassem a empresa a economizar dinheiro. Recebendo os bilhetes dos empregados, um veio escrito: “comece eliminando a recompensa”.
A qual objetivo se pretende chegar? Demonstrar que não existe o conjunto de todas as coisas, o conjunto de tudo. Para demonstrá-lo, definamos um conjunto com a propriedade de não pertencer a nenhum outro conjunto. Isto feito, definamos o conceito de conjunto normal e o conjunto dos conjuntos normais. Um conjunto X é normal se não pertence a nenhum outro conjunto. Definamos o conjunto dos conjuntos normais onde seus elementos são conjuntos normais, no que não há impedimento a um conjunto composto de conjuntos, e o chamemos de N. Óbvio todos seus elementos serem conjuntos normais (lembrando sobre a condição de normalidade estar definida no fato de um conjunto normal não poder pertencer a nenhum outro conjunto). Se N é um conjunto normal, então não pertence a N (N?N), ao conjunto dos conjuntos normais; mas se N é um conjunto normal, não pertencer a N afirmaria que N não é normal. E se N pertence a N (N?N), mesmo pertencendo ao conjunto dos conjuntos normais, está violada sua condição de normalidade, pois que sendo normal não poderia pertencer a nenhum outro conjunto, logo N não é normal. Situação impossível? Eis o Paradoxo de Russel .
O que fizemos expor pode assim ser expresso em linguagem de lógica formal: os paradigmas, para serem classificados como tal, precisam estar ordenados em conjuntos e subconjuntos. Um paradigma de repercussão geral será, por si mesmo e modo inexorável um conjunto de elementos de subsunção, pois deverá conter um certo número de elementos de identificação, de similitude, como seus elementos internos.
Definamos um paradigma já julgado como Ri (R de repercussão geral, poderia ser J de julgados), sendo i um índice de indexação dentro do rol de paradigmas já julgados. Usamos R para denominar o conjunto de todos os paradigmas de repercussão geral já julgados, sendo Ri uma referência a paradigma de repercussão geral identificável pelo índice i num rol de n paradigmas. Podemos ter i como um número qualquer entre 1 (o primeiro paradigma julgado até a data da análise da questão) e n (o último paradigma definido até a data do julgamento). Representemos esta situação como 1? i ? n.
Tomemos a seguinte tese: seja R = {R1,...Rn}, ou seja, R é um conjunto de modelos de paradigmas de repercussão geral aplicáveis em prévia análise de admissibilidade dos recursos extraordinários, onde cada Ri, 1? i ? n, é elemento de R. R seria um conjunto de conjuntos, onde cada Ri seria um conjunto de elementos de identificação de algum dos paradigmas já julgados até a data presente em que o novo caso concreto é apreciado. Cada Ri pode ser visto, efetivamente, como um conjunto de pressupostos de identificação do caso concreto a alguma das teses de repercussão geral, já decididas, de um rol previamente definido.
Se R contém todos os conjuntos de paradigmas, R não pertence a R (R ? R), por que se assim fosse, R seria apenas mais um caso de paradigma de repercussão geral e não o conjunto de todos os paradigmas já julgados.
Suponhamos rx denominando em abstrato, definindo um possível recurso extraordinário, inédito, apresentado para análise, mas tido como assemelhado, através da identificação de suficientes elementos comuns, a um dos paradigmas de repercussão geral.
Se rx é passível de escorreita subsunção a um dos paradigmas Ri, 1? i ? Rn em qualquer situação, de forma inconteste, da condição deste recurso ter suas razões pertencentes a um rol de elementos de subsunção a um paradigma já julgado (rx ? Ri). Então, o recurso extraordinário, uma vez identificado por inteiro a um paradigma, pertence ao conjunto das teses repetitivas já definidas (rx ? R). Temos que rx pertence a um conjunto Ri, o qual, por sua vez, pertence a R, o que conduz à inevitável situação de R ? R, R pertencendo a si mesmo. Efetivamente, esta situação conduz à conclusão de R ser mais um simples paradigma pertencente ao conjunto de todos os paradigmas, quando se pretendia ter R o conjunto de todos os paradigmas, verdadeiro paradoxo. Sustentando que possamos ter R não pertencente a R (R ? R), deveria para tal haver um paradigma rx qualquer que pertencesse a R sem pertencer a Ri. Nada útil em desconstruir o paradoxo.
Reduzindo à dimensão pragmática, não existe, dentro da perspectiva da lógica, como se estruturar um conjunto de todos os modelos de soluções para todos os recursos assemelhados. Não há possibilidade lógica de se ter um conjunto de modelos de repercussão geral qual possa abranger todas as possibilidades de casos concretos. Mais importante, não há um conjunto de paradigmas capaz de definir, com segurança e certeza, todos os casos concretos, em subsunção adequada às teses de repercussão geral já julgadas.
O que fizemos acima foi pura e simplesmente, de várias formas, demonstrar que não é uma questão simples de “lógica e certeza” capitular um caso a um prévio paradigma de repercussão geral de modo perfeito, ou afirmar o absoluto ineditismo do caso apresentado como lide em recurso extraordinário. O mais provável, saindo da abstração e entrando na realidade social, é se abrir espaços a solipsismos, matrizes de decisionismos por parte das instâncias ordinárias, como se houvesse uma razão de certeza demonstrada de inexistir, pelo contrário, configurando-se gritante violação de normas constitucionais. Estas, buscando encerrar as lides sem revisão por parte dos tribunais de sobreposição, poderão representar a redução de tudo a verdadeiros leitos de Procusto argumentativos, esticar ou amputar as teses recursais apresentadas pelas partes até que pareçam caber em um paradigma de casos já julgados de seu banco de teses, passando, então, a obstar a subida do recurso extraordinário, e, mais grave, do respectivo agravo do art. 544 do CPC. Resta, por enquanto, apenas a Reclamação ao STF.
O que demonstramos cabe tanto para o atual modelo de repercussão geral em recurso extraordinário, recursos repetitivos ao STJ, quanto é aplicável, por iguais fundamentos lógicos, ao proposto pelo artigo 903 do Anteprojeto do novo Código de Processo Civil.
A concluir mais um pouco sobre o Paradoxo de Russel, nos é útil citar uma obra onde a questão é tratada de modo mais palatável, de Catchart e Klein . Usam a seguinte explanação. Há duas classes de palavras: Autológicas, ou seja, que se referem a si mesmas, como breve (palavra breve), polissilábica, e Heterológicas, como escancarado e moído, que não se referem a si mesmas, pois não uma palavra com a qualificação de escancarada ou de moída. A questão, a palavra “heterológica” é autóloga ou heterológica? Se autóloga o é, não é heterológica, se for heterológica, será autológica.
Como o Supremo Tribunal Federal tenta, atualmente, lidar com aplicações indevidas da repercussão geral? Firmou jurisprudência determinando ser cabível o recurso do agravo interno ao Órgão Especial, como norma consuetudinária, firmada pelo Pleno do STF. Esta exclusão de análise de agravos do artigo 544 do CPC, como negar que temos algo a que Alexy , discorrendo sobre fundamentação da norma e aplicação da norma, chama de Modelo Trágico?
1 - O Supremo aceita a regra infraconstitucional e aplica a norma consuentudinária (sem análise sobre natureza de caso diverso ou não) e afasta do conhecimento do Tribunal questões constitucionais inéditas à Corte, devidamente prequestionadas.
2 - O Supremo Tribunal Federal impõe sua autoridade, faz prevalecer o disposto no artigo 102 da Constituição, impõe sua prerrogativa de guardião da Constituição, e determina interpretações conformes à norma infraconstitucional, modificando, no que for necessário, sua própria jurisprudência.
Em breve síntese, a fundamentação da norma exige que haja um aspecto recíproco-universal expresso numa imparcialidade de significado universalidade, expresso nas condições de aprovação racional de todos, excluindo qualquer possibilidade de aplicações distintas, casuísticas, da norma. Simultaneamente, o discurso de aplicação da norma é fundado na permanente tentativa de se considerar uma situação apresentada à luz de todas as normas cabíveis e entrarem na ponderação sobre a questão. A imparcialidade do discurso de aplicação da norma tem seu fundamento no fato de que nenhuma situação concreta e nenhuma norma cabível de aplicação possam ser excluídas de apreciação.
Temos a situação onde uma das duas normas (a Constituição ou a norma consuetudinária firmada pelo STF para interpretação conforme da legislação processual infraconstitucional) fatalmente acabará descumprida, sem solução visível de conciliação.
A primeira questão que nos parece óbvia é se tratar de explícita usurpação de competências privativas do STF, pois Presidentes e Vice-Presidentes dos tribunais a quo impedem a subida dos agravos do artigo 544 do CPC, tomando para si a decisão de afirmar se tratar, ou não, de tese decidida em sede de repercussão geral e encerrando abaixo, e sem conhecimento do STF, questões de ordem constitucional.
Voltemos a questão entre o discurso de fundamentação da norma e o discurso de aplicação da norma, visto sobre a óptica de uma típica situação de modelo trágico. Mutilações, amputações de razões recursais para caberem numa afirmação por parte das instâncias ordinárias de ser tese já julgada, logo submetida à repercussão geral. O que pode o Supremo Tribunal Federal fazer em relação a tal fato?
1 - 0 Supremo Tribunal Federal afasta à questão de fundamentação da interpretação, sobrevalorizando em abstrato, por conveniência da jurisprudência defensiva, a fundamentação da norma como universal, e não aprecia os fatos.
2 - 0 Supremo Tribunal Federal analisa a violação das normas constitucionais, principalmente as manobras que visam usar das normas infraconstitucionais para tornar sem eficácia o artigo 102 da Constituição, atualiza sua jurisprudência, e ao invés de sair diminuído, diminuí à sua real dimensão os tribunais a quo, impondo a autoridade da Suprema Corte.
Como antes exposto, não estamos procurando ter uma asserção de verdade, apenas estamos abrindo a questão à discussão, incluindo a possibilidade de que seja apresentada uma solução para o dilema acima onde, sem se defenestrar a força normativa da constituição em favor de manter a coerência da norma infraconstitucional, se solucione a questão.
Há dois argumentos fáceis de usar, porém facilidade não é eficácia. O inciso LVXXIII do artigo 5º da CRFB-88 consagrou a direito fundamental a celeridade processual. E há o princípio da igualdade, causas idênticas devem receber tratamentos idênticos. A identidade absoluta das causas ficou infirmada pelos argumentos lógicos acima expostos, haver tratamento igual para causas idênticas se constituiu numa impossibilidade lógica, quer o conjunto de todas as causas idênticas, quer o tratamento igual a essas, situações que conduzem a paradoxos. Quanto aos julgamentos idênticos, mais uma vez voltamos a adaptações ao caso concreto do Paradoxo de Russell.
Como o STF uniformizar plenamente a sua prestação jurisdicional? Não julgando nada! Todos receberiam a pretendida idêntica prestação jurisdicional, mas ao preço de desconstruir o artigo 102 da Constituição Federal. O mesmo vale para o STJ em relação ao rol dos recursos repetitivos.
Em que se argumente que o povo não quer saber de detalhes e sim tão somente de uma célere prestação jurisdicional. Ponderemos os fatos sem restrições a aspectos factuais não desejáveis. Temos uma Constituição Federal escrita, onde em seu artigo 102 a guarda precípua desta Constituição foi dada ao STF, não ao Parlamento e nem a um colegiado de tribunais a quo. Seria um discurso da constituição de fato tendo poder de desconstruir a constituição escrita, esta ficando reduzido a “um livrinho de normas modificável a qualquer momento pelos fatos concretos”. O Supremo Tribunal Federal não está cercado por canhões e baionetas, não está obrigado a vergar à força de uma revolução armada, e nem o tecido social se esgarçou o suficiente para dar sustentação fática ao discurso das constituições de fato. Vige a CRFB-88 em plenitude. Vigendo a atual Constituição o artigo 102, caput, define ao Supremo Tribunal Federal a guarda precípua da Constituição Federal, em toda sua força normativa.
O inciso LVXXIIII do artigo 5º da Constituição não pode servir de argumento para esfacelar, não infirmar e sim realizar uma verdadeira desconstrução, retirar a vigência do inciso XXXV do mesmo artigo 5º e do caput do artigo 102 da CRFB-88. Por óbvio que não importa o que o Parlamento tenha decidido em legislação infraconstitucional, se as normas infraconstitucionais de processo que regulamentam a repercussão geral criam um quadro de contínua inconstitucionalidade, não é a Constituição que tem de ser flexibilizada, pois a norma inconstitucional nasceu nula. E esta decisão sobre a constitucionalidade ou não da norma, se total e irremediável, ou passível de uma interpretação conforme, é exclusiva dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
A obstaculização da subida de agravos do artigo 544 do CPC, conforme vem sendo feito por alguns tribunais locais, gera inexoravelmente duas situações: em primeiro lugar, a consolidação de uma praxe não prevista na Constituição Federal, que seria a formação de um consenso das instâncias ordinárias sobre qual conteúdo material deva ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal; além disso, representa o esvaziamento do caput do artigo 102 da Constituição Federal e, por conseguinte, do próprio Supremo Tribunal Federal. Em outras palavras, o comando constitucional que atribui ao STF a guarda precípua da Constituição estaria sujeito à condicionante de um prévio aceite dos tribunais a quo.
Por fim, com iguais argumentos lógicos, adaptados à espécie, pode se dizer que igual quadro de violação da Constituição Federal em seus artigos 105 e 5º, XXXV, a aplicação indiscriminada, com negativa de subida de agravos ao STJ, dos paradigmas de recursos repetitivos. Óbvio o efeito multiplicador deste efeito deletério se não repensado com profundidade o artigo 903, e todo mecanismo de julgamento de lides repetitivas, propostos no anteprojeto do Novo CPC.
Como conclusão, seria uma desmedida pretensão pensar que estamos oferecendo um novo caminho, ou que poderíamos estar encontrando a solução para problemas tão difíceis como é a legislação processual que seja conforme a Constituição Federal. Cumprimos nosso objetivo? Considerando a pretensão de abrir uma janela à discussão do tema, candente no STF, por certo quaisquer manifestações que visem infirmar, de forma fundamentada o que aqui fizemos demonstrar, se alcançado tal objetivo será não uma demonstração de um equívoco de uma linha de raciocínio, mas sim um grande serviço a nossa jurisdição constitucional. A abertura de espaços nesta discussão inclusive para os especialistas em lógica formal, que tanto podem socorrer os juristas em casos difíceis, especialidade esta que o autor deste texto nunca se avoca, o que não impede de se valer da lógica. Se confirmada a tese aqui apresentada, igual serviço a nossa jurisdição constitucional terá sido igualmente prestado.
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Data de elaboração: setembro/2011
Ramiro Carlos Rocha Rebouças
Advogado.Código da publicação: 2364
Como citar o texto:
REBOUÇAS, Ramiro Carlos Rocha..Paradoxos da lógica formal e a aplicação da norma infraconstitucional em repercussão geral e causas repetitivas. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/2364/paradoxos-logica-formal-aplicacao-norma-infraconstitucional-repercussao-geral-causas-repetitivas. Acesso em 21 nov. 2011.
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