Da indevida limitação da atuação da Defensoria nos litígios possessórios tratados no Código de Processo Civil
Sem adentrar na discussão acerca da natureza jurídica da atuação da Defensoria Pública nas hipóteses tratadas nos artigos 554, 1º, e 565, 2º, ambos do Código de Processo Civil e também se os litígios possessórios ventilados se tratam de litisconsórcio multitudinário ou de processo coletivo, deve-se criticar o condicionamento da atuação da referida instituição à presença de hipossuficiente financeiro na relação jurídica processual.
Do texto legal vê-se a exigência de o conflito possessório “envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica”, no caso do artigo 554, 1º, do CPC. E, no que tange o artigo 565, § 2º, também da Lei Processual Civil, exige-se que haja “parte beneficiária de gratuidade da justiça”.
Contudo, tal exigência não coaduna com a Lei Maior, que não faz a indevida restrição. A expressão “necessitados” estampada no caput do artigo 134 da Constituição deve ser compreendida em sentido amplo.
É que a Lex Magnum impõe que a Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, atue quando haja evidente violação à isonomia material, seja por insuficiência de recursos, seja por motivos outros.
Nesse sentido, vem se manifestando o Superior Tribunal de Justiça:
"A expressão -necessitados- (art. 134, caput, da Constituição), que qualifica, orienta e enobrece a atuação da Defensoria Pública, deve ser entendida, no campo da Ação Civil Pública, em sentido amplo, de modo a incluir, ao lado dos estritamente carentes de recursos financeiros - os miseráveis e pobres -, os hipervulneráveis (isto é, os socialmente estigmatizados ou excluídos, as crianças, os idosos, as gerações futuras), enfim todos aqueles que, como indivíduo ou classe, por conta de sua real debilidade perante abusos ou arbítrio dos detentores de poder econômico ou político, -necessitem- da mão benevolente e solidarista do Estado para sua proteção, mesmo que contra o próprio Estado. Vê-se, então, que a partir da ideia tradicional da instituição forma-se, no Welfare State, um novo e mais abrangente círculo de sujeitos salvaguardados processualmente, isto é, adota-se uma compreensão de minus habentes impregnada de significado social, organizacional e de dignificação da pessoa humana" (REsp 1.264.116/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/10/2011, DJe 13/04/2012).
Assim também se manifestou o Supremo Tribunal Federal na ADI nº 3943/DF, vejamos:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ART. 5º, INC. II, DA LEI N. 7.347/1985, ALTERADO PELO ART. 2º DA LEI N. 11.448/2007). TUTELA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS (COLETIVOS STRITO SENSU E DIFUSOS) E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DEFENSORIA PÚBLICA: INSTITUIÇÃO ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL. ACESSO ÀJUSTIÇA. NECESSITADO: DEFINIÇÃO SEGUNDO PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS GARANTIDORES DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS: ART. 5º, INCS. XXXV, LXXIV, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE NORMA DE EXCLUSIVIDAD DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELO RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
Por tal razão, não caberia ao legislador ordinário fazer limitação que o legislador constituinte não o fez.
Mas não é só. O Direito à Defensoria Pública é um direito fundamental e, conforme a teoria dos limites dos limites, eventual limitação ao referido direito fundamental se submente, no que tange ao limite material, ao princípio da proporcionalidade, dentre outros.
In casu, é claramente desproporcional a restrição da atuação da Defensoria nos conflitos possessórios envolvendo apenas hipossuficientes financeiros, impedindo o cumprimento do mandado constitucional quando haja hipossuficientes organizacionais, a exemplo dos idosos.
Pode-se pensar, por hipótese, que a medida visa tutelar o direito à duração razoável do processo, evitando-se a remessa dos autos à Defensoria Pública quando não presentes hipossuficientes financeiros. Ocorre que o princípio do devido processo legal a que alude a Constituição da República somente restará atingido quando for permitida a realização da justiça social.
Não se ignore que os artigos objeto de análise tratam da tutela do direito social fundamental à moradia (art. 6º da CRFB/88), de clara índole existencial. Além disso, por evidente, os litígios possessórios, em especial os coletivos, são instrumentos de redução de desigualdades sociais. Tudo isso está diretamente relacionado às funções institucionais da Defensoria Pública elencadas na Lei Complementar nº 80/94.
Assim sendo, as limitações impostas pelo legislador infraconstitucional à atuação da Defensoria Pública em ações possessórias envolvendo “grande número de pessoas” ou “litígio coletivo pela posse de imóvel” não passam pelo filtro constitucional, sendo, portanto, inconstitucionais.
No entanto, diante da louvável preocupação do legislador ordinário em assegurar o respeito ao devido processo legal nos referidos litígios possessórios, buscando legitimar o processo judicial, ainda que com afronta ao mandamento constitucional, impõe-se a preservação dos dispositivos supracitados naquilo que é possível. Até porque pior seria se não se desse a remessa dos autos em nenhuma hipótese.
Por tal razão, deve-se adotar a técnica de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, extirpando do ordenamento jurídico a expressão “econômica” contida no artigo 554, 1º, do CPC e, no caso do artigo 565, § 2º, do CPC, seja adotada a técnica de decisão manipuladora substitutiva, de maneira a substituir a parte do comando legislativo inválida (“parte beneficiária de gratuidade da justiça”) por expressão consentânea com a Constituição, como, por exemplo, fazendo constar no texto legal apenas “parte hipossuficiente”.
Alternativamente, para aqueles que defendem que nas hipóteses dos artigos 554, 1º, e, 565, § 2º, ambos do CPC, estar-se diante de evidente processo coletivo, pode-se defender que o legislador ordinário quis, na verdade, impor a presença obrigatória nos feitos em que se fazem presentes hipossuficientes financeiros, sem prejuízo do magistrado provocar a atuação da instituição quando visualizar a presença de hipossuficientes organizacionais.
É que em tratando de processo coletivo, além de não se ter mais dúvidas acerca da legitimidade da Defensoria Pública para atuar em defesa de cidadãos que não sejam economicamente menos favorecidos – conforme a ADI nº3943/DF, cuja ementa foi transcrita -, tem-se legitimidade extraordinária autônoma, concorrente e disjuntiva. Com isso, a Defensoria, por provocação ou por iniciativa própria, ingressaria na lide na qualidade de assistente litisconsorcial.
Data da conclusão/última revisão: 5/11/2017
Thiago Simões Vieira de Souza
Advogado.