A generalização do processo como método heterocompositivo de resolução de controvérsias, a cargo da justiça privada ou pública, representou induvidosamente uma das maiores conquistas civilizatórias da humanidade, porquanto ensejou a gradual substituição da violência e da força bruta, que grassavam na aurora dos corpos sociais, por um mecanismo mais racional e apto a preservar ou resgatar a paz entre os membros da coletividade envolvidos na disputa de um bem da vida ou por esta afetados direta ou indiretamente.
Nas fases primitivas da civilização dos povos, inexistia um Estado suficientemente poderoso, capaz de superar os ímpetos individualistas dos homens e de impor o Direito acima das vontades dos particulares, o que levava quem pretendesse alguma coisa negada por outrem a se valer da força para tentar conseguir, por si mesmo, a satisfação de sua pretensão. Até a repressão às condutas criminosas, nesse período histórico, era realizada em regime de vingança privada, e, a partir do momento em que restou assumida pela organização social, foi primeiro exercida de forma totalmente unilateral, sem a interposição de órgãos ou pessoas imparciais, independentes e desinteressados. Pode-se ver que a autotutela, mormente se encarada sob a lente da cultura hodierna, era precária e aleatória, pois não garantia soluções justas, mas tão-somente a vitória do mais forte, do mais ousado ou do mais astuto sobre o mais fraco ou mais tímido (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2010, p. 27).
Não se ignora que nesses agrupamentos ancestrais a autotutela já coexistia com as formas autocompositivas de resolução de conflitos, tais como a renúncia à pretensão por parte do seu titular, a submissão àquela por parte do obrigado ou a transação, com concessões recíprocas entre ambos, e mesmo com rudimentos de formas heterocompositivas, em especial a arbitragem, bem assim com outras de índole essencialmente pacífica (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2010, p. 27-28; ROULAND, 2008, p. 95-102). Todavia, o ser humano jamais foi tão altruísta a ponto de erigi-las como regra (GRECO FILHO, 1998, p. 14), o que robustece a importância do advento do processo e em seguida da jurisdição pública como principais freios às tendências violentas, destrutivas e vingativas largamente exteriorizadas pelos indivíduos na justiça de mão própria, que punham sob ameaça a sobrevivência comunitária.
O binômio processo-jurisdição, que constitui o paradigmático processo jurisdicional, encontrou extraordinária difusão entre os povos da Antiguidade que já haviam atingido estágio mais avançado de desenvolvimento e civilidade, uma vez que, além da aludida vantagem que trazia para a continuidade das relações sociais, correspondia ao ambiente de paulatina concentração do poder nas formações políticas pré-estatais e de maior interferência destas sobre a esfera de liberdade dos súditos, que se foi verificando no curso daquele interregno histórico (BENABENTOS, 2005, p. 7-8; LOPES, 2006, p. 355-356). Com efeito, na fase nebulosa de seu próprio surgimento, as sociedades políticas organizadas vão aceitando uma forma de compromisso com as forças preexistentes, contentando-se em absorver normas consuetudinárias no ordenamento jurídico positivo, ou mesmo em atuá-las como tais, ou ainda em emitir decisões fundadas em sentimentos populares não formulados, latentes na consciência comum. Só gradualmente vão insinuando suas vontades institucionalizadas, mediante normas positivas próprias. Por isso, constitui ensinamento comumente repetido a prioridade histórica da jurisdição sobre a legislação, entendido que o Estado, apenas quando atinge um suficiente grau de maturidade, chega a produzir preceitos normativos com valor erga omnes e caráter abstrato, não o fazendo antes por não se sentir suficientemente forte perante os indivíduos para impor o seu Direito (DINAMARCO, 2002, p. 54-55).
Apesar da involução experimentada na Idade Média, em especial na Europa continental, com a disseminação do sistema inquisitivo e do procedimento penal inquisitorial e de seus conhecidos abusos, é certo que o binômio processo-jurisdição resistiu e se firmou mundialmente como uma emblemática expressão de civilização. Para além disso, consagrou-se como sinônimo de garantia de direitos individuais, principalmente a partir das experiências britânica e norteamericana.
Costuma-se apontar no art. 39 da Magna Charta de 1215 a origem da cláusula do devido processo legal (due process of law), conquanto seu texto não trouxesse tal locução, que só veio a ser incorporada no ordenamento jurídico inglês com o Statute of Westminster of the Liberties of London, editado em 1354, durante o reinado de Eduardo III (GRINOVER, 1973, p. 23-25; NERY JR., 2002, p. 33). Tratava-se desde então da exigência de que qualquer forma de punição ou privação de direitos de alguém fosse precedida de um julgamento estruturado conforme as leis do país.
Mais de quatro séculos depois, o postulado restou consignado nas declarações de direitos e Constituições de várias das ex-colônias britânicas que culminaram por formar os Estados Unidos da América, bem como na sua própria Constituição Federal de 1787, incluído por obra da V Emenda, de 1791, e ampliado, para vincular a atuação dos Estados Federados, pela XIV Emenda, de 1868 (GRINOVER, 1973, p. 26-29; NERY JR., 2002, p. 34-35).
Entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XX, o processo jurisdicional, notadamente na área penal, tornou-se garantia reconhecida como componente do núcleo essencial do Estado de Direito, que foi acolhida em diversas Constituições e declarações e tratados internacionais concernentes a direitos individuais. Nessa ótica liberal, o processo jurisdicional guarda a dimensão de dupla garantia: ativa e passiva. O processo é garantia ativa porque, diante de alguma ilicitude, pode o prejudicado dele se utilizar para buscar preveni-la ou remediá-la. Por outro lado, o processo é garantia passiva porque impede a justiça pelas próprias mãos, tanto a oriunda do exercício unilateral do poder punitivo estatal quanto a praticada por particular em favor da satisfação direta de uma pretensão sua (GRECO FILHO, 1998, p. 46). Atualmente, no contexto do Estado Democrático de Direito, o processo jurisdicional mantém sua conotação garantista, porém se vê enriquecido com uma nova e importantíssima faceta político-participativa.
A desneutralização política do Poder Judiciário é consequência das alterações oriundas do advento do Estado Social e da complexa sociedade tecnológica surgida em meados do século XX. A previsão de direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais nas Constituições contemporâneas ensejou, nas últimas décadas, uma explosão de litigiosidade, fazendo aportar no Judiciário demandas individuais e coletivas voltadas à efetivação de mencionados direitos. O seu desempenho passou a ter maior relevância social e suas decisões se tornaram objeto de controvérsias públicas e políticas. Significa que o Estado Social modificou profundamente a relação entre Estado e sociedade, pois, enquanto o Estado Liberal apenas protegia as liberdades negativas, de cunho eminentemente individual, aquele veio a tutelar as liberdades positivas, tornando viável exigir do Poder Público ações materiais tendentes à implementação de direitos à proteção ou a prestações (CAMBI, 2009, p. 194).
O Poder Judiciário vem experimentando gradual expansão em sua atuação institucional e, nessa linha evolutiva, tem se convertido em uma instância participativa, à medida que é chamado a se pronunciar sobre grandes temas da atualidade, tais como a defesa do meio ambiente, das relações de consumo e dos princípios regentes da Administração Pública. Não se trata de ingerência direta e espontânea do Judiciário, e sim da participação do povo no controle da boa gestão da coisa pública, por intermédio dos mecanismos processuais que – estes sim – induzem a intervenção judicial. O Poder Judiciário, portanto, não ficou alijado da democracia participativa fomentada e disponibilizada pela Constituição da República de 1988 através de variados canais, passando a recepcionar, em grande parte por conta da incúria ou leniência de outras instâncias, iniciativas diversas, genericamente aderentes ao manejo dos interesses metaindividuais (MANCUSO, 2011, p. 85-86).
O processo jurisdicional hoje assume a condição de via ou canal de participação, atua como instrumento da jurisdição e se habilita como modus de participação do cidadão na busca da concretização e proteção dos direitos fundamentais e do patrimônio público. Mais do que instrumento do poder, é instrumento de participação no poder. Enfim, é um microcosmo da democracia, posto que realiza os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, como locus da cidadania (ABREU, 2008, p. 440).
Nessa perspectiva, as ações coletivas compõem instrumental capaz de manifestar poderosa influência modernizadora no sistema processual, uma vez que, superando a concepção da ação processual como expressão de um conflito individual, abrem campo extraordinariamente significativo para o exercício político da solidariedade, permitindo uma visão comunitária do Direito (SILVA, 2006, p. 319).
Registre-se a posição divergente de J. J. Calmon de Passos (1998, p. 90-91), para quem o alargamento que se deu à atividade do Estado não importou alteração substancial da função de julgar, voltada ainda e exclusivamente para a solução dos microconflitos, apenas enriquecido esse universo com os novos conflitos entre os sujeitos de direito em geral e os agentes públicos, limitados agora pela lei e passíveis de terem seus atos questionados perante o Poder Judiciário. De acordo com o processualista baiano, não se institucionalizou, por força disso, uma função que às demais se sobrepôs, porque também a jurisdição se coloca sob o império da lei e está sujeita à deslegitimação pelos agentes das demais funções estatais básicas, como mandatários do povo soberano, e pelo próprio povo soberano, diretamente. Segundo ele, outrossim, não se atribuíram ao Judiciário funções políticas, inadmissíveis sem a legitimação eletiva constitucionalmente reclamada para tanto.
Tal ótica, assumidamente calcada, conforme o próprio Calmon de Passos (2000, p. 108-110) depois reconheceu, no paradigma procedimentalista, mostra-se bastante tímida, e quiçá demasiadamente conservadora, para a garantia da efetividade dos direitos fundamentais sociais previstos em nossa Carta Magna, mormente se considerados o caráter ainda incipiente da democracia brasileira e a presença maciça, nos espaços deliberativos parlamentares e administrativos, de forças políticas mais comprometidas com a manutenção ou a conquista de privilégios para determinados grupos do que com a busca, se não da utópica eliminação, da redução das desigualdades sociais e regionais.
O processo jurisdicional, desde muito tempo guindado a elevado patamar de dignidade no quadro das garantias individuais, e na atualidade também compreendido como privilegiado mecanismo democrático-participativo, encontra, justamente por tais motivos, ampla disciplina na Constituição Federal. Ademais, enquanto instrumento pelo qual se manifesta a jurisdição constitucional, em sede difusa ou concentrada, presta-se a resguardar a própria supremacia da Lei Maior. Há entre ambos, portanto, verdadeira relação de complementaridade e de mútua tutela.
Do ponto de vista da ordem jurídica global de um país, é quase óbvio dizer que a Constituição é o núcleo fundamental, porquanto contém as regras essenciais para a convivência social que aquele quis formular para si. A Carta Magna procura estabelecer uma estrutura básica para a sociedade, dotada de certa permanência, não imobilizada, contudo relativamente duradoura, pela própria natureza de seu conteúdo (BIDART, 1983, p. 193). Ela, além de traçar as normas primordiais de organização do Estado, exprime a dramática tentativa de fixar no tempo as ideias e os valores supremos que são, em verdade, essencialmente mutáveis, uma vez que se identificam com os desígnios da História mesma, ou seja, com a vida do ser humano. E, particularizada ao Direito Processual, reclama a lembrança de que as normas processuais são, segundo generalizado entendimento doutrinário, complemento ou atualização das garantias constitucionais; daí porque, inseridas no Texto Fundamental, visam certamente a reforçar o sistema de direitos e garantias individuais (TUCCI; CRUZ E TUCCI, 1989, p. 2). De fato, a efetividade dos direitos fundamentais ocorre pelos instrumentos de realização jurisdicional deles, opera-se pela sua aplicabilidade real e concreta (BARACHO, 1997, p. 122).
O Direito Processual, como ramo do Direito Público, tem suas linhas mestras traçadas pelo Direito Constitucional, que fixa a estruturação dos órgãos jurisdicionais, garante a distribuição da justiça e a aplicação do direito objetivo e estabelece alguns princípios e regras processuais. Todo ele, que rege o exercício de uma das funções basilares do Estado, além de ter os seus pressupostos constitucionais, é fundamentalmente determinado pela Constituição em muitos de seus aspectos e institutos característicos. Alguns dos princípios gerais que o informam são, ao menos inicialmente, princípios constitucionais ou seus corolários (GRINOVER, 1973, p. 12). Com efeito, ao lado de seu perfil técnico, o Direito Processual, deslocado para a vertente constitucional, vem moldado por duas diferentes exigências, quais sejam, precisão formal e justiça substancial. E nesse conflito dialético entre necessidades contrapostas, não obstante igualmente dignas de proteção, são inseridas as garantias constitucionais do processo nos ordenamentos jurídicos dos Estados Democráticos (TUCCI; CRUZ E TUCCI, 1989, p. 3). Significa um êxito da tendência de se considerar tal disciplina não somente como um apanhado de normas voltadas a regular um método para a solução de conflitos, mas também como um conjunto de valores autônomos, atinentes à estrutura do processo e destinados a atuar enquanto tais (CAMBI, 2007, p. 26; COMOGLIO; FERRI; TARUFFO, 2011, p. 23; OLIVEIRA, 2012).
Com fulcro nessas observações, alude a doutrina à existência de um Direito Processual Constitucional, vislumbrado como proposta metodológica consistente em examinar o sistema processual e os institutos do processo à luz da Carta Magna e dos vínculos mantidos com ela. O método constitucionalista inclui, em primeiro lugar, o estudo das recíprocas influências entre Constituição e processo, relações que se expressam na tutela constitucional do processo e, inversamente, na missão deste como fator de efetividade dos preceitos e garantias constitucionais de toda ordem. Em segundo lugar, inclui o exame do arsenal de medidas integrantes da chamada jurisdição constitucional das liberdades, composto, dentre outras, pelo mandado de segurança, pela ação popular e pela ação civil pública (DINAMARCO, 2004, p. 188-189, 2005, p. 26-33).
A tutela constitucional do processo se dá mediante as normas que, originadas da Constituição, ditam padrões políticos para a vida daquele, tratando-se de “imperativos cuja observância é penhor da fidelidade do sistema processual à ordem político-constitucional do país” (DINAMARCO, 2004, p. 189). Outrossim, ela se implementa pelo reconhecimento da supremacia da Lei Maior sobre a legislação processual infraconstitucional e apresenta algumas premissas: a) a Constituição pressupõe a existência de um processo, como garantia da pessoa humana; b) a lei, no desenvolvimento normativo hierárquico das disposições constitucionais, deve instituir esse processo; c) a lei não pode conceber formas que tornem ilusórias a concepção de processo constitucionalmente consagrada; d) a lei instituidora de uma forma de processo não pode privar o indivíduo de razoável oportunidade de fazer valer seu direito, sob pena de ser acoimada de inconstitucional; e) nessas condições, devem estar em jogo os meios de impugnação que a ordem jurídica local institui para tornar efetivo o controle de constitucionalidade das leis (BARACHO, 1997, p. 105). Disso resulta que a lei processual infraconstiucional não pode mais ser considerada apenas do ponto de vista da funcionalidade técnica do procedimento que ela prevê, pois as garantias constitucionais se impõem como parâmetros necessários para a configuração da disciplina jurídica do processo. Em outros termos, o legislador não mais é livre para modelar essa disciplina tão-só segundo critérios de oportunidade e eficiência. Sua discricionariedade permanece íntegra somente nas áreas de regulamentação do processo que não são cobertas pelas garantias constitucionais (COMOGLIO; FERRI; TARUFFO, 2011, p. 23-24; OLIVEIRA, 2012).
Em sentido vetorialmente inverso ao da tutela constitucional do processo, erige-se o sistema processual como fator de efetividade dos dispositivos presentes na Constituição, que ele promove direta e indiretamente. A influência direta do processo sobre a Lei Maior se dá sempre que a norma constitucional é examinada e concretamente aplicada pelo Poder Judiciário, o que ocorre no julgamento de causas que incluam discussão sobre a compatibilidade ou incompatibilidade entre preceito infraconstitucional e regra ou princípio de extração constitucional (controle difuso de constitucionalidade), ou quando esse cotejo é o thema decidendum principal de um processo de caráter objetivo e é feito em nível abstrato (controle concentrado de constitucionalidade). Por outro lado, realiza-se diuturnamente nos juízos e tribunais a atuação indireta do processo sobre a Constituição, uma vez que esta é a matriz à qual remonta todo o ordenamento jurídico nacional e, sendo a legislação infraconstitucional um conjunto de desdobramentos do modo como ela define as ordens social, política e econômica, dar-lhe aplicabilidade significa impor a efetividade das próprias normas constitucionais (DINAMARCO, 2004, p. 189-191).
Daniel Mitidiero (2007, p. 28) salienta que o relacionamento entre o Direito Constitucional e o Direito Processual Civil evoluiu sensivelmente para além da tutela constitucional do processo e da jurisdição constitucional, incorporando, no âmbito do segundo, o modo de pensar constitucional, com inequívoco destaque para a nova teoria das normas e para o processo civil encarado na perspectiva dos direitos fundamentais. De acordo com o autor, enquanto a primeira constitucionalização do processo teve por desiderato incorporar normas processuais na Lei Maior, a mais recente visa a atualizar o discurso processual civil com normas tipo-princípios e tipo-postulados, bem como a empregar, como uma constante, a eficácia dos direitos fundamentais para solução dos mais variados problemas de ordem processual.
Vale observar que, embora essas novas influências não sejam exclusividade do Direito Processual Civil, significando sobretudo consequências, no âmbito teórico, da reflexão hermenêutico-filosófica que se espraiou por todos os ramos da ciência jurídica e contribuiu para um mais correto entendimento da diferença entre texto e norma, bem assim da descoberta da normatividade dos princípios e dos refinamentos conceituais trazidos para os distinguir das regras e dos postulados normativos aplicativos, como espécies de normas; e, no âmbito normativo-aplicativo, do fenômeno da constitucionalização do ordenamento jurídico, mormente no aspecto do reconhecimento da supremacia e da força vinculante da Carta Magna e dos direitos fundamentais nela consagrados, desvelam o horizonte de um “neoprocessualismo”, como manifestação das novas concepções do constitucionalismo com repercussão específica para o Direito Processual (DAMASCENO, 2010, p. 22) e pautada na visão publicista deste (CAMBI, 2007, p. 25-26), cuja diretriz mestra é a incorporação da necessidade de compreender e utilizar as técnicas processuais a partir de bases constitucionais (CAMBI, 2009, p. 19) e cujo desafio maior, imposto pela constitucionalização das garantias processuais fundamentais, é conciliar a instrumentalidade do processo, ampliada na perspectiva dos direitos fundamentais (art. 5º, incisos XXXV e LXXVIII, da CF), com o garantismo (CAMBI, 2007, p. 37-38).
Com efeito, a instrumentalidade do processo, relativizando o binômio substance-procedure, permite a construção de técnicas processuais efetivas, rápidas e adequadas à realização do direito material, viés metodológico que, contudo, precisa ser compatibilizado com o respeito aos direitos e garantias fundamentais do demandado, no processo civil, e do acusado, no processo penal, que estão na essência do garantismo (CAMBI, 2007, p. 38).
Partindo do Direito Constitucional positivo pátrio, e conforme a sistematização apresentada por Tucci e Cruz e Tucci (1989, p. 4-5), é possível dividir as normas superiores referentes à disciplina do processo jurisdicional em quatro espécies. Em primeiro lugar, as normas concernentes à organização da Justiça, que determinam: a) os órgãos do Poder Judiciário; b) a competência ratione personae e ratione materiae dos órgãos constitucionais do Poder Judiciário; c) a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário; d) o recrutamento, o aperfeiçoamento, o desenvolvimento da carreira, as garantias, as restrições e a responsabilidade dos juízes; e) as funções essenciais à administração da justiça, relativas ao Ministério Público, à Advocacia, à Defensoria Pública e à Advocacia-Geral da União; f) os órgãos de controle externo da magistratura (Conselho Nacional de Justiça) e dos membros do Parquet (Conselho Nacional do Ministério Público). Em segundo lugar, as normas determinantes das garantias indispensáveis à tutela de direitos individuais e transindividuais, que se fazem integrantes da jurisdição constitucional e abrangem: a) os procedimentos correspondentes ao controle, pelo Poder Judiciário, dos atos administrativos, bem como, em sede difusa, da constitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público; b) os procedimentos destinados a garantir a supremacia da Constituição da República e a uniformidade de sua interpretação e das leis federais (instrumentos do controle concentrado de constitucionalidade e recursos extraordinário e especial); c) a jurisdição constitucional das liberdades, consubstanciada em procedimentos breves e eficazes para o pronto restabelecimento de direitos lesados ou ameaçados de lesão (habeas corpus, habeas data, mandado de segurança e mandado de injunção) e procedimento pertinente à preservação da legalidade e da moralidade administrativas (ação popular). Em terceiro lugar, as normas orientadoras do processo, voltadas ao acesso à ordem jurídica justa, que compreendem todas as garantias inerentes ao due process of law, tais como as da inafastabilidade do controle jurisdicional, da acessibilidade econômica e técnica à justiça, do juiz natural, do tratamento isonômico dos sujeitos interessados do processo, da ampla defesa, do contraditório, da vedação de provas obtidas por meios ilícitos, da motivação das decisões judiciais e da publicidade dos julgamentos. Por fim, as normas incidentalmente constitucionais, versando sobre a competência originária de tribunais federais, a competência das causas de interesse da União e a execução em face da Fazenda Pública.
Percebe-se que a Constituição da República de 1988 delineia com grande minúcia o sistema processual jurisdicional, assim entendido o complexo de órgãos, pessoas, entes, atividades e procedimentos envolvidos no exercício da função jurisdicional e na consecução de seus objetivos, mediante a estrutura do processo.
Impende salientar que o termo sistema não é unívoco, apresentando variações semânticas conforme a área do conhecimento de que se trate, e mesmo dentro de cada uma delas. Com efeito, diversas são as significações atribuídas ao vocábulo na Filosofia, nas ciências exatas, nas ciências biológicas, nas ciências sociais e políticas e no Direito. Na imensa maioria delas, contudo, parece transparecer a noção, cuja síntese remonta a Immanuel Kant, de conjunto de elementos relacionados entre si e harmonicamente ordenados em torno de uma ideia fundante, orientados por princípios unificadores e dirigidos a uma finalidade comum. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2001, p. 16), por exemplo, vale-se desses caracteres para conceituar o sistema, na ótica do Direito, como um “conjunto de temas jurídicos que, colocados em relação por um princípio unificador, formam um todo orgânico que se destina a um fim.” Também Claus-Wilhelm Canaris (2008, p. 12-13, 279-280) salienta que o conceito de sistema traz ínsitas, como seus componentes essenciais, as noções de ordenação e de unidade, as quais encontram sua correspondência jurídica nas ideias da adequação valorativa e da unidade interior do Direito.
O conceito de sistema processual jurisdicional, nos moldes em que o assentamos, diz respeito aos elementos componentes da realidade empírica do exercício do poder estatal sub specie jurisdictionis, ou seja, da instituição presente na vida jurídica e sociopolítica do país, compreendendo os órgãos do Poder Judiciário e os sujeitos interessados do processo (partes e intervenientes), que podem ser outros órgãos do aparelho estatal (por exemplo, o Ministério Público), pessoas naturais ou jurídicas ou entes dotados apenas da chamada personalidade judiciária (por exemplo, o espólio), cujas atividades devem ser desempenhadas no curso de procedimentos legalmente previstos e esquematizados para realização em contraditório. Mencionados elementos se articulam e organizam de forma recíproca (a unidade e a harmonia); possuem como ratio subjacente (a ideia fundante) a concepção do binômio processo-jurisdição e do devido processo legal na tríplice perspectiva de expressão de civilização, de garantia de direitos e de mecanismo democrático-participativo; são disciplinados por um regime jurídico peculiar (os princípios unificadores), caracterizado como um sistema de normas (regras e princípios); e se voltam a propiciar o exercício da função jurisdicional e a concretização de seus objetivos (a finalidade comum).
Convém esclarecer que, para fins analíticos, é possível fazer alusão a três sistemas distintos: o primeiro, correspondente a uma realidade da vida jurídica e sociopolítica nacional, que acima se denominou de sistema processual jurisdicional; o segundo, resultado das conexões valorativas e da composição harmônica dos significados de enunciados normativos (ou seja, as normas) atinentes à regulação jurídica da atuação de órgãos, pessoas e entes e dos procedimentos que integram aquele primeiro sistema, quer-se dizer, um sistema normativo, o qual constitui o ramo do ordenamento jurídico chamado de Direito Processual; e o terceiro, de natureza científica, que tem os dois primeiros como seus objetos, teoriza sobre eles e constroi um coerente arcabouço conceitual e analítico destinado a explicá-los, criticá-los e lhes propor aperfeiçoamentos, consistente na ciência do Direito Processual (subdividida nas vertentes Civil, Penal, Trabalhista e Eleitoral, entre outras). Todos eles operam no plano comunicativo, da linguagem, o que não poderia ser diferente, por se tratar de característica ínsita à experiência jurídica de modo geral. Como bem ressalta Norbert Rouland (2008, p. 37), a elaboração e o aperfeiçoamento do Direito são ligados ao aparecimento e aumento de complexidade da linguagem, posto que, para criar, observar ou contestar as normas, cumpre poder comunicar a respeito delas e graças a elas. O último sistema, entretanto, tem por peculiaridade configurar uma metalinguagem acerca das linguagens de que se valem os dois primeiros.
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Data da conclusão/última revisão: 12/1/2020
Thadeu Augimeri de Goes Lima
Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Diretor e professor da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR), unidade de Londrina. Promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná, titular na Comarca da Região Metropolitana de Londrina.
Código da publicação: 4665
Como citar o texto:
LIMA, Thadeu Augimeri de Goes..Significado sociopolítico e tutela constitucional do processo no Direito brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1687. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/4665/significado-sociopolitico-tutela-constitucional-processo-direito-brasileiro. Acesso em 5 fev. 2020.
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Pedido de reconsideração no processo civil: hipóteses de cabimento
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