O controle da atividade policial

1) Considerações iniciais

         O presente trabalho tem o objetivo de, em apertada síntese, demonstrar a importância do controle da atividade policial, diferenciar as atividades de polícia administrativa das exercidas pelas denominadas “polícias de segurança”. Diferenciar controle interno e externo notadamente nas Polícias Civil e Militar fazendo uma abordagem constitucional. Busca também evidenciar a prática do necessário e eficaz controle (interno e externo) de legalidade dos atos policiais, em respeito ao princípio constitucional da legalidade que é um dos pilares do funcionamento da administração pública. Buscaremos demonstrar que, por imposição constitucional, há uma seqüência de controles desde o primeiro ato, como por exemplo, uma prisão em flagrante efetuada por um soldado da Polícia Militar até a condenação efetuada por um juiz de direito e que tal seqüência é uma das principais garantias constitucionais a um dos bem jurídicos mais relevantes que é o direito a liberdade e que por tal motivo os filtros de legalidade em seqüência não podem de maneira alguma ser burlados ou interrompidos.

         José Afonso da Silva nos elucida no sentido de que “ a palavra polícia correlaciona-se com segurança. Vem do grego polis que significava o ordenamento político do Estado. “Aos poucos (lembra Hélio Tornaghi) polícia passa a significar a atividade administrativa tendente a assegurar a ordem, a paz interna, à harmonia e, mais tarde, o órgão que zela pela segurança dos cidadãos”. Acrescenta que POLÌCIA, sem qualificativo, “designa hoje em dia o órgão a quem se atribui, exclusivamente, a função negativa, a função de evitar a alteração da ordem jurídica.”

2) PODER DE POLÍCIA E PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

         Excelente conceito de poder de polícia está no Código Tributário Nacional, mais precisamente no art. 78. “Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (Redação dada pelo Ato Complementar nº 31, de 28.12.1966)”

Em definição simplista, nada mais é que o poder do Estado de invadir e limitar certas garantias e direitos individuais quando o interesse público prevalecer sobre o interesse particular.

O princípio da Legalidade é princípio basilar da Administração Pública fincado constitucionalmente no art. 37 da CRFB. Tal princípio se aplica de forma diferente em relação ao particular. Enquanto o particular pode fazer tudo que a lei não veda, a administração pública somente pode fazer o que a Lei expressamente permite. Daí o porque da importância da seqüência de controles e filtros de legalidade, uma vez que todos os atos sofrerão controles preliminares e sucessivos evitando-se arbítrios.

Há uma estreita ligação, nos regimes democráticos, entre o poder de polícia e o princípio da legalidade uma vez que o exercício do poder de polícia somente poderá ser exercido quando pautado pela Legalidade, quando for extrapolado haverá abuso de poder. O sistema legal é que define a competência, finalidade, forma, motivo e objeto do ato de polícia que é um ato administrativo. Assim se o ato for praticado, por exemplo, por órgão incompetente ou com desvio de finalidade, será um ato ilegal, uma arbitrariedade.

Assim sendo a existência de sucessivos filtros de legalidade é uma garantia constitucional das pessoas em relação aos atos praticados pela Administração. Isto é, a verificação técnica de que determinado ato foi praticado nos ditames legais e sendo assim a pessoa foi privada de seu direito fundamental legalmente em detrimento do interesse público, chegando-se a conclusão de que não houve arbítrio.

3) DAS POLÍCIAS DE SEGURANÇA

 Como vimos na relação entre poder de polícia e princípio da legalidade, a administração pública nos regimes democráticos tem sua atuação subordinada à lei e a finalidade de proteger o indivíduo

contra abusos, sempre preservando o interesse público.

A polícia administrativa, latu sensu, está disseminada pelos diversos órgãos da Administração Pública. Podemos perceber a sua presença na fiscalização de posturas, a cargo das Prefeituras Municipais e nos serviços de vigilância da saúde pública (Polícia Sanitária), dentre outros. A polícia administrativa incide seus poderes sobre os bens, direitos e atividades.

Está regulamentada pelo Direito Administrativo e releva seu caráter de regulamentação, controle e contenção das atividades do cidadão pelo poder público. Possui um caráter preventivo e repressivo e estende seu poder de forma bastante ampla sobre as construções, as águas, o trânsito, os meios de comunicação, as profissões, etc.

Essa noção ampla de polícia administrativa está ligada ao conceito de poder de polícia que emana da administração e se caracteriza pela sua ligação a todos os ramos da administração. Diferencia-se da noção de polícia administrativa, stricto sensu, que trata especificamente da manutenção da ordem pública através da prevenção de delitos. Em sentido estrito, polícia administrativa é sinônimo de polícia de segurança.

Por outro lado, a polícia geral (polícia de segurança) está encarregada especificamente da ordem pública. Hely Lopes Meirelles divide a polícia de segurança, que chama de “geral”, em polícia judiciária e polícia de manutenção da ordem pública.

A polícia geral incide seus poderes sobre as pessoas, individual ou indiscriminadamente, e está sob a responsabilidade de determinados órgãos (Polícias Civis) ou corporações (Polícias Militares).

José Afonso da Silva afirma que “a atividade de polícia se realiza de vários modos, pelo que a polícia se distingue em administrativa e de segurança, esta compreende a polícia ostensiva e a polícia judiciária”.

O elemento que diferencia a polícia de segurança da polícia administrativa é que nesta o Estado intervém na atividade, nos direitos e nos bens da pessoa e naquela, a intervenção se dá especificamente na pessoa.

Essa distinção é importante uma vez que estudados os conceitos e classificações, nosso estudo recairá somente sobre o controle da atividade policial no que diz respeito à atividade desenvolvida pela “polícia de segurança” que se subdivide em Judiciária e Ostensiva, e em âmbito mais restritivo falaremos dos mecanismos de controle interno e externo das polícias Civil e Militar.

5) CONTROLE INTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL

         Em definição Aureliana “controle” é uma verificação administrativa, quem controla supervisiona e orienta de forma fiscalizadora . “Interno” significa aquilo que está dentro. Sendo assim, controle interno da atividade policial significa uma verificação administrativa e fiscalizadora da própria polícia sobre seus atos.

         Controlar “atividade policial” em verdade é controlar os atos praticados pelos servidores policiais, sua conformidade com as normas, com o interesse público, etc.

         O controle interno é exercido através dos poderes hierárquico e disciplinar que são poderes administrativos inerentes a administração pública.

Quanto ao poder hierárquico se manifesta Hely Lopes Meirelles: “poder hierárquico é o de que dispõe o Executivo para distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo relação de subordinação entre servidores do seu quadro de pessoal... O poder hierárquico tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir atividades administrativas.. controla velando pelo cumprimento da lei e das instruções acompanhando a conduta e o rendimento de cada servidor.. Corrige os erros administrativos pela ação revisora dos superiores sobre os atos de seus inferiores...”

         No poder hierárquico o superior tem faculdades implícitas tais como dar ordens e fiscalizar seu cumprimento, delegar e avocar atribuições e rever atos de seus subordinados.

         Já o poder disciplinar é na definição de Hely Lopes “a faculdade de punir internamente as infrações funcionais de servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina da administração... é correlato com o poder hierárquico.”.

         Assim sendo, o controle interno da atividade policial se dá preliminarmente pelo superior hierárquico do policial que praticou ou mandou praticar determinado ato. Um delegado de polícia deve fazer o controle dos atos de seus subordinados assim como o comandante de um Batalhão, isto é, devem dar ordens, fiscalizar, coordenar a atividade de seus subordinados e punir os desvios de conduta. As Corregedorias internas fazem o controle geral, isto é, de todos ao atos policiais praticados por membros daquela instituição.

         As corregedorias internas devem orientar os policiais a agirem da forma adequada expedindo, por exemplo, recomendações e determinações. Devem fiscalizar o cumprimento das leis e das ordens emanadas e punir o desvio de conduta praticado pelo policial.

         Não havendo maiores questionamentos quando ao mecanismo de controle interno das atividades exercidas pelas polícias Civil e Militar, passaremos a abordar o controle externo de suas atividades cada um de per si, tendo em vista que as atividades são diferentes e tem um controle externo exercido de maneira diferenciada.

6) CONTROLE EXTERNO – Conceito e extensão.

         Controle externo é a verificação, supervisão e fiscalização feita “por quem não está na parte de dentro” isto é, por um órgão diferente daquele que praticou o ato administrativo.

         Para melhor explicitar tal conceito trago a colação trecho do parecer da ASSEJUR da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro: “A Administração Pública, para o fiel desempenho de suas funções, conta com a atividade perene que consiste no controle de seus atos, que pode ser exercido por ela mesma, ou pelos seus administrados, que são os particulares em geral.

         Quanto ao autocontrole, encontramos esse proficiente instrumento para a consecução dos fins do Poder Público exercido entre os três planos de poder, que são aglutinados nas três funções do Estado (legislativa, administrativa e judiciária); ou, dentro do próprio segmento de poder estatal, através de seus diversos órgãos, internamente, ou uns sobre os outros, entre si. A essa última modalidade, por constituir uma espécie de interferência estranha ao segmento hierárquico que compõe o órgão controlado, denomina-se controle externo de suas atividades.”

         Importante frisar que quando menciona controle “externo” se diferencia do controle interno, pois como é realizado por órgão diverso, não há que se falar em poder hierárquico e disciplinar. Assim sendo, não se pode, a título de controle “externo” controlar as denominadas “atividades meio” isto é, atos internos que dizem respeito à coordenação, organização e funcionamento dos órgãos que realizam a atividade (ex. controle de freqüência, efetivo, delegações e avocações, escalas de funcionamento, punições). O controle externo cinge-se tão somente aos aspectos de legalidade relacionados com o exercício da atividade policial , logo dizem respeito ao controle meramente da legalidade da atividade fim, não havendo qualquer relação hierárquica entre o órgão controlador externo e o órgão controlado. Quando falamos em atividade fim, devemos ressaltar que a atividade fim da Polícia Civil está descrita no art. 144 parágrafo 4º da CF: “funções de polícia judiciária e apuração das infrações penais exceto as militares” . A atividade fim da Polícia Militar está no mesmo artigo no parágrafo seguinte (art.144 parágrafo 5º): “polícia ostensiva e preservação da ordem pública).

         Assim sendo, controle externo da atividade fim da Polícia Civil significa verificar e controlar a legalidade dos atos por ela praticados com o fim de se apurar infrações penais. Já em relação a Polícia Militar significa verificar a legalidade dos atos por ela praticados com o fim de se preservar a ordem pública.

7)CONTROLE EXTERNO DA POLÍCIA CIVIL

         O artigo 129, inciso VII da CF dispõe que é função institucional do Ministério Público o exercício do controle externo da atividade policial.

         Questão tormentosa tem sido a delimitação e o alcance de tal controle externo. Algumas interpretações equivocadas têm dado hiper dimensionamento para tal função onde muitas vezes a Polícia Civil tem sido declarada como “inferior hierárquica” em relação ao Ministério Público. Tal visão é caolha e dissociada da realidade uma vez que como será explicitado, o que o sistema prevê é uma seqüência de controle de legalidade dos atos policiais e jamais quem realiza tal controle externamente pode ser “superior”.

         O referido controle compreende tão somente os aspectos de legalidade relacionados com o exercício da atividade de polícia judiciária

         O alcance do controle externo cinge-se a fiscalização. E tal fiscalização representa a verificação dos aspectos extrínsecos de legalidade dos atos praticados pela Polícia Judiciária. A atividade de Polícia Judiciária, em síntese, compreende diligências investigatórias que se destinam a apurar um fato delituoso e sua autoria. Sendo assim, sobre todo e qualquer ato desta natureza deverá o Ministério Público verificar a legalidade do ato praticado.

         Caso os atos apuratórios sejam praticados em desacordo com as normas legais, ficarão a autoridade policial e seus agentes sujeitos a responsabilização cabendo ao Ministério Público a adoção de providências requerendo as medidas cabíveis perante o Poder Judiciário.

         O controle externo foi devidamente regulamentado com o advento da Lei complementar nº75 de 20 de Maio de 1993.

         Incumbe ao Ministério Público, dentre outras atribuições, “requisitar diligências investigatórias e requisitar a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar”.

         Dada a necessidade da já por nós propalada seqüência de controles de legalidade sobre os atos. O art. 10, parágrafo 3º do CPP prevê o controle externo de legalidade da atividade Ministerial ao instituir a remessa dos autos do inquérito policial para o Juiz. Tal dispositivo , em verdade é uma garantia do cidadão que não ficará assim exposto e desprotegido contra eventuais excessos do Ministério Público, excessos estes que de modo antecipado produzem prejuízo ao indiciado, futuro Réu , gerando desequilíbrio em futura relação processual onde não haverá paridade de forças entre defesa e acusação maculando-se assim o próprio contraditório na sua extensão.

         Daí o porque das críticas existentes as denominadas “centrais de inquéritos” onde o inquérito não mais é submetido ao Juiz. Em nosso entendimento a prática de remessa direta dos autos para o Ministério Público interrompe a seqüência de controle de legalidade existente, vale dizer, o controle de legalidade dos atos da Polícia Judiciária pelo Ministério Público e controle judicial de legalidade sobre os atos ministeriais. Tal prática adia o controle judicial para o momento posterior do recebimento ao não da denúncia realizada pelo Ministério Público, todavia em tal análise o Magistrado, dentre outras condições procedimentais analisa apenas a existência de “justa causa” para ação penal, existindo “justa causa” a denúncia é recebida, entretanto, verifica-se que desta forma, não houve qualquer controle de legalidade judicial sobre a produção de tal “justa causa”.

         José Armando da Costa em sua obra “Limites do Controle Externo da Atividade Policial” dispõe que sequer os prazos do inquérito policial podem ser concedidos pelo Ministério Público sem controle judicial. O autor argumenta que “na absurda hipótese de que a concessão de prazos no inquérito policial fique ao seu alvedrio – a imobilização caprichosa de tais procedimentos nas gavetas ministeriais (MP), ali dormitando, em alguns casos, por vários meses, sem a adoção de qualquer providência (pedido de novas diligências, oferecimento de denúncia, requerimento por arquivamento e outras medidas mais), condiciona as chances de corrupção por parte de inescrupulosos promotores públicos, os quais, louvando-se em tais manobras estratégicas, podem submeter tais procedimentos á inexorável ação corrosiva do tempo (prescrição) ou até mesmo relega-los ao buraco negro, aos chamados “embargos de gaveta”...

         E continua o mencionado autor: “Essa vigilância judicial, decorrente do sistema jurídico processual entre nós vigorante, impede, por via obliqua e reflexiva, que inditosos suspeitos ou indiciados sejam expostos aos possíveis caprichos de um órgão que, somente pelo fato de ser parte interessada na persecutio criminis, já perde a necessária credibilidade para presidir tal relação, devendo sim, funcionar como parte que requer e fiscaliza, e não como autoridade que, de ofício e ao seu alvedrio, decide sobre o tempo em que o cidadão deva sujeitar-se a essas intranqüilizadoras indefinições temporais, que, como vimos, podem protrair-se por longo tempo, obrigando o indivíduo, no mais das vezes inocente, a permanecer, figurativamente, sob a espada do tirano Dâmocles, num desassossego por demais constrangedor.

         Por fim, não poderá jamais se exacerbar a atividade de controle externo de modo que o Ministério Público passe a presidir a relação pré-processual exercendo atividade de polícia judiciária. Até porque, sustentar que a Constituição expressamente tenha declarado que cabe ao Ministério Público “exercer o controle externo da atividade policial” e ao mesmo tempo sustentar que ela permite que o  Ministério Público exerça atividade policial diretamente é esquizofrenia.

         Neste sentido, transcrevo trecho de recente decisão do STF sobre o tema proferido no recurso ordinário em hábeas corpus 81326-7 oriundo do Distrito Federal no voto do Ministro Nelson Jobim: “Na Assembléia Nacional Constituinte (1988), QUANDO SE TRATOU DE QUESTÃO DE CONTROLE EXTERNO DA POLÍCIA CIVIL, O PROCESSO DE INSTRUÇÃO DO Ministério Público voltou a ser debatido... Isso foi objeto de longos debates na elaboração da Constituinte e foi rejeitado...”

8) CONTROLE EXTERNO DA POLÍCIA MILITAR

         Questão  não pacificada é sobre o controle externo da atividade policial exercida pela Polícia Militar.

         Alguns promotores de justiça sustentam em artigos escritos que tal controle externo também é exercido pelo Ministério Público, uma vez que o termo previsto na Constituição Federal é genérico “atividade policial”, neste sentido sustenta Maurício José Nardini “Atividade Policial e Ministério Público: “... o promotor não pode trabalhar somente no seu gabinete ... deve fazer visitas periódicas.. na inspeção de unidades policiais civis e militares...” (grifo nosso).

         Todavia, a esmagadora maioria dos constitucionalistas e administrativistas sustentam que o controle externo conferido constitucionalmente ao Ministério Público é somente sobre as atividades de polícia judiciária. Assim sendo somente os atos relativos as investigações dos inquéritos policiais militares é que estão sujeitos ao controle externo do Ministério Público Militar.

         Nesse sentido Geraldo Toledo do Amaral Neto manifesta que “esta atribuição dada ao Parquet deve ser analisada com parcimônia, dada sua incidência limitada a certos atos perpetrados pela polícia. O controle externo não incide sobre toda e qualquer atividade policial, mas apenas se verifica em relação aos atos que digam respeito à chamada “policia judiciária” e apuração das infrações penais, quando exercidas pela Polícia Civil. Pode, ainda, o Ministério Público, excepcionalmente, controlar as atividades da Polícia Militar, desde que esteja atuando na função de polícia judiciária, repressiva, como nos casos do inquérito policial militar.”

         Para nós, não cabe ao Ministério Público o controle externo da Polícia Militar na sua atividade fim. O Art. 129, inciso VII da C.F que instituiu o controle externo Ministerial dispõe que tal controle seria exercido na “forma da lei complementar”. Tal lei é a de número 75/93 que em seu artigo 117 dispõe o seguinte:

“Art. 117 - Incumbe ao Ministério Público Militar:

I - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial-militar, podendo acompanhá-los e apresentar provas;

II - exercer o controle externo da atividade da polícia judiciária militar.”(grifo nosso)

         Vale dizer, como se não bastasse apenas o entendimento dos administrativistas e constitucionalistas, a Lei complementar que regulamentou o texto constitucional em nenhum momento dispôs sobre o controle externo da polícia ostensiva e preventiva, muito pelo contrário, deixou transparente que tal controle se efetiva apenas sobre a atividade de polícia judiciária militar, excluindo assim o controle da atividade policial preventiva.

         Em verdade, o motivo da não concessão do controle externo da Polícia Militar para o Ministério Público decorre da, por nós alardeada ao longo desta exposição, necessidade de seqüência de controles e filtros de legalidade como uma garantia do cidadão. Na verdade, o que está previsto pelo nosso sistema legal é apenas o controle externo de legalidade da atividade fim da Polícia Militar pela Polícia Civil através da figura do Delegado de Polícia. Tanto assim o é que as prisões em flagrante, apreensões e demais atos policiais que suprimem o exercício dos direitos individuais devem ser apresentados e registrados nas Delegacias. Por tal motivo torna-se imprescindível à formação jurídica do Delegado de Polícia, uma vez que é atribuído ao mesmo o controle preliminar de legalidade dos atos praticados por policiais militares, posteriormente, seguindo uma lógica seqüência de controles, o fato documentado é remetido para o Ministério Público e Magistratura.

         O Delegado de Polícia  além de ser policial é um operador do Direito. Além de utilizar seu conhecimento jurídico para orientar as atividades policiais deve se valer do mesmo no sentido de melhorar a qualidade do trabalho de polícia judiciária, buscando a correta aplicação dos princípios constitucionais, penais e processuais penais. E, além disso, cabe ao mesmo fazer o juízo preliminar de legalidade das prisões em flagrante realizadas pela Polícia Militar, que quando ilegais, devem ser imediatamente relaxadas.

O princípio da Legalidade para a Administração Pública difere do mesmo princípio em relação ao particular. Enquanto o particular pode fazer tudo que a lei não veda, a administração pública somente pode fazer o que a Lei expressamente permite. Daí o porque da importância do Delegado como carreira jurídica, uma vez que fará um juízo preliminar imediato de legalidade de toda a ação policial que comanda, bem como dos fatos que lhe forem apresentados pela Polícia Militar. Juízo este que será controlado e revisado posteriormente pelo Ministério Público e pelo Judiciário.

Novamente lembramos a, já por nós explicitada, relação estreita entre princípio da legalidade, poder de polícia e controle de legalidade. Vale dizer, o Estado através das Polícias fiscaliza exercícios de direitos individuais, sempre que estes estiverem afetando o interesse coletivo e, no caso das polícias de segurança, fazendo o que a lei não permite e caracteriza como crime ou contravenção, o Estado de imediato ou após investigação suprime o exercício de tal direito em prol da coletividade. Todavia, em tal atitude fiscalizatória, devem as Polícias pautarem-se exclusivamente na forma da Lei. Agir somente conforme a Lei expressamente autorize. Daí a necessidade de “controles externos”. Ademais, é necessário o controle de legalidade também sobre o ato praticado pelo indivíduo no sentido de se confirmar se ele realmente contrariou uma norma penal incriminadora. Tal juízo é feito inicialmente pelo Delegado de Polícia, é o denominado “juízo de tipicidade”, que nada mais é que o enquadramento do fato apresentado as normas incriminadoras.

Assim sendo, fica fácil enxergar o controle externo sobre os atos da polícia militar. Repare que na prisão em flagrante, o fato é apresentado ao Delegado de Polícia que deve fazer análise jurídica se o fato é típico, se se enquadra como situação flagrancial prevista no art. 302 do CPP e se a atuação dos policiais militares ocorreu na forma da lei em respeito ao princípio da legalidade.

Note que, não é concebível que pessoas sem formação jurídica analisem fatos juridicamente. Ainda mais quando tal análise é uma garantia do cidadão de que está sendo privado de um direito fundamental, por exemplo, privado de sua liberdade quando é preso, na forma da Lei.

Discordamos do Coronel e Professor Jorge da Silva quando o mesmo critica o que chama de “formação jurisdicista” dos Delegados de Polícia. Tal visão é permeada no sentido de que tal formação está ligada ao criticado por ele, “paradigma penalista”, onde, em síntese, na visão do mesmo, a atividade policial refere-se as leis penais e ao que chama de “burocracia do inquérito policial” e que tal formação não faria sentido com o exercício da atividade policial no sentido de tal profissional estar inserido dentro da polícia. Por esta visão a formação jurídica teria que ser essencial apenas para promotores, juízes e advogados, personagens do processo criminal.

Nossa discordância se dá no sentido de que tal posicionamento ignora o benefício de um controle de legalidade imediato e que tal imediatividade somente é possível por estar este profissional inserido dentro da polícia. É pela necessidade de tal controle imediato que as Delegacias Policiais funcionam 24 horas e existem as denominadas “centrais de flagrantes”. Onde o indivíduo tem a garantia de que terá sua privação de liberdade submetida de imediato ao controle de legalidade realizado por um técnico. E, posteriormente, o controle feito por este técnico será revisado por outros.

Neste sentido, tal visão ignora a seqüência de filtros de controles de legalidade. Onde preliminarmente e a qualquer hora do dia ou da noite é feito o controle pela Polícia Civil através de um técnico, posteriormente tal controle é submetido ao Ministério Público e por fim a Magistratura.

Na nossa visão o mencionado “paradigma penalista” está associado a mania política de achar que a criação de leis resolve as questões da segurança pública. O que é vulgarmente chamado de “legislação do pânico”, quadro que ocorre quando as situações da violência se agravam e os legisladores criminalizam diversas condutas e aumentam penas como se essa fosse a solução. Tal paradigma também levaria a conclusão que quanto mais a pessoa conhecesse a legislação mais estaria apta e elaborar políticas de segurança, isto é,  mistura direito penal com segurança pública, o que realmente é equivocado. Todavia em nosso entender o erro está em defender que a formação jurídica do Delegado de Polícia somente é exigida por causa do paradigma penalista e que ela seria desnecessária. Em nosso ver o formação é exigida para que o Estado possa ter maior controle de legalidade de seus atos , controle esse feito por técnicos em seqüência. Logo tal exigência está diretamente vinculada ao princípio da legalidade que é um princípio essencial da Administração.

Tal entendimento, em nossa opinião, não compreende a necessidade de uma investigação ser conduzida diretamente por um técnico que zelará pelo princípio da legalidade durante a apuração das infrações penais e que isso é uma garantia do cidadão. Para nós, dissociar Poder de Polícia, atividade policial, de legalidade é equivocado. Não há como se falar de legalidade sem conhecimento e interpretação de leis o que, por sua vez, exige formação jurídica.

Na visão do controle externo e seqüência de filtros de legalidade como garantia do cidadão, não é compreensível que em nome de alegada maior celeridade se prive tal garantia dos indivíduos.

No caso da Lei 9099/95, dentro de tal visão fica impossível conceber no nosso sistema que as ocorrências sejam de imediato registradas e resolvidas pela Polícia Militar. Tal prática suprime o controle externo de legalidade imediato do ato policial que é uma garantia do cidadão.

Caso já vivenciado por mim inúmeras vezes quando era Delegado de Polícia Plantonista no município de São Gonçalo/RJ era a condução forçada, quase que diária ,de pessoas por policiais militares pelo fato de estarem dirigindo sem habilitação. Tal condução tinha um grave problema, a contravenção penal de dirigir sem habilitação já estava revogada pelo código de trânsito (lei 9503/97) há quase quatro anos. O fato não era típico, o novo código tratou como mera infração administrativa. Não é possível exigir que uma pessoa sem formação jurídica tenha conhecimento de tal revogação. Ainda mais que, na época, tal revogação compreendia a compreensão do que é crime de perigo concreto, uma vez que o Código caracterizou como crime à direção sem habilitação que gerasse perigo de dano.

No exemplo acima, a Polícia Militar tratou o fato como contravenção. Caso pudesse registrar infrações de menor potencial ofensivo teria registrado o fato sem qualquer controle técnico e acarretaria o grave arbítrio de praticamente forçar o cidadão a assinar um termo de compromisso de comparecimento ao Juizado, sob pena de ser autuado em flagrante (como manda a lei) por um fato notadamente atípico.

Justamente para evitar arbítrios é que os controles existem e não se pode em nome de alegada celeridade comprometer as garantias do indivíduo. Quando mencionamos “alegada celeridade” é porque na prática os que defendem a realização de termos circunstanciados pela Polícia Militar sabem que se formariam “cartórios” nos Batalhões, sendo certo que o indivíduo seria conduzido para o “cartório do batalhão” para ter sua ocorrência registrada e não haveria qualquer análise jurídica sobre sua condução. Fora o fato de que tal “celeridade” já estaria comprometida pela condução para o “cartório” do Batalhão da mesma forma.

         Outro grave problema é que no Brasil adotou-se a sistemática de que o conceito do que seja “infração de menor potencial ofensivo” se faz pela quantidade de pena e não por gravidade do delito. Assim sendo, antes do advento da Lei 10.259/01 eram as contravenções e crimes com pena máxima de um ano excluídos os que possuíssem procedimento especial. Após a Lei alargou-se para 2 anos abrangendo também os de procedimento especial, chegamos ao cúmulo de, antes do estatuto do desarmamento, tratarmos porte ilegal de arma de fogo como infração de menor potencial ofensivo.

         Nessa sistemática, o art. 16 da Lei 6368, crime de porte e guarda de entorpecentes para uso próprio passou a ser infração de menor potencial ofensivo. Aqui se impõe uma indagação: Irá o policial militar, desprovido de formação jurídica, fazer juízo de tipicidade diferenciando o traficante, do usuário, isto é, um crime equiparado a hediondo com todas suas conseqüências legais de uma infração de menor potencial ofensivo que sequer gera o encarceramento?

         Tal fato é tão relevante que o artigo 30 da Lei 10.409 ,quase que repetindo artigo já existente na Lei 6368, dispõe que:

“Art. 30 – A autoridade policial relatará sumariamente as circunstâncias do fato e justificará as razões que levaram a classificação do delito, com indicação da quantidade, natureza do produto, da substância ou da droga ilícita apreendidos, o local ou as condições em que se desenvolveu a ação criminosa e as circunstâncias da prisão, a conduta a qualificação e os antecedentes do agente.”

         Do artigo transcrito acima chamo a atenção para o trecho onde é mencionado que “a autoridade policial ... justificará as razões que levaram a classificação do delito”. Repare que a Lei impõe a análise jurídica e o despacho fundamento da autoridade policial que deve explicitar os motivos (razões) que a levaram a classificar o crime daquela forma, ou seja, como tráfico ou uso.

         Com toda boa vontade que a Polícia Militar possa ter, é impossível que a mesma atenda as exigências legais, pois não é preparada para tal. É preparada para ser polícia ostensiva, e exerce tal função, ao nosso ver, com incomparável coragem e brilhantismo, mas provavelmente grande parte da corporação sequer conhece a existência do artigo de lei citado acima.

         Tal registro de termo circunstanciado pela Polícia Militar, na prática, ainda traz outras dificuldades, como exemplo trago à colação indagações realizadas por um Delegado de Polícia, Dr. Daniel Goulart, postadas no Webmail PCERJ :

  “Se o policial militar deixa de apresentar a ocorrência na Delegacia Policial, local competente para lavratura do procedimento adequado, estará ele não só usurpando função pública, prevaricando e submetendo o autor do fato, vítima e testemunhas a um procedimento ilegal, constrangendo e restringindo suas liberdades em desconformidade com a lei, mas também poderá ele acabar “liberando” um foragido da Justiça, pois se não for o autor do fato apresentado na DP, deixará de se consultar sua situação penal, e assim, aqueles que possuem contra si mandados de prisão, deixarão de ser presos, o que é uma realidade constante nas delegacias policias .                                         

2)     O art. 6º do CPP é claro quando prevê a apreensão de coisas e objetos, oitiva de pessoas, realização de exames periciais, poderes-deveres próprios do Delegado de Polícia, e muitos crimes de menor potencial ofensivo demandam tais providências, e, assim sendo, onde serão formalizadas tais providências no “cartório do batalhão”?;

3)     E se o crime não for de menor potencial ofensivo, por exemplo, uma lesão grave (nem toda lesão grave é aparente, pode ser uma lesão interna), ou um crime de coação (art. 344 do CP), que o PM pensa ser uma simples ameaça (art. 147 do CP)? O que dizermos então das situações de tráfico de pequena

quantidade, em que a princípio poderia se estar diante de um art. 16 (lei 6.368/76), mas quando se chega à DP, após pesquisas e investigações de antecedentes do autor do fato (que só podem ser feitas pela Polícia Civil), vê-se que se está diante de um traficante, podendo-se considerar o fato como art. 12 (lei 6.368/76)? Aliás, quem irá fazer o laudo prévio? A perícia criminal da PM?”

         Conforme acima exposto há razões constitucionais, legais e práticas de que o termo circunstanciado lavrado pela Polícia Militar além de inconstitucional e ilegal é nocivo para sociedade, uma que o cidadão ficará privado de uma garantia que é o imediato controle externo de legalidade daquele ato, sendo certo que, por falhas de interpretações jurídicas, será muitas vezes submetidos de forma arbitrária a constrangimentos ilegais.

         Por fim, o controle externo da atividade policial é uma garantia individual contra os arbítrios eventuais do Estado, assim sendo, os filtros de legalidade não podem ser desconsiderados. Nosso sistema prevê uma seqüência de controles, da Polícia Militar pela Policia Civil e sucessivamente pelo Ministério Público e Poder Judiciário. Tal garantia deve sempre, em qualquer cenário, ser preservada.

Bibilografia:

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GASOS. Iara Maria Leal. A Omissão abusiva do poder de polícia, Rio, Ed. Lumen Juris Ltda., 1994.

LAZZARINI, Álvaro. Polícia de Manutenção da Ordem Pública e a Justiça. In: Direito Administrativo da Ordem Pública, Forense, Rio, 1986.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 19a. Ed. atualizada, São Paulo, Malheiros,1994.

NARDINI. Maurício José. Atividade Policial e Ministério Público

SILVA, Jorge . Segurança Pública e Polícia. Ed Forense 2003

SILVA, José Afonso. Direito Constitucional

 

 

 

Luiz Marcelo da Fontoura Xavier

Delegado de polícia civil do Estado do Rio de Janeiro.