INTRODUÇÃO
A promulgação da Portaria Nº 158, em 04 de fevereiro de 2016, que fora substituída pela Portaria de Consolidação GM/MS n° 5, de 28/09/2016, trouxe a vedação de que os homens que tiveram relações sexuais com outros homens ou com as parceiras sexuais destes, em um período inferior a 12 meses, estariam impedidos de doarem sangue, de forma mais precisa, o texto está disposto em seu artigo 64, inciso IV. O mesmo texto está contido na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) Nº 34, de 11 de junho de 2014, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em seu artigo 25, inciso XXX, alínea “d”. Sobre esses dispositivos sobrevieram inúmeras críticas, indagações e indignações, principalmente, pelos grupos que foram tidos como “grupos de risco” e também daqueles protetores e defensores dos direitos humanos e dos direitos igualitários.
Tendo em vista esses atos normativos, este estudo será realizado com base no Princípio da Isonomia Formal, que possui uma interpretação de que todos devem ser tratados iguais perante à lei e objetiva que os tratamentos devem ser iguais a todos os cidadãos sem quaisquer distinções. Seguindo esta mesma ideia do conceito de Isonomia, neste projeto foram elencadas definições e interpretações da própria Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, bem como ideias a respeito da temática de vários autores, dentre eles: Vicente de Paulo e Marcelo Alexandrino e Ingo Sarlet. Ademais, notas explicativas do próprio Ministério da Saúde.
Sintetizando os conteúdos abordados e correlacionando-os com a realidade de cada cidadão, será realizado também, uma análise e explanação a respeito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543 protocolada no dia 07 de junho de 2016 no STF pelo Partido Social Brasileiro, possui como relator o Ministro Edson Fachin e obteve o seu deferimento no dia 08/05/2020. Nesta Ação o Partido deu ouvido às vozes de todos aqueles que não se conformaram com tamanha injustiça e para toda a classe homoafetiva que sofria e ainda sofre tamanha discriminação, em decorrência destes atos normativos. Houve uma menção, também, de que o Poder Público agiu de forma discriminatória e os legisladores foram contra às normas da Constituição da República Federativa do Brasil ao elaborar esses atos, concluindo que estes atos deveriam ser tidos como inconstitucionais.
O método utilizado nesta pesquisa será o dialético. A escolha deste método se dá pelo fato dele proporcionar análise de diferentes teses para discriminar os principais pontos importantes de cada uma das teses analisadas, para que uma terceira tese seja elabora. No caso desse estudo, serão levantadas e correlacionadas uma Portaria e uma Resolução, bem como as principais teses do princípio da Isonomia Formal.
Para essa pesquisa, a abordagem será o qualitativo. A antropóloga Mirian Goldenberg, traz o pensamento de que, aqueles pesquisadores que utilizam do método qualitativo são contrários àqueles que apoiam um único modelo de pesquisa para todas as ciências, uma vez que as ciências sociais possuem várias especificidades. Ainda de acordo com a autora, aqueles que utilizam do método qualitativo em suas pesquisam possuem uma recusa ao modelo positivista que é aplicado ao estudo da vida social, visto que o pesquisador não pode realizar julgamentos e nem assentir que os seus preconceitos ou crenças adentrem à pesquisa. Tendo em vista a explanação, em razão de possuir uma pesquisa descritiva e por utilizar-me do significado do que as pessoas dão as coisas e a sua vida, não se restringindo a ideologias de gênero, raça, cor, entre outras características, utilizarei deste método qualitativo para adentrar ao meu trabalho.
Para chegar aos dados elencados, às decisões tomadas, aos entendimentos acerca do assunto, serão utilizados os seguintes instrumentos de coleta de dados: Revisão da Literatura Específica e análise documental. No que tange à literatura, levantar-se-á as questões quanto a incidência do Princípio da Isonomia Formal no Ordenamento Jurídico Brasileiro e em se tratando da análise documental, serão estudadas: Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária- ANVISA nº 34 de 11 de junho de 2014 e a Portaria do Ministério Público nº 158 de 04 de fevereiro de 2016, como já mencionado, a qual fora substituída pela Portaria de Consolidação GM/MS n° 5, de 28/09/2016.
Dessa forma, o ponto máximo deste projeto é demonstrar de forma clara e precisa que independente de orientação sexual, práticas sexuais e estilo de vida, ter um tratamento igualitário não é uma faculdade, mas sim uma obrigação para com todos que são vítimas do julgamento antecipado e discriminatório do Poder Público.
Ademais, o exercício de cidadania e a promoção do bem de todos, não se restringe apenas à uma parte da sociedade, mas sim, ela como um todo, salientando que independente das diferenças biossociais, o respeito aos princípios básicos constitucionais precisa ser extremamente levados em conta, a fim de idealizar que os homossexuais do sexo masculino tenham a chance de doar sangue e salvar vidas.
1.PRINCÍPIO DA ISONOMIA FORMAL
1.1 Conceito e Fundamentação
Muito se discute acerca da importância do papel que cada um possui em uma sociedade e mais importante ainda, todos sabem que estes papéis devem ser cumpridos de forma igualitária. É o que dispõe o caput do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Tratando-se deste dispositivo há de se falar em Isonomia Formal, aquela em que traz uma igualdade jurídica, em termos mais corriqueiros “igualdade perante a lei”, sendo um Princípio Constitucional que possui o intuito de tratar todos igualmente sem nenhuma distinção.
Fazendo uma breve interpretação do que fora supramencionado, há de se concluir que as diferenciações arbitrárias e incoerentes são vedadas. Nesse sentido, aduz Vicente de Paulo e Marcelo Alexandrino:
[...] enquanto a igualdade perante a lei dirige-se principalmente aos intérpretes e aplicadores da lei, impedindo que, ao concretizar um comando jurídico, eles dispensem tratamento distinto a quem a lei considerou iguais. (ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente, 2011, p. 122)
No que tange a este Princípio, deve-se levar em consideração a diferença entre os Princípios da Isonomia e Igualdade. Embora sejam Princípios bem semelhantes, as suas distinções se dão no âmbito das perspectivas jurídicas, tendo que, a Isonomia se caracteriza por ser voltado à aplicabilidade das normas e a Igualdade está voltada para uma interpretação mais abstrata.
Concernente ao Princípio da Isonomia Formal está o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. É imprescritível que a definição deste Princípio esteja nítida para que sejam observados os questionamentos que serão abordados posteriormente.
Trazer à luz este princípio é fazer uma correlação com a existência humana. Uma vez que não existe ser humano realizado, se este não estiver usufruindo de sua dignidade. Lógico e infelizmente que essa é apenas a teoria, tristemente nesta hodierna sociedade, a realidade é bem diferente. Mas para que possa ser feita uma análise com mais aprofundamento, Ingo Sarlet [1] [2] define este princípio em sua obra:
[...] a dignidade, como como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. (SARLET, Ingo, 2002. p 41).
No que tange ao seu amparo legal, tem-se, no artigo 1º, inciso III da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana; [...] (Brasil, 1988)
Embora existam ditames doutrinários e legais para este princípio, a sua definição é muito além do expresso nos papéis. É um princípio básico e fundamental que, infelizmente, é pouco respeitado, incluindo a situação em questão. A dignidade, por lei, deve ser tida como um vetor supremo de uma sociedade, mas o que ocorre é que, situações corriqueiras fazem com que inúmeros impedimentos existentes, de tantas classes, sobressaiam a este vetor, trazendo uma enorme desigualdade para diversas pessoas.
As reflexões a respeito dos dois princípios elencados fazem com que surja, na maioria das pessoas, questionamento acerca de tantas injustiças que ocorrem no Brasil e no mundo. Com toda a certeza é um ponto muito importante a se analisar; e uma situação que deve ser analisada com muita cautela é a de que, inúmeras pessoas, que, mesmo estando revestidos dos princípios da Isonomia Formal e da Dignidade da Pessoa Humana, ainda são julgados, taxados, menosprezados e discriminados apenas em virtude de sua orientação sexual. Embora tida como “ uma situação normal”, é uma realidade muito triste para milhares de pessoas que optaram por sua orientação sexual.
Neste diapasão, em uma quinta-feira, no dia 13/06/2020, houve a discussão de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e também do Mandado de Injunção nº 4.733, além das ações que foram protocoladas por parte do PPS e da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT).
A maioria da classe LGBT trouxe o discurso de que os LGBT’s têm que ser inclusos no conceito de “classe social” e aqueles que agirem com quaisqueres tipos de agressão devem ser punidos conforme o crime de racismo. Neste sentindo, o Supremo Tribunal Federal decidiu criminalizar a homofobia como uma forma de racismo.
Para um melhor entendimento, segue o voto da ministra Cármem Lúcia, que teve o discurso de que a Constituição traz a garantia de que ninguém será submetido a nenhum tratamento desumano; (Agência Brasil , 2019):
[...] Numa sociedade discriminatória como a que vivemos, a mulher é diferente, o negro é diferente, o homossexual é diferente, o transexual é o diferente, diferente de quem traçou o modelo porque tinha poder para ser o espelho. Preconceito tem a ver com poder e comando.”
Em contrapartida a todos esses discursos e ao que fora mencionado, o que mais pode ser visto e presenciado é o afronto exacerbado que esses Princípios sofrem, seja no meio social, familiar, religioso e até mesmo em contextos normativos. A Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 34. de 11 de junho de 2014, em seu artigo 25, inciso xxx, alínea “d” dispõe:
[...] os contatos sexuais que envolvam riscos de contrair infecções transmissíveis pelo sangue devem ser avaliados e os candidatos nestas condições devem Ministério da Saúde - MS Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA Este texto não substitui o(s) publicado(s) em Diário Oficial da União ser considerados inaptos temporariamente por um período de 12 (doze) meses após a prática sexual de risco, incluindo-se:
d) indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes. (Brasil, 2014)
Ainda nesse sentido, existe uma Portaria do Ministério da Saúde de nº 158, de 4 de fevereiro de 2016¸ que foi substituída pela Portaria de Consolidação GM/MS n° 5, de 28/09/2016, em seu artigo 64, inciso IV possui o seguinte texto:
[...] Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:
IV) homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes; [...] (Brasil, 2016)
Resta claro que estes atos normativos não estão apenas em desconformidade com o texto constitucional, onde fica claro que todos os cidadãos merecem tratamento igualitário, não podendo haver distinções em nenhum âmbito.
Neste diapasão, cumpre salientar a contradição existente entre os artigos existentes nessa mesma Portaria. O seu Anexo IV, artigo 2º, § 3º traz o seguinte texto:
[...] Os serviços de hemoterapia promoverão a melhoria da atenção e acolhimento aos candidatos à doação, realizando a triagem clínica com vistas à segurança do receptor, porém com isenção de manifestações de juízo de valor, preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, cor ou etnia, dentre outras, sem prejuízo à segurança do receptor. ( Brasil, 2016)
Isso retrata a realidade daqueles que procuram atuar com solidariedade e cidadania. Todos são amparados em uma Portaria do Ministério da Saúde e nesta mesma Portaria, existe um texto tão preciso, impedindo que todos da classe de homossexuais do sexo masculino possuam o seu direito de cidadania.
Falar em direitos se torna quase desnecessário, quando, neste mesmo contexto, um dos principais pontos a ser analisado é a saúde daqueles que precisam de uma doação de sangue e, em detrimento de tal restrição, pessoas que poderiam obter uma melhora de vida ou até serem salvas, são aquelas que são mais afetadas.
Por fim, há de ressalvar que, com a existência de situações como essa, com tais preconceitos e impedimentos, a definição de sociedade justa, igualitária e solidária está longe de chegar ao Brasil, um país em que tem uma maior preocupação em “separar” aqueles que estão totalmente aptos a ajudarem um próximo, do que simplesmente inserí-los como “pessoas normais”, apenas por motivos de suas orientações sexuais serem distintas daquelas que são taxadas como “corretas” para que ocorra uma doação de sangue e por consequência, realizar o salvamento de inúmeras vidas.
2. O IMPEDIMENTO DA DOAÇÃO DE SANGUE POR PARTE DOS HOMENS HOMOSSEXUAIS
2.1 Definição
Antes mesmo que seja trago a definição desse impedimento que essa classe dos homossexuais sofre, aqui está algum dos depoimentos retirado do site Jornal de Brasília, para que a realidade seja mostrada de forma clara e precisa, fazendo com que seja compreendido todo o sentimento de desprezo e angustia que essas pessoas, que apenas querem ajudar o seu próximo, sofrem: “Para doar sangue, eu omito algumas informações na entrevista”, assevera o funcionário público de 36 anos. No mesmo sentido, ele também alega: “Conheço minha atividade, minha prática. Não tem problema nenhum (…) Acho que deveria ser revista essa legislação para facilitar todo mundo a ajudar ao próximo”. (Jornal de Brasília , 2019)
Como já mencionado, o devido impedimento ocorre em virtude de os homens homossexuais terem tido uma relação sexual com um outro homem ou parceiras destes em um período inferior há 12 meses. Insta salientar que essa não é a primeira vedação que os homens homossexuais sofrem.
Fazendo uma breve retrospectiva, há de mencionar que, antigamente havia um impedimento ainda mais rígido do que se trata o texto da Portaria do Ministério da Saúde nº 158/2016, substituída pela Portaria de Consolidação GM/MS n° 5, de 28/09/2016 e da Resolução de Diretrizes Colegiadas nº 34/2004 da ANVISA. Tendo em vista que, na década de 80, começou o surto do vírus do HIV, esse período foi tido como a década da pandemia do HIV e eram observadas inúmeras contaminações por parte dos receptores, ao decorrer das transfusões.
Um exemplo bem clássico e conhecido é o de Herbet José de Sousa, ele era portador da doença hemofilia e era dependente de transfusões sanguíneas. E com a progressão dos casos de HIV, aqueles homens que faziam sexo com outros homens ficaram impedidos de doarem sangue eternamente, ou seja, não poderiam ser mais doadores em hipótese alguma. A regra ficou um tanto quanto mais “maleável” a partir do ano de 2004, com atos normativos que troxeram restrições um pouco mais brandas.
Depois de um considerável tempo, no dia 12 de novembro, do ano de 2013, a Portaria Nº 2.712, e a RESOLUÇÃO-RDC/ANVISA nº 153, de 14 de junho de 2004, eram vigentes até serem revogadas pelos atuais atos normativos: Portaria do Ministério da Saúde nº 158/2016, substituída pela substituída pela Portaria de Consolidação GM/MS n° 5, de 28/09/2016 e a Resolução de Diretrizes Colegiadas da ANVISA Nº 34/2014.
O interessante é ressalvar que, mesmo obtendo uma revogação, é expresso o preconceito e a discriminação que tal classe sofre por aqueles que legislam esses atos normativos. Como mencionado, foram revogados atos com cunho de preconceito, desigualdade e menosprezo, para que entrassem em vigor, posteriormente, atos com o mesmo teor.
Embora existam muitos legisladores que possuem uma mentalidade discriminatória, cumpre salientar que existem países que não admitem essas formas de discriminação. É o caso do Chile, Espanha, México, Portugal, Itália, Rússia, dentre outros. Estes países acolheram aos pedidos e alegações de entidades LGBT e reconheceram que estes ditames e esse tipo de norma são tidos como atos discriminatórios e que a nomenclatura utilizada deveria passar de “grupo de risco” para “comportamentos de risco”.
A realidade é que, além de haver uma intolerância em relação à orientação sexual destes indivíduos, tem-se, também, um julgamento premeditado de seus atos. O Ministério da Saúde sempre foi alvo de várias indagações a respeito do impedimento que esse “grupo de risco” sofre. Em suas respostas, a principal tese era que o impedimento se dava pelo fato de os homossexuais terem relações sexuais anais. Alegam que, pelo fato, de que a mucosa do reto é fina, podendo ser rompida facilmente, faz com que, as mínimas lesões na mucosa sejam suficientes para permitir que os agentes infecciosos ajam de uma forma mais rápida. Na ocasião, mesmo que não ocorram essas lesões, as células da mucosa retal possuem uma imunidade bem menor do que aquelas células da mucosa vaginal.
Estes argumentos tragos pelo Ministério da Saúde são considerados plausíveis, possuem todas as justificativas técnicas e científicas. No entanto, a restrição é enorme, uma vez que, o sexo anal NÃO é uma prática apenas dos homossexuais, existem inúmeros casais heterossexuais que possuem a prática do sexo anal de uma forma até mais frequente do que casais homossexuais e no entanto não sofrem NENHUM tipo de impedido para realizarem a doação de sangue.
Outro ponto a ser observado, de tamanha desproporção é que, os únicos afetados são os homens que têm relações sexuais com outros homens ou com parceiras destes, uma vez que as mulheres homossexuais não possuem essa mesma vedação. Desta forma, tem-se que, não existe nenhum ato normativo que dispõe que homossexuais mulheres são impedidas de doar sangue.
E mais uma vez é notória tamanha desigualdade e preconceito com a classe dos homens homossexuais e até aqueles homens que possuem uma relação saudável e segura com os seus parceiros são impedidos de exercerem o seu direito de cidadania e sofrem tal preconceito, sendo que, existem inúmeras pessoas que, sem sofrer quaisquer restrições, doam sangue e estão muito mais suscetíveis à contaminarem os receptores com algum tipo de vírus, devido a falta de cuidado e proteção, em comparação aqueles que possuem todos os cuidados possíveis e obtém relações sexuais seguras.
O Ministério da Saúde, em seu portal, lançou uma nota em relação a participação dos cidadãos nas doações de sangue. Há de destacar que, a cada mil habitantes, apenas 16 são doadores de sangue, correspondendo a 1,6% de toda a população brasileira. Não é errado dizer que o Brasil se encontra em uma margem que é exigida pela Organização Mundial da Saúde, que possui a recomendação de que, o percentual de doadores de cada país seja de 1% a 3%.
Em 2017, foi constatado que, de todos os doadores, 38% são do sexo feminino e 62% do sexo masculino. É claro que se essa parte da população não fosse impedida e não sofresse essas restrições, haveria um aumento do percentual doador do Brasil, uma vez que, a porcentagem masculina doadora é superior à feminina e a partir do aumento dessa classe doadora que o Brasil teria, o número de vidas salvas e estoques nos hemocentros iriam crescer de uma forma muito avantajada.
Tem-se apenas duas soluções para todo o conflito que estes homens homossexuais sofrem: a primeira, que mintam a respeito de sua orientação sexual, sendo assim, estão vedados de esboçarem sua liberdade de expressão em relação a sua própria ideologia de gênero e o que optou como sua orientação sexual. A segunda é que omitirão a sua prática sexual, estando impedidos de realizarem os atos que lhe são expostos em razão de suas necessidades naturais, pois uma vez exercendo tais atos, mesmo tendo toda a conscientização de preservação, serão impedidos de doarem o sangue. Nesse contexto, não há dúvidas de que em todas as formas, esses cidadãos classificados como “grupos de risco” sofrem preconceitos absurdos.
Analisando todos os posicionamentos e argumentos, é espantoso ter em mente que uma pessoa que definiu a sua orientação sexual diferente daquelas taxadas como “adequadas” pelo Poder Público e que segue todos os padrões de uma pessoa heterossexual, não tem uma oportunidade de fazer uma doação de sangue.
Ademais, com todos os depoimentos já ouvidos por aqueles que sofreram deste mal, há de se concluir que o homem homossexual é tido como impróprio, pois na maioria das entrevistas, os homossexuais relembram que não foram perguntados a respeito do uso de camisinha e que muitos casais héteros conseguem doar sangue de uma forma muito fácil, mesmo não possuindo nenhum tipo de proteção e agindo com total negligência em relação às suas práticas sexuais.
O legislador, ao elaborar esses atos, tem como justificativa o argumento de que, a vedação existe para que a qualidade do produto biológico seja garantida. Ocorre que, no processo de doação até a transfusão do sangue ao receptor, inúmeros critérios são utilizados, o processo não se restringe apenas à entrevista do candidato. Antes de ocorrer a coleta de sangue do doador, ocorre um procedimento, o qual dirá se o doador está apto ou não a doar o sangue. Neste sentido, explica o Ministério da Saúde (Blog da Saúde, 2016):
[...] o futuro doador passa para a triagem clínica, que consiste em uma avaliação clínica e epidemiológica, um exame físico, e a análise, por um profissional da saúde capacitado, das respostas do candidato a um questionário padronizado, que avalia a história médica atual e prévia, os hábitos do voluntário e fatores de risco para doenças transmissíveis pelo sangue. Todas as informações são confidenciais. Os sinais vitais também são aferidos (pressão arterial, pulso e temperatura), o peso e a altura, dosagem de hemoglobina ou medida do hematócrito.
Além de ter um processo seletivo para que o candidato doe sangue, após a doação, até que o sangue chegue ao receptor, existe um outro processo. Desta forma, assevera Ministério da Saúde (Blog da Saúde, 2016):
[...] Só são liberadas as bolsas com resultados não reagentes/negativos para os testes sorológicos e para os testes de detecção de ácido nucleico viral (NAT), que são duas metodologias de testagem utilizadas atualmente no Brasil para o sangue doado.
Após obtenção dos resultados dos exames de qualificação do sangue do doador, os hemocomponentes são liberados no sistema informatizado e, em seguida, emitidos os rótulos de produtos liberados, que são firmemente afixados a eles, respeitando a identificação numérica ou alfanumérica que a bolsa traz desde a coleta e completando o rótulo com as informações da liberação. Os bancos também seguem a risca os procedimentos de conservação específicos de cada um dos hemocomponentes.
Após uma breve interpretação a respeito das ponderações trazidas pelo próprio Ministério da Saúde, só existe essa restrição por mera discriminação, pois todos os sangues coletados passam por vários procedimentos de aptidões. O candidato não chega ao hemocentro, tem o sangue coletado e este sangue já será transfuso ao receptor. Seria justo que os homossexuais tivessem a chance de passar por esses procedimentos, assim como qualquer outra pessoa passa, com o intuito de ter a oportunidade de contribuir para o bem do próximo, mas é perceptível que a falta de justiça e a discriminação é o que acaba ocorrendo nestas situações.
Outro argumento trago pelo Ministério da Saúde é que existe o fenômeno da janela imunológica, como bem conceitua o próprio Ministério: (Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, 2018)
[...] É o período entre a infecção e o início da formação de anticorpos específicos contra o agente causador, momento em que o indivíduo se torna reagente para o HIV, isto é, sai do status de negativo para o status de positivo para o HIV. Os anticorpos contra determinado agente tornam-se detectáveis pelos testes disponíveis. Geralmente, esse período dura algumas semanas, e o paciente, apesar de ter o agente infeccioso presente em seu organismo, apresenta resultados negativos nos testes para detecção de anticorpos contra o agente.
Ocorre que, adequar à janela imunológica apenas aquelas pessoas pertencentes ao grupo de risco é totalmente contrário ao próprio conceito de janela imunológica, uma vez que, em momento algum da definição elencada, houve uma menção aos homens homossexuais, desta forma, todos, incluindo os héteros e demais homossexuais possuem essa janela. Toda a sociedade possui os mesmos riscos e deveriam ter o mesmo tempo para essa janela, que é uma das justificativas tragas pelo Poder Público para vedarem doações de homossexuais masculinos.
3. LEGISLAÇÃO VIGENTE NO BRASIL
De forma inicial, é importante que se tenha em mente o seguinte disposto constitucional:
[...] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Brasil, 1988)
A maioria das pessoas conhecem um ditado que diz que “existem dois lados da mesma moeda” e isso foi a única luz no fundo do poço para quem era alvo de tamanha injustiça. E como uma forma de amparo a estes que sofrem tanto e também daquelas pessoas que não se conformam com tamanha injustiça, o Partido Social Brasileiro - PSB, no ano de 2016, protocolou, no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade- ADI nº 5543, que teve como relator o Ministro Edson Fachin e nela consta um pedido de liminar, em desfavor da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) Nº 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e da Portaria Nº158/2016 do Ministério da Saúde (MS), substituída pela Portaria de Consolidação GM/MS n° 5, de 28/09/2016, onde ambos advertem que só poderão realizar a doação de sangue, os homens que não tiveram relação sexual com outros homens ou parceiros destes em um período de 12 meses.
Na fundamentação da ADI, o Partido utilizou-se das teses de que o tratamento do Poder Público era discriminatório em razão das orientações sexuais que as pessoas escolhem e que existe uma ofensa àquela classe, impedindo-lhes de realizarem os seus exercícios de cidadania. Levantaram ainda, dados a respeito de doações, onde, foi constatado que com apenas uma doação de sangue é possível que até quatro vidas sejam salvas e que, com apenas uma doação, são coletados cerca de 450 ml de sangue, resultando, no fim de um ano, um desperdício de cerca de 19 milhões de litros de sangue.
Com isso, inúmeras vidas poderiam ser salvas! Entretanto, estes atos normativos não restringem apenas aqueles que almejam ser doadores e querem propiciar o bem daqueles que estão enfermos, afeta também aqueles receptores, que, na prática, estão restritos de uma oportunidade de se verem livres de um leito de hospital ou então que prolatam a sua cura, em detrimento da falta de sangue nos hemocentros do Brasil.
Como já mencionado, é de suma importância relembrar que, antes destes atos normativos, existia uma vedação permanente dos homossexuais, os quais, não poderiam doar sangue em nenhuma hipótese. De uma forma superficial, seria correto afirmar que as Portarias e as Resoluções da Diretoria Colegiada tiveram uma progressão, todavia, a realidade prática está muito distante de uma progressão, vez que aqueles homens homossexuais que possuem uma mínima prática sexual, sem apresso de nenhum quesito sequer, como é feito com qualquer pessoa que chega com a intenção de doar sangue, são impedidos de forma permanente a realizarem uma doação de sangue.
Para a felicidade de toda a classe de homens homossexuais e também de todos aqueles defensores dos direitos fundamentais, da justiça e da igualdade, no dia 08/05/2020, por sessão virtual, esta Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543, protocolada pelo PSB, obteve o seu DEFERIMENTO! Essas normas inconstitucionais e homofóbicas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária foram abatidas!
O Supremo Tribunal Federal, por 7x1, julgou inconstitucionais tais normas e na decisão, Edson Fachin, ministro relator da ADI considerou que as medidas adotadas para a seleção de doadores são tidas como “discriminação injustificável e inconstitucional”. Segue o entendimento do relator, trago pelo site do Supremo Tribunal Federal. (Supremo Tribunal Federal , 2020):
[...] não se pode negar a uma pessoa que deseja doar sangue um tratamento não igualitário, com base em critérios que ofendem a dignidade da pessoa humana. Fachin acrescentou que para a garantia da segurança dos bancos de sangue devem ser observados requisitos baseados em condutas de risco e não na orientação sexual para a seleção dos doadores, pois configura-se uma "discriminação injustificável e inconstitucional.
Em conformidade com o entendimento do ministro, torna-se evidente tamanha discriminação que se tinha, quando aquele que tinham o intuito de promover o bem no próximo, não tinha essa oportunidade. Em uma matéria traga pelo Dom Total, a respeito do deferimento desta ADI, Élio Gasda trouxe a seguinte assertiva: (Dom Total , 2020)
[...] Essa decisão histórica também significa mais um passo na despatologização da homossexualidade, que embora tenha sido promulgada, continua demandando outras formas de reconhecimento, menos precárias e discriminadas.
O que seria essa despatologização da homossexualidade? Seguindo o sentido conceitual dos termos, tem-se que, a despatologização é “descaracterizar como doença; tirar o estigma de doença”, ou seja, além de serem tidos como indiferentes, a homossexualidade era tida como “doença”. Sim, um termo muito pesado, que acarreta um certo repúdio em relação a quem pronuncia, mas infelizmente essa sempre foi a realidade daqueles que são “diferentes” dos demais seres humanos. Mas como bem expresso no entendimento supramencionado, essa decisão foi além de um desimpedimento que a classe sofria, ela foi um passo bem fundo para que a total dignidade e moralidade dos homens homossexuais viessem à tona em meio a tantos tabus.
Embora essa decisão do STF tenha sido tomada, não há o motivo de não trazer para o contexto a posição do Ministério da Saúde ainda sobre a matéria desse impedimento. Como é de conhecimento de todos, não só o Brasil, mas em todo o mundo, o momento que está sendo vivido é de pandemia, em virtude do vírus COVID-19. Peste essa que acarretou inúmeras mortes, fez com que a fome, o desemprego a desestabilidade sofresse um surto também.
Outro ponto que foi incluso como crescimento, foi o número de internamento nos hospitais, o número de óbitos diários, internamentos em UTI e também a elevada queda de bolsa de sangue nos hemocentros de todos os hospitais, visto que, por um caso fortuito e por uma força maior, os hospitais tiveram que atender as demandas já existentes e ainda aqueles que estavam em situação de risco, em virtude da contaminação do COVID-19.
Em meio a todo esse caos, o mínimo que poderia esperar das autoridades competentes seria que a doação pudesse ser feita por todos aqueles que estivessem aptos a doarem sangue e que não colocariam a vida dos receptores em risco, acontece que não foi isso que aconteceu. Em meio a uma situação de pandemia, o discurso militante de que os homens homossexuais que tivesse tido relações sexuais com outros homens ou parceiras destes, estariam inaptos a doarem sangue. Retirada do site da BBC, segue o entendimento do Ministério da Saúde: (BBC News , 2020)
[...] O Ministério da Saúde informou à BBC News Brasil que vai manter as restrições atuais à doação de sangue por gays, apesar de um grande número de hemocentros pelo país relatar estoques baixos devido à pandemia de coronavírus.
Como já mencionado, uma das teses tragas pelo Ministério da Saúde é de que, a incidência de HIV em homens que fazem sexo com outro homem é maior do que naquelas pessoas que não possuem essa prática, mas acontece que, não existe apenas essa informação. Há de elencar o estudo feito pelo sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz, trago também pelo site da BBC News, com base nos dados do próprio Ministério da Saúde. A partir do estudo dele, ficou evidente que as pessoas heterossexuais adultas eram as responsáveis pela maior parte das recentes notificações de contaminação pelo vírus HIV em 2012. Para um melhor entendimento: (BBC News , 2020)
[...] Naquele ano, 67,5% dos casos informados pela rede de saúde pertenciam ao grupo de heterossexuais, sendo a maioria formada por mulheres, com 58,2%. O levantamento também mostrou que a maior incidência de contaminação estava na faixa de 30 a 49 anos, incluindo héteros e homossexuais. Ainda assim, em 2018, uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde e feita em 12 cidades brasileiras mostrou que um a cada quatro homens que fazem sexo com homens no município de São Paulo tinha HIV.
Infelizmente essa realidade não é apenas brasileira, mesmo em tempos dificílimos, países como a Finlândia e a Nova Zelândia continuaram com a proibição. Em contrapartida, na matéria do próprio site da BBC, foi trago a informação de que, mesmo aqueles países que também possuem essa regra discriminatória com os homens homossexuais, optaram por uma flexibilização em relação a este tempo de 12 meses. Como exemplo, os Estados Unidos, que reduziu o lapso temporal para um período de 3 meses.
À título de mais uma informação de dados que escandalizam a todos, apenas no Hemocentro da Unicamp, na cidade de Campinas, localizada no interior de São Paulo, houve uma queda de 25% das doações de sangue e alegam que os estoques do hemocentro estão em um nível de alerta. Essa não é a realidade apenas de um hemocentro, triste é ter a ciência de que essa é a realidade de todos os hemocentros do país.
Ainda, em um comunicado expedido pela ANVISA, as autoridades firmam o discurso de que em nenhum momento a orientação ou a dignidade de ninguém é ferida, mas sim as suas práticas, conforme expresso pelas autoridades: (BBC News , 2020)
[...] A norma tem uma vedação temporária para homens que fazem sexo com outros homens. É importante destacar que a norma é focada em uma prática e não na identidade sexual da pessoa.
[..] Defensores da norma alegam que ela não é "discriminatória", uma vez que a orientação sexual de um indivíduo nunca foi considerada como critério de exclusão para a doação de sangue e, sim, se o doador do sexo masculino teve relação sexual com outro homem no período de 12 meses anteriores à contribuição.
Inacreditavelmente esses sãos os discursos tragos por aqueles que estão representando as autoridades públicas. Em respeito e garantia aos direitos básicos e fundamentais, existe parte do Poder Público que crê na revolução de pensamentos limitantes e que defende a classe discriminada, como o caso do procurador geral, Rodrigo Janot, que em matéria, destacou, para o site da BBC: (BBC News , 2020)
[...] a proibição se baseia no fato de que a transmissão do vírus HIV é mais frequente na prática do sexo anal. Mas ressaltou que a prática não está limitada a homens homossexuais, sendo também comum na vida de pessoas com outras orientações sexuais.
Mas em meio a todos esses caos, a toda a luta de quem queria ter o direito de promover o bem comum, é muito importante ressalvar que, mesmo apesar de ter levado um considerável lapso temporal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade número 5543 veio para refutar e tornar nulo todo e qualquer ato que venha desrespeitar e denegrir a dignidade, a igualdade e a liberdade dessa parte discriminada.
“Há males que vêm para o bem”. Mesmo com toda essa situação caótica que o mundo se encontra, serviu para que aquelas pessoas que possuem o poder de uma decisão tão importante, tomassem nota da situação de menosprezo que os homens homossexuais viviam e também deu vozes para aqueles que nunca deixaram de acreditar que a justiça realmente iria ser feita. Além de pensarem também, naqueles que estão à espera de uma doação de sangue. Insta salientar que, se não fosse por meio dessa decisão do Supremo Tribunal Federal, ninguém se sabe quando esses atos normativos iriam ser nulos, tampouco quando esse grupo de pessoas iria conseguir exercer a sua cidadania. Essa decisão foi o divisor de água, para que todos tomem posse dos direitos que foram aniquilados por muitos anos e que hoje voltam à tona.
4. O IMPEDIMENTO E OS SEUS REFLEXOS
Tão importante quanto falar a respeito da igualdade que os homens homossexuais precisam de ter, é de suma importância mencionar o motivo principal de toda essa discussão: vidas que serão salvas com essas doações de sangue. Como já mencionado, apenas com uma doação realizada, até quatro vidas podem ser salvas.
Falar em doação de sangue é falar em promoção de um bem comum, de forma mais específica, de um bem a um terceiro. Fazendo uma breve interpretação do objetivo da doação de sangue, aquele que está disposto a realizar essa doação, deixa de pensar um pouco em si, deixa de lado um pouco da sua individualidade e passa a ter um sentimento de compaixão para com o próximo, através de sua voluntariedade em contribuir para salvar tantas vidas.
Passado o sentido biológico do termo, doar sangue também é levado como o lado humano de todos aqueles que se candidatam a doarem sangue e também, mesmo que de forma implícita, é sabido da gratidão que aquelas pessoas sentem em receber a quantia de sangue que era necessária para que o seu tratamento fosse adiante ou então que fosse salvo em uma situação de emergência. E nesse sentido, o doador Adalto Carvalho, que há 15 anos possui a prática da doação, contou em uma entrevista ao site Blog da Saúde, do Ministério da Saúde: (Blog da Saúde - Ministério da Saúde , 2015)
[...] Estava trabalhando e me ligaram pedindo que eu doasse, pois tinha uma criança que necessitava. Estava completando três meses e dois dias que eu tinha doado pela última vez. A família me agradeceu muito, queriam até me pagar, mas a doação é um ato voluntário e eu tenho muito orgulho em fazer isso.
Esse foi apenas um depoimento de um doador, é incalculável a motivação de vida que a doação de sangue é capaz de promover em todas as pessoas envolvidas.
Assim como os doadores, o sentimento de gratidão por parte dos receptores é emocionante e muito motivador, como por exemplo, o depoimento do senhor Bernd Egon Marterer, que deu uma entrevista ao G1 de Santa Catarina: (Globo.com, 2014)
[...] Meu nome é Bernd e aproximadamente há oito anos fui diagnosticado mieloma múltiplo, já passei por dois transplantes autólogos e atualmente estou dependendo de remédio para controlar a doença e assim como eu, existem centenas ou até milhares de pacientes que dependem do sangue. Por isso eu sou grato a todas aquelas pessoas que doam o seu sangue. Então venha você também, ajude esses pacientes ter uma vida normal com o seu sangue recebido.
Por curiosidade, é interessante mencionar que, no Brasil, até meados da década de 80, ocorria uma remuneração para a doação de sangue. Mas, em virtude do surgimento da doença da AIDS, e também outras doenças que eram transmitidas pelo sangue, passou-se a ter uma certa atenção e também preocupação com a segurança daquele sangue que era doado e transfuso aos receptores. E como forma de resolução de todo o litígio, houve a criação de campanhas com o intuído de incentivar a doação voluntária, fazendo com que a doação remunerada não existisse mais.
E em decorrência de todas os questionamentos que acarretaram essa situação, sobrevieram várias contestações a respeito do sistema de saúde que era vigente e também passou a existir um medo das contaminações daqueles sangues que eram doados de forma remunerada. A partir daí, é lançada uma nova política pública, com a impretação de uma rede de hemocentros e um exercício relacionado ao incentivo para as doações que eram voluntárias, tido isso como um “ato de altruísmo”.
Finalizando essa sequência, hodiernamente, no Brasil, o sangue que é doado, antes de ocorrer a transfusão, passa por um exigente controle, para que possa ser utilizado e com todo esse procedimento, o que é perceptível é que as doações possuem um baixo número ainda, e existem determinadas épocas que esse número sofre uma regressão ainda maior.
Dessa forma, é de suma importância que também aconteça de forma mais intensa o incentivo à doações regulares, fazendo com que ocorra uma conservação de um estoque sempre cheio nos hemocentros de todo o país, tendo em vista que a necessidade de ter esse sangue nos bancos é frequente.
Embora o Brasil recentemente ainda era integrante de uma lista de países que possuem esse impedimento para a classes de homens homossexuais, existem países que, em meio a essa triste realidade, não consideram essa parte da sociedade como indiferente, é o caso, por exemplo, da Argentina, que no ano de 2015 promoveu essa retirada do seu Ordenamento Jurídico, e conforme a matéria do site Gauchazh, asseverou o Ministério da Saúde, "um fim a uma longa história de discriminação institucional contra a comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros)" . (Gauchazh, 2015).
Muito se destaca a postura de países como a Argentina, que fez com que esse impedimento se tornasse insignificante, tendo em vista que a necessidade de realizar a promoção do bem ao próximo e também que a liberdade de expressão de cada cidadão seja respeita e não taxada, seja bem superior à apenas discriminá-los e taxa-los como inaptos, apenas por conta de sua orientação sexual. O mesmo entendimento se aplica aos países como o Chile, Cuba e Colômbia, dentre outros, que já retiraram esse impedimento dos devidos amparos legais.
Como já fora mencionado, no Brasil, apenas a classe de homens homossexuais sofriam em virtude desse impedimento, o mesmo não acontece com nenhum outro tipo de homossexuais. É importante trazer a interpretação de que, aquelas mulheres homossexuais, que por evidência são as que mais se equiparam aos homens homossexuais, neste contexto, não possuem nenhum tipo de vedação.
Resta de forma clara e nítida que apenas uma parte dos homossexuais possui a sua liberdade de expressão vedada, enquanto os demais podem assumir a sua orientação, as suas práticas e estão resguardados de que não terão nenhum impedimento. Como forme de especificar o amparo constitucional da liberdade de expressão, há de elencar o artigo 5º e seus incisos da aludida Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:
[...] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; [...] (Brasil, 1988)
Contudo, como uma forma de resolução para inúmeros conflitos que surgem em decorrência dessa discussão, é de suma importância salientar novamente a decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543, que fora recentemente deferida pelo Supremo Tribunal Federal. Com toda certeza foi um alívio para muitos que sofriam com tantas restrições.
O que não pode ser deixado de ser mencionado é que essa decisão tomada pelo STF não possui um alcance ao Poder Legislativo. É o disposto do informativo nº 377 do STF : (Supremo Tribunal Federal , 2005)
[...] A eficácia geral e o efeito vinculante de decisão proferida pelo STF em ação declaratória de constitucionalidade ou direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal não alcançam o Poder Legislativo [...]
Para um melhor entendimento é importante salientar o papel que o Poder Legislativo possui em todo o território brasileiro, é o que site da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará asseverou: (Assembleia Legislativa do Estado do Ceará , 2020)
[...] Na divisão dos Poderes estabelecida pela Constituição Brasileira cabe ao Poder Legislativo, entre outras atribuições, a elaboração de leis e a fiscalização dos atos do Poder Executivo. O mais democrático e representativo dos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), o Legislativo é formado por vereadores, deputados e senadores eleitos pelo povo.
Desta forma, tem-se que, aqueles que são responsáveis por criarem as normas, os ditos legisladores não possuem nenhum efeito em relação a ADI supramencionada. O que deve ser posto em questão é que, com uma decisão já tomada, aquelas pessoas que estão à frente do Poder Legislativo deve tomar ciência de toda a realidade que aquela parte da sociedade vivenciou por anos e agora que obtiveram um certo reconhecimento por todas as suas lutas e também obtiveram o resguardo e amparo a todos os seus direitos.
Insta salientar que, por mais que o Legislativo possua a autonomia de, diante toda a realidade, ainda ter o direito de continuar legislando a respeito da matéria discutida em toda a Ação Direta de Inconstitucionalidade que o Partido Social Brasileiro protocolou, não existe o motivo de os homens homossexuais sofrerem novamente um impedimento de tamanha desigualdade e com ditames tão preconceituosos.
O que se espera por parte do poder Legislativo é que os responsáveis elaborem atos normativos que enfatizem e despertem em toda a sociedade a importância da inclusão social daqueles que já sofreram tanto e que ainda possuem resquícios de todas as situações desagradáveis que passaram e também carregarem consigo a importância da doação de sangue para aqueles que estão necessitados e dependentes de tal ato, para terem uma melhora de vida.
. Trazer a luz essa realidade que muitos sofreram um dia faz com que todos carreguem em sua consciência que ninguém é melhor de que ninguém e que a orientação sexual não importa em nada, é apenas a escolha que uma pessoa optou em sua vida. E essa escolha não é o divisor de águas da vida de ninguém, uma vez que os seus direitos e a promoção do bem de todos independem de orientações sexuais e tampouco de julgamentos premeditados.
CONCLUSÃO
Este trabalho nasceu da perspectiva de analisar a realidade de uma parte da sociedade brasileira que muitos desconhecem, apresentando também a realidade do exterior e trazendo algumas relações no que diz respeito a doação de sangue.
Como esboçado, o impedimento que os homens que fazem sexo com outros homens sofre não é recente, desde meados da década de 80, quando houve um surto do vírus do HIV, essa classe de homens homossexuais tiveram um impedimento vitalício de doarem sangue. No ano de 2004, essa realidade obteve uma progressão, onde esse impedimento que era para toda a vida, passou a ser de um período de 12 meses, ou seja, somente eram impedidos de realizarem a doação de sangue aqueles homens que tiveram relação sexual com outro homem e um período inferior há 12 meses.
O que não pode ser deixado de mencionar é o fato de que esse julgamento premeditado em relação aos homens homossexuais sobreveio há muito tempo, não é um pensamento atual. E muito escandaliza o fato de os pensamentos arcaicos ainda serem o discurso da hodierna sociedade, onde essa classe da sociedade é vista como indiferente, onde há uma sobrecarga de preconceito e falta de igualdade e os direitos de tantas pessoas são acoplados, em virtude de normas e ideias desiguais e discriminatórios.
Felizmente essa não é a mentalidade de todos, graças ao Partido Social Brasileiro, que ano de 2016 protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543. Nesta Ação, o PSB trouxe como inconstitucionais os textos dispostos na Portaria do Ministério da Saúde nº 158/2016 e na Resolução de Diretrizes Colegiadas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária nº 34/2014, que versam a respeito desse impedimento sofrido pelos homens homossexuais.
No último dia 08/05/2020, essa ADI obteve o seu deferimento. O Supremo Tribunal Federal decidiu como inconstitucionais os ditames normativos. Mesmo que o lapso temporal seja considerado extenso, por 4 anos muitos homens homossexuais e defensores dos direitos igualitários conviveram com a ansiedade, até terem a ciência dessa importante decisão.
Em meio a tanta falta de igualdade e de humanidade por parte do poder público, aquelas pessoas que dependem da doação de sangue também deram um suspiro de alivio e tomaram mais uma dose de esperança. Aqueles 19 milhões de litros sangue que eram desperdiçados por conta do tratamento desumanos que esses homens sofriam, agora serão revestidos em doentes que precisam ser tratados e que precisam das suas vidas salvas. Os estoques também estarão repostos de uma forma que fará com que poucas pessoas passem necessidade de uma doação, não fará com que os hemocentros ficarão com “sobra” de tanto sangue, mas a perspectiva de reposição de bolsas crescerá de uma forma muito progressiva e levará muito mais esperança para todos os receptores dependentes desses sangues.
Trazendo à tona novamente a decisão do Supremo Tribunal Federal, vale ressalvar que essa decisão não afeta o Poder Legislativo, ou seja, aqueles que criam as leis, poderão versar sobre a matéria discutida na ADI, em leis posteriores a essa decisão. O que é a esperança de cada cidadão é que os responsáveis por criarem novas leis mantenham sempre o entendimento do STF e elaborem atos normativos que fazem alusão à inclusão social, o bem comum e lembrem, principalmente, que todos são iguais perante a lei, independente de raça, sexo, religião, etnia, tampouco por sua orientação sexual.
REFERÊNCIAS
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Data da conclusão/última revisão: 11/06/2020
Izadora Custódio Albuquerque e Wellington Gomes Miranda
Izadora Custódio Albuquerque: Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins (UniCatólica).
Wellington Gomes Miranda: Professor da Unicatólica do Tocantins, Mestre em Direitos Humanos e Prestação Jurisdicional pela ESMAT/UFT, especialista em Estado de Direito e Combate à Corrupção pela ESMAT/UFT, especialista em Direito do Trabalho pelo Instituto Processus Brasília/DF, analista jurídico do Ministério Público do Estado do Tocantins, Médico Veterinário e bacharel em Direito. (Prof. Orientador).
Código da publicação: 10309
Como citar o texto:
ALBUQUERQUE, Izadora Custódio; MIRANDA, Wellington Gomes..O impedimento da doação de sangue por homens homossexuais à luz do princípio da isonomia formal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 986. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direitos-humanos/10309/o-impedimento-doacao-sangue-homens-homossexuais-luz-principio-isonomia-formal. Acesso em 9 jul. 2020.
Importante:
As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.
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