Concurso público: estudo, solidão e rotina

"La soledad es el precio de la libertad."                      

                                                                                                                            CARMEN DÍEZ DE RIBERA

 

 

Pensemos em como Camus representa o mito de Sísifo, que fora condenado pelos deuses a realizar um trabalho vão e sem esperança por toda a eternidade: empurrar sem descanso uma enorme pedra até o alto de uma montanha, de onde rolaria encosta abaixo para que o absurdo herói mitológico descesse em seguida até o sopé e empurrasse novamente o rochedo até o alto, e assim indefinidamente, numa repetição monótona, solitária e interminável através dos tempos. Sísifo, um homem que amava a vida, parece castigado a passar a eternidade dedicado a uma tarefa inútil.

Mas, quando baixa a montanha uma vez alcançada a cima, tem tempo para reflexionar. Sua situação de imposta solidão e eterna rotina é absurda, “mas seu destino lhe pertence. Sua pedra é sua [...] e nesse momento sutil em que o homem se volta para sua vida passada, Sísifo, regressando a sua enorme pedra, nesse ligeiro giro, contempla essa sequência de ações sem nexo entre elas que se convertem em seu destino, criado por ele, combinado sob o olhar de sua memória e pronto selado pela morte”. (A. Camus)

Em nosso solitário e cotidiano labor de estudar podemos mover nossa “enorme pedra” (a do conhecimento) centrando-nos no que realmente importa e reforçando nossa sensação de controle sobre as circunstâncias. Se, como Camus afirma, “é preciso imaginar Sísifo feliz”, porque “o esforço em si, a própria luta para atingir ou avançar até as alturas basta para satisfazer o coração de um homem”, podemos eleger, sob a atenta mirada de nossa idiossincrática perspectiva, entre permanecer frustrados ao pé da montanha ou lutar para alcançar os píncaros e buscar nossos objetivos através de nossa decisão e esforço de seguir adiante, ainda quando a renúncia do presente, desses bons momentos tão sedutores, poucos, irrepetíveis e escassos, pareça não compensar nosso deliberado empenho.

Cada vez que meditamos um pouco sobre a tarefa de estudar (v.g., para concursos) nos damos conta que a solidão e o enfado gerados pela rotina de nossos estudos têm recebido muito menos atenção do que merecem. Um dos aspectos fundamentais desses sentimentos consiste no contraste entre as circunstâncias atuais e algumas outras possíveis circunstâncias mais agradáveis que se abrem caminho de maneira irresistível na imaginação de quem se dedica diariamente a este tipo de atividade (estudar).

 Não pretendemos dizer que essa forma de isolamento deliberado e o fastio provocado pela monotonia tenham necessariamente que ser uma carga insofrível; somente dizemos que, às vezes, o verdadeiro custo para a realização de alguns de nossos objetivos e sonhos é aquilo ao que há que suportar, renunciar e/ou superar para consegui-lo. Os propósitos construtivos e valiosos não se formam facilmente na mente de uma pessoa se esta vive uma vida de distrações e dissipações (uma mente erradia), porque neste caso seus pensamentos sempre estarão dirigidos ao prazer imediato e não ao distante logro.

Tão pouco há que temer ou evitar essas emoções caracteristicamente humanas. Em realidade, estamos convencidos que a capacidade para suportar uma vida mais ou menos solitária e rotineira deveria adquirir-se na infância. Entre tantas outras coisas, porque nada é mais importante que fazer com que nossa dita dependa unicamente de nós mesmos, conservando a própria independência e autonomia interior, apesar de e frente a todos e a tudo: uma pessoa capaz de estar só, de não enfadar-se por estar só e de não necessitar de ninguém porque não suporte a solidão. Poucas coisas nos fazem tão autônomos e livres, tão independentes dos manejos alheios, como a capacidade para não permitir que o tempo “pese como um íncubo” sobre nosso espírito quando não temos alguém ao lado e pendente de nós.

E essa virtude, se o é – e a nós nos parece que sim -, também há que inculcá-la e também necessita seu treinamento para esses largos momentos dedicados ao estudo. É uma maravilha ter coisas próprias para pensar, para entreter-se sozinho e aprender a desfrutar a estar consigo mesmo enquanto se pensa. A melhor educação também se compõe desses momentos em que o sujeito se educa a si mesmo e descobre a rica e prazenteira que é a vida interior, o bem que se está sem que nos perturbem organizando-nos os dias, impedindo-nos descobrir pouco a pouco o que realmente nos dá satisfação ou forçando-nos - e às vezes atropelando – em conseguir o que intimamente sonhamos. Como disse Heidegger em certa ocasião, “la auténtica soledad tiene la fuerza primigenia que no nos aísla, sino que arroja la existencia humana total en la extensa vecindad de todas las cosas”.

Da mesma forma, o tédio gerado ou motivado pela rotina dos estudos deve ser percebido com paciência, sensatez e sereno sossego, uma experiência inevitável que decorre da evidência de que os objetivos difíceis não se logram de forma sincrônica, no momento, senão mais bem de forma diacrônica, ao longo do tempo. Admitir que o compromisso que assumimos com nossos propósitos implica não somente dias plenos, senão também dias vazios, e que são precisamente esses dias que percebemos como vazios e enfadonhos uma das poucas garantias de nosso êxito futuro.

Do contrário, corremos o risco de que nosso tédio carregue consigo a completa perda de interesse no que sucede. E uma consequência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade psíquica se atenua. Em suas manifestações mais habituais e características, estar entediado implica uma redução radical da agudeza e constância da atenção. O nível de nossa energia, atividade, motivação e perseverança diminui, ao igual que nossa receptividade às coisas que realmente importam. Nossa consciência perde a capacidade de perceber diferenças e distinções, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. À medida que se expande e se apodera de nós, o enfado faz com que nossa capacidade de compreensão experimente uma diminuição progressiva no que se refere à percepção e retenção do que é relevante para nossos objetivos.

Dito de modo mais simples: dedicar-se a uma tarefa difícil significa ou consiste essencialmente, entre outras coisas, em considerar e priorizar nossos interesses, sonhos e objetivos como razões para atuar, com esforço, dedicação e  perseverança, ao serviço dos mesmos. Nenhum grande logro é possível sem trabalho persistente, tão absorvente e difícil que resta pouca energia para entregar-se à eventual angústia provocada pela solidão ou pela rotina.

Ademais, uma vida realizada tem que ser, em grande medida, uma vida sossegada, pois somente em um ambiente tranquilo pode viver a autêntica plenitude (B. Russell). Esta plenitude depende unicamente da postura mental e da atitude que adotemos ante a vida que escolhemos levar, através de todos seus fenômenos e imprevistos, e que com o tempo exercita a virtude do pensamento, se estende e perdura; quer dizer: não é tanto uma questão do que fazemos, senão de nossa atitude com relação ao que fazemos. Já sabem: da mesma forma que escolhemos nossos amigos, amantes e cônjuges, também escolhemos os fatos que queremos crer.

Deixemos de lado qualquer eventual, ansioso e agônico sentimento de preocupação com nossa solitária e rotineira atividade de estudantes e não confiemos em “ninguém – incluídos nós mesmos – que nos indique o muito que devemos confiar em seu juízo”(D. Kahneman). Possuímos uma alma que pode defender-se por si mesma;  pode fazer-se companhia, tem com que atacar e com que proteger-se, com que receber e com que dar. Não temamos, em nossa solidão, apodrecer-nos ou corromper-nos no tédio da rotina. A virtude se contenta consigo mesmo e a coisa mais importante do mundo é saber ser para si mesmo. (Montaigne) 

Portanto, não se trata de se podemos superar a solidão e o tédio que nossos estudos eventualmente nos provocam, senão simplesmente de “como” o faremos. E na medida em que queremos ser o que fazemos de nós mesmos através da forma em que elegemos atuar, “a partir de certo ponto, as diferenças meramente quantitativas passam a constituir câmbios qualitativos” (K. Marx).

Dado que para tudo há um momento e um lugar, qualquer forma de estudo comprometido e preparação significativa impõe, para o bem ou para o mal,  isolamento e rotina; o único que realmente importa é sentir-se satisfeitos e entusiasmados com o que somos e com o que fazemos, com as metas que fixamos, as eleições que fazemos e as ações que levamos a cabo.

Como disse o radical Baruch Spinoza, “el amor a uno mismo, o el estar satisfechos con nosotros mismos, es en verdad el bien mayor que podemos esperar”. Assim as coisas, cremos que o melhor a fazer é experimentar atuar como o solitário Salvador Dalí: “Cada mañana, al despertarme, experimento un placer supremo del que hasta hoy no me he dado del todo cuenta: el de ser Salvador Dalí, y me pregunto, maravillado, qué cosa maravillosa le reserva el día a Salvador Dalí.”  

REFERÊNCIAS

Capella, J. R. El aprendizaje del aprendizaje, Madrid: Editorial Trotta, 2009.

DiSalvo, D. What Makes your Brain Happy and why you Should do the Opposite, NY: Prometheus Books Publishers, 2011.

Droit, Roger-Pol. Vivre aujourd´hui avec Socrate, Épicure, Sénèque et tous les autres, Paris: Odile Jacob, 2010.

Duhot, J.J.  Épictète et la sagesse stoïcienne, Paris: Bayard Éditions, 1996.

Fernandez, A. e Fernandez, M. “Concurso público e o inimigo interior. Fracasso, vontade e resistência”, São Paulo: Editora Biblioteca24horas, 2013.

Kirsch, I. (Ed.) How expectancies shape experience. Washington DC: American Psychological Association, 1999.

Montaigne, Michel de. Los ensayos (según la edición de 1595 de Marie de Gournay). Barcelona: Acantilado, 2007.

Precht, R. D. Wer bin ich – und wenn ja, wie viele?, Franfurt: Wilhelm Goldmann Verlag, 2007.

Russell, B.  La conquista de la felicidad, Barcelona: Debolsillo, 2011.

Restak, R. Grandes cuestiones: Mente, Barcelona: Ariel, 2013.

Watzlawick, P. El arte de amargarse la vida, Barcelona: Herder, 2013.

 

 

 

Elaborado em

 

 

 

Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez

ATAHUALPA FERNANDEZ Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Pós-doutor (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.
MARLY FERNANDEZ Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica)/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.