Já faz algum tempo que os jornais brasileiros vêm noticiando um baixo índice de aprovação nos exames realizados pela Ordem dos Advogados do Brasil. Esse é um fenômeno que ocorre em todo o País.
Fenômeno similar já se dava nos concursos públicos para a seleção de magistrados e promotores nos quais, muitas vezes, sobravam vagas. Sempre havia candidatos de sobra, mas poucos preenchiam os requisitos mínimos de conhecimento necessários à aprovação. Isso ainda continua a ocorrer.
O anseio em ser aprovado nesses exames, contudo, gera um efeito nefasto. Ele consiste no fato de que grande parte das faculdades de Direito prepara profissionais com o objetivo exclusivo de passar em concursos. Aulas recheadas de macetes e avaliações objetivas, conhecidas como provas de marcar "X", são a regra. Essas aulas pretendem ser práticas, porque tratam de questões concretas, que serão perguntadas em concursos, mas trazem um problema. É que, embora o direito não possa ser desvinculado da prática, deve ser pensado em abstrato, hipoteticamente. As hipóteses pensadas servem de modelo para a solução de todos os casos, pois indicam uma lógica a ser seguida. É essa lógica que os estudantes de direito deixam de aprender, pois a faculdade opta por ministrar-lhes um ensino casuísta.
Os alunos, por sua vez, acostumados com a era da internet adoram o sistema. Apreendem rápido a marcar suas cruzes e gostam dessa rapidez. Qualquer trabalho é feito mediante a consulta a algum site com respostas prontas para quaisquer questões, isto quando textos inteiros não são simplesmente reproduzidos na integra, sem que sequer o estudante se dê o trabalho de citar a fonte. E assim segue a vida do estudante de direito, fingindo que estuda enquanto a faculdade finge que ensina. A profundidade do saber sendo substituída pela rapidez na resposta. O futuro cientista sendo substituído pelo cliente atual (que tem sempre razão).
Isto, porque a faculdade de Direito deixou o debate de lado, que não agrada pois pensar exige preparo, e o substituiu pelo produto tanto apreciado pelos seus consumidores, os alunos, que ditam as regras, escolhem os professores, privilegiando aqueles que se acomodam à inversão de valores, que reduz o professor a um mero fornecedor de serviços. É uma temeridade, pois Kant já dizia que o estudante não deve aprender pensamentos, deve aprender a pensar, não devendo ser transportado e sim guiado, se quisermos que futuramente seja capaz de se dirigir por seus próprios meios.
A surpresa ocorre por ocasião dos tão esperados exames. A maior parte tem menos de 50% de acertos nas provas de marcar "X". Na parte discursiva, quando existente, o resultado é ainda pior, porque ali se constata que pessoas formadas em direito não sabem nem mesmo utilizar corretamente o vernáculo. A descoberta é traumática, pois, até o fracasso, havia a ilusão de um conhecimento sólido. A aprovação, por sua vez, não significa necessariamente um atestado de capacidade. Alguns são aprovados por falhas inerentes a qualquer sistema de avaliação. Mesmo dentre os mais capazes, contudo, é possível identificar falhas graves de formação.
Essa realidade é bastante triste, eis que as faculdades vêm formando profissionais do direito, que não sabem utilizar o seu instrumento de trabalho: a palavra. Sabem algumas leis decoradas, mas não conseguem aplicá-las adequadamente, pois não compreendem a lógica do sistema. Sempre têm uma opinião acerca de qualquer tema relacionado ao direito. Por incrível que pareça, contudo, raras vezes essa opinião é jurídica. É uma opinião leiga. A falta de conhecimento dos métodos de interpretação as torna juridicamente equivocadas e desvinculadas do sistema jurídico e da realidade social.
A grande ironia é que os alunos, por se prepararem exclusivamente para um concurso, não compreendem a lógica do sistema e, por isso, falham na meta almejada. Não passam nos exames, porque não aprenderam a pensar o Direito. Sabem resolver os casos que lhes foram ensinados, mas uma pequena alteração na lei ou na formulação da questão acaba por invalidar o conhecimento aprendido.
Mais perturbador, no entanto, é que a deficiência no ensino jurídico não afeta somente os profissionais que trabalham com o direito. Afeta toda a sociedade. A sociedade brasileira tem os seus rumos conduzidos em grande parte por pessoas com formação em direito. Para que se verifique a veracidade da afirmação, basta ter em conta que o Ministério Público e o Poder Judiciário têm os seus quadros formados exclusivamente por profissionais do direito. Grande parte dos membros do poder legislativo também tem formação jurídica, e mesmo os detentores de cargos no executivo não raro são formados em direito.
A mudança dessa mentalidade é imperativa. O curso de Direito não pode ser encarado como um "cursinho pré-vestibular". O Direito é composto por leis, mas também é ciência e, porque não dizer, arte. Direito é também vida. É um "organismo vivo" e, por isso, não pode ser compreendido em pedaços. Deve ser visto em movimento e isso só pode ser feito com uma formação adequada. É o que se espera. Um compromisso dos alunos, professores e instituições de ensino para que acabem com o pacto da mediocridade. Alunos não são clientes. Têm direito a um ensino adequado, mas isso não significa que tenham o direito de formular a política de ensino. Esta é de competência das instituições de ensino e professores e deve levar em conta os anseios da sociedade.
Marcelo Harger
Advogado em Joinville (SC), mestre em Direito Administrativo, doutorando em Direito do Estado, membro do Conselho Estadual de Contribuintes e professor universitário.Website: www.hargeradvogados.com.br
Código da publicação: 871
Como citar o texto:
HARGER, Marcelo..O ensino jurídico na era da internet. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 151. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/exame-da-ordem-e-concursos/871/o-ensino-juridico-era-internet. Acesso em 7 nov. 2005.
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