Deve ser por causa da idade, mas a mim me parece que toda e qualquer proposta sobre educação universitária deveria servir, antes de tudo, para educar. Em determinadas ocasiões, entretanto, parece que não é bem assim, que sua função tem a ver com outras coisas, políticas sobretudo, bem distantes da questão básica: a de proporcionar aos alunos universitários umas ferramentas para que possam converter-se em cidadãos (e profissionais) virtuosos e capazes. Por desgraça, isso às vezes se confunde com o objetivo de dar-lhes um título - mas não uns conhecimentos - aptos a garantir-lhes sem demora a sinecura de um emprego qualquer.
Sem menosprezar o papel útil, em termos de utilidade imediata, dos cursos universitários e das carreiras profissionais, tenho a sensação - compartida, por certo, com muitas pessoas - de que educar é outra coisa completamente distinta. E se entendemos a educação num sentido mais próximo de como a entendia Aristóteles nada menos que 24 séculos atrás, nem as estúpidas distinções entre teoria e prática, nem as lutas acerca de quem dá a última palavra sobre a capacidade e aptidão profissional servem de muita coisa. Mas o que pior põe as coisas àqueles que intentam educar e aos que devem ser educados é que os responsáveis por esse processo insistem em mudar constantemente os critérios que configuram sua roupagem.
Neste particular, um tema que desponta com certa freqüência é o da natureza de alguns discursos institucionais que, ante os alarmantes índices de reprovação no Exame de Ordem elaborado pelas seccionais da OAB, atribuem as razões e as causas desse fenômeno à “má qualidade do ensino jurídico”. Não custa muito esforço concluir que inúmeros são os equívocos, as limitações e os preconceitos pressupostos nessa maneira simplista e reducionista de apreciar o problema. Ninguém põe em dúvida que a cultura jurídica passa por um momento deveras delicado e que qualquer discussão acerca do ensino jurídico deveria começar por uma reavaliação dos atuais modelos teóricos e metodológicos de ensino, a fim que se possa fugir das armadilhas ideológicas que configuram o panorama educacional em vigor.
Mas não basta, somente, a preocupação teórico-metodológica se não se insiste, antes de tudo, em um verdadeiro trabalho de conscientização a partir das próprias instituições envolvidas na formação dos profissionais do direito (aqui incluída a própria OAB), no sentido de que devem ( o que pressupõe que podem) tornar efetivo o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua (real) qualificação para o trabalho” (art. 205, da Constituição da República).
Disso resulta que qualquer proposta honrada de mudança na direção de novos modelos jurídico-educativos - e que pretenda propugnar de verdade sua causa (quer dizer, honrada também na ação) -, somente pode ser legitimamente empreendida enquanto prática coletiva, consensual e solidária que implique o comprometimento e a colaboração de todas as partes envolvidas no processo ensino-aprendizagem, isto é, dentro de um contexto integral de responsabilidades compartidas.
Não parece razoável pensar em uma mudança unilateral e arbitrária do atual sistema de capacitação profissional (centrada, por exemplo, no Exame de Ordem), sem que as instituições envolvidas nesse processo, diante de um sistema manifestamente esclerosado, se proponham a fazer uso de uma preparação integral, multidisciplinar e significativa de conhecimentos, bem como formativa em relação à capacidade intelectual e crítica dos estudantes frente ao Direito.
Daí que, antes de formular conclusões e acusações por demais simplistas e óbvias acerca da “má qualidade do ensino jurídico”, a melhor e legítima alternativa seria a de, assumindo a carga social de uma ingente, consensual e eqüitativa cooperação institucional, tomar-se em sério a excelência do ensino e corrigir as já conhecidas distorções dos cursos jurídicos, ao invés de hipostasiar, por exemplo, a solução do problema a um surrealista aumento do nível de dificuldade do Exame de Ordem, como pretenso critério da seriedade que representa ser membro de tão prestigiosa instituição.
Afinal, para uma instituição que sempre lutou pelos mais nobres valores republicano-democráricos, esse tipo de proposta deveria estar (e seguramente está) incluído no próprio modelo político de atuação institucional, com a independência, a coragem e a responsabilidade que os compromissos vitais sempre implicam. Em resumo, como diria Rawls, do que “deve ser” próprio da atividade de uma instituição justa. Depois, o ato de educar não é apenas uma questão instrumental, mas uma das virtudes mais importantes das instituições sociais, do fundamento da inviolabilidade da pessoa e da condição de possibilidade para a formação das bases sociais aptas a viabilizar a existência autônoma, livre e igualitária da cidadania.
Atahualpa Fernandez
Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da Unama/PA e Cesupa/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado) ; Advogado.Código da publicação: 957
Como citar o texto:
FERNANDEZ, Atahualpa..Exame de ordem. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 157. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/exame-da-ordem-e-concursos/957/exame-ordem. Acesso em 20 dez. 2005.
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