Resumo:
Em seus livros, Friedrich Nietzsche demonstra-se fundamentalmente contrário à democracia moderna, destacando que esta representa a supervalorização da igualdade e, neste sentido, impede o crescimento de grandes homens que promovam o progresso da cultura e da humanidade. Através da categoria de novos filósofos, Nietzsche propõe uma forma de superar o movimento democrático de modo que a cultura seja reconstruída sob uma nova roupagem que não está centrada nos valores dos escravos (povo), mas nos valores dos homens excepcionais. Conclui-se, assim, que, em Nietzsche, são os governantes que devem se proteger dos governados, e não o inverso tal qual preconizava Karl Marx.
Palavras-chave: Democracia, Modernidade, Igualdade, Cultura
Abstract:
In his books, Friedrich Nietzsche is basically contrary to the modern democracy, detaching that it represents the supervaluation of the equality and, in this direction, it hinders the growth of the great men who promote the progress of the culture and of the humanity. Through the category of new philosophers, Nietzsche proposes a form to surpass the democratic movement so as to the culture be reconstructed by a new way that is not centered in the values of the slaves (crowd), but in the values of the exceptional men. It is concluded, thus, that in Nietzsche are the governing that must be protected from the governed, and not the inverse such as defended Karl Marx.
Keywords: Democracy, Modernity, Equality, Culture
1. Introdução
Friedrich Nietzsche, ao realizar uma reflexão acerca da democracia e seus elementos essenciais, toma uma posição claramente contrária a ela ao identificar que em todas as ideologias democráticas há algo que detesta: a supervalorização da igualdade. Essa supervalorização da igualdade, segundo Nietzsche, está intimamente relacionada à influência do cristianismo nos movimentos democráticos modernos. Para o autor, o “cristianismo é um levante de tudo o que rasteja no chão contra Aquilo que tem altura: o Evangelho dos ‘baixos’ torna baixo” (NIETZSCHE, 1983e, p. 353)
Nietzsche (2006) repudia esta valorização da igualdade retomando os gregos que, a seu ver, eram políticos por natureza. Parte-se do pressuposto de que na era moderna não são os poetas e os grandes homens que produzem as representações do mundo e da vida, mas sim os escravos rudes e grosseiros, malfadados à sua eterna condição. Ou seja, a doutrina da igualdade é uma doutrina que vem de baixo; é algo do povo inferior e não dos aristocratas no sentido aristotélico do termo.
Neste artigo, de cunho descritivo através de uma abordagem qualitativa, será realizada uma reflexão acerca das críticas do filósofo Nietzsche a respeito da democracia partindo-se da premissa de que esta leva ao empobrecimento da cultura e à indistinção entre governantes e governados.
2. Democracia e progresso da cultura
Segundo Nietzsche, todas as ideologias democráticas (socialistas, liberais, etc) têm um ponto em comum: são fundadas no cristianismo, na medida em que, sendo humanistas, pregam a igualdade dos homens. Enquanto o cristianismo ressalta que todos são iguais perante Deus, os modernos somente substituem Deus pelo Estado. Porém, permanece o sentimento de igualdade que se originou no cristianismo e se irradiou por todas as doutrinas democráticas.
Em verdade, a modernidade traz consigo a condição de escravo a todos os homens. Para Nietzsche,
Podemos conseqüentemente estabelecer um acordo para adiantar esta verdade cruel de entender: a escravidão pertence à essência de uma civilização [...] Ela é o abutre que corrói o fígado do pioneiro prometeico da civilização. A miséria dos homens que vivem penosamente precisa crescer ainda mais [...] Eis aí de onde promana este ressentimento que sustentou em todos os tempos os comunistas e os socialistas, assim como seu pálido produto, a branca raça dos "liberais": a oposição às artes, mas também a oposição à Antigüidade Clássica. (idem, 2006)
A ênfase na dignidade do trabalho, deste modo, é uma forma do escravo dignificar a sua própria condição, pois já que o indivíduo não pode deixar de ser escravo, ele dignifica e confere um valor a tudo que faz enquanto tal. Na verdade, “fantasmas como a dignidade do homem e a dignidade do trabalho constituem os produtos indigentes da escravaria que se dissimula para si mesma” (idem). Ou seja:
Todos se matam de trabalhar para perpetuar miseravelmente uma vida de miséria e são constrangidos por esta necessidade terrífica de um trabalho extenuante, que depois o homem, ou mais exatamente o intelecto humano, enganado pela "vontade", olha por um momento admirado, como um objeto digno de respeito (idem)
Assim, o sentimento do escravo com relação ao senhor é o da inveja, e esta inveja enseja a vingança e revolução. Em Assim Falou Zaratrusta, por exemplo, Zaratrusta afirma em relação às tarântulas: “É assim, ó pregadores da igualdade, que o delírio tirânico da impotência grita em vós por ‘igualdade’: vossos mais secretos apetites de tiranos se camuflam assim em palavras de virtude!” (idem, 1983g, p. 237)
Para os gregos trabalhar era sinônimo de vergonha; para os modernos, é sinônimo de dignidade. Entretanto, para o surgimento dos grandes homens, é necessário que uns trabalhem e outros não; uns tenham tempo para pensar e outros não; uns tenham ócio e outros não. Somente assim, segundo o filósofo alemão, será possível o progresso da humanidade. Ou seja, “são e permanecem domínios de trabalho para cabeças pequenas, e outras cabeças que não as pequenas não deveriam estar a serviço nessas oficinas” (idem, 1983d, p. 177)
Deve-se ter em mente que a escravidão é a essência da civilização; logo, sempre houve senhor e escravo, em contraposição ao que prega o ideal de igualdade democrática. Na verdade - e Nietzsche frisa muito bem isso - as relações de poder são constitutivas e indissociadas da vida humana. Foucault, comentando a concepção de Nietzsche sobre conhecimento, afirma que
O conhecimento, no fundo, não faz parte da natureza humana. É a luta, o combate, o resultado do combate e conseqüentemente o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento. O conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, assim como ele não é natural, é contra-natura” (FOUCAULT, 1999, p. 17)
Tendo em vista esta concepção, Nietzsche afirma que a cultura moderna é vulgar, superficial e pobre, pois as representações, como vimos, advêm dos escravos. A era moderna iguala senhor e escravo sob a idéia de todos são iguais perante a lei e, em virtude desta equalização, não há pessoas com tempo para pensar em coisas maiores e amplas sobre e para a humanidade.
Neste ponto, dialoga-se diretamente com Rousseau. Segundo Nietzsche, quando Rousseau defende o bom selvagem, ele nega as grandes obras da civilização. Rousseau seria negligente, pois são os grandes homens que efetivamente revolucionam e fazem a história, e não as massas. A escravidão, desta forma, é a destruição da possibilidade que os homens têm de construir os grandes homens. O líder, por exemplo, não pode ficar restrito ao trabalho material, pois só se pode saber e criar se tiver disponibilidade de tempo. Mais especificamente, sem a escravidão não há cultura, civilização ou homens grandes. O homem tem potencialidades, mas a modernidade frustra o seu desenvolvimento. Segundo Nietzsche,
Há fantasistas políticos e sociais que com fogo e eloqüência exortam a uma subversão de todas as ordens, na crença de que logo em seguida o mais soberbo templo da bela humanidade como que se erigirá por si mesmo. Nesses sonhos perigosos ecoa ainda a superstição de Rousseau, que acredita em uma bondade miraculosa da natureza humana, originária, mas como que soterrada, e atribui às instituições da civilização, na sociedade, no Estado, na educação, toda a culpa desse soterramento. Infelizmente se sabe, por experiências históricas, que toda subversão dessa espécie ressuscita as energias mais selvagens como os terrores e desmedidas há mais tempo sepultados [..] que, portanto, uma subversão bem pode ser uma fonte de força em uma humanidade debilitada, mas nunca um ordenador, arquiteto, artista, consumador da natureza humana (idem, 1983a, p. 112)
O Estado Moderno, por sua vez, é apoderado pelos interesses egoístas de uma aristocracia do dinheiro, que não tem qualquer interesse ou compromisso civilizatório. Ocorreu a desvalorização da política tal qual os gregos a viam – como uma atividade nobre –, pois em virtude da identificação entre governantes e governados o candidato deve ser cada vez mais popular. Portanto, o Estado perde seu atributo de instrumento civilizatório para ser um instrumento popular no qual os fracos almejam ser fortes algum dia.
3. A relação entre governantes e governados
A era moderna, em decorrência da ascensão irredutível dos movimentos democráticos, despolitizou as relações de poder e a própria política. O problema é que, historicamente, foi a partir de relações políticas que se construiu a civilização, enfatizando a separação entre governantes e governados. Para Nietzsche, o movimento democrático confunde estes dois elementos separados historicamente.
O governo sempre foi superior ao povo, dando-lhes as direções a seguir. Se o governo se parece e corresponde aos anseios do povo, ele perde a sua capacidade de liderança e de guia do processo civilizatório. Mais precisamente, o governo não deve e não pode refletir a vontade do povo, sob pena de se tornar uma instância inferior e submetida a este. Esta idéia de Nietzsche conflita com todos os teóricos democráticos, principalmente Rousseau (para este, o governo deve ser o próprio povo através da vontade geral) e Marx (para este, o governo deve ser o proletário, que levará a uma sociedade justa a qual contemple todos). Para Nietzsche, o governo que é governado pelos governados deixa de criar condições para o surgimento dos grandes homens, prejudicando a cultura pois, como vimos, a cultura da massa é medíocre e sufoca o aparecimento dos grandes homens. Segundo Nietzsche, “somente a democracia tira proveito disso: pois todos os partidos são agora obrigados a lisonjear o ‘povo’ e a conceder-lhe facilidades e liberdades de toda espécie, com que ele acaba por tornar-se onipotente”. (idem, p. 149)
Deste modo, a inversão entre Estado e povo é anti-histórica porque a política sempre foi um instrumento da cultura. Mais ainda: o auto-governo do povo acarretará a destruição do Estado, pois este torna-se algo supérfluo. A democracia, então, seria a forma histórica de decadência do Estado, constituindo-se como uma praga que se alastra e destrói os muros da cultura. O que destrói o Estado, então, é a dissolução da hierarquia e da desigualdade, liquidando a possibilidade de construção de uma nova cultura.
Em Nietzsche and Political Thought observa-se que
Cultura e Estado ¾ não nos devemos enganar a respeito disso ¾ são coisas antagônicas. (...) Todas as grandes épocas da cultura foram épocas de declínio político: o que é culturalmente grande foi sempre não-político e mesmo anti-político. (...) (WARREN, 1988, p. 69)
O próprio Nietzsche, corroborando com esta tese, afirma que:
O desprezo, o declínio e a morte do Estado, o desencadeamento da pessoa privada (tomo o cuidado de não dizer: o individuo), são a conseqüência do conceito democrático de Estado; nisso consiste sua missão. (NIETZSCHE, 1983b, p. 114-115)
A democracia, portanto, se opõe ao sentido histórico, pois adota uma religião da novidade, negativizando tudo o que foi construído de forma paulatina no passado. Ela é partidária da barbárie e da revolução, esquecendo o peso dos valores construídos historicamente, de modo a torná-los meras abstrações facilmente revogáveis.
4. Uma tipologia da democracia
Como vimos, para Nietzsche a democracia é um movimento irreversível dentro da Europa que se apresenta em diferentes versões. A noção de democracia abrange, deste modo, o aspecto sociológico, político, histórico e cultural. E, “mesmo nas instituições políticas e sociais, encontramos uma expressão cada vez mais visível [...]: o movimento democrático é o herdeiro do cristão” (idem, 1983c, p. 281)
Pode-se dizer que a democracia mantém uma relação íntima com os valores cristãos. Segundo Nietzsche, a religião desempenha um papel primordial para a manutenção do Estado, que é o papel de apaziguamento. Assim
a religião sossega a mente do indivíduo em tempos de perda, de privação, de pavor, de desconfiança, portanto, quando o governo se sente sem condições para fazer diretamente algo para mitigar os sofrimentos de alma do homem privado: e mesmo diante de males gerais, inevitáveis e, de imediato, inelutáveis (fomes, crises monetárias, guerras), a religião assegura um comportamento pacato, paciente, confiante da multidão (idem, 1983a, p. 113)
Por outro lado, a própria divisão das coisas entre bem e mal influenciou o movimento democrático, criando um cristianismo laiscizado. Em Nietzsche and Political Thought, observa-se que
Com a queda da cultura moral cristã, contudo, o Estado foi deixado com as exigências de sentido, mas sem possuir, ainda que paroquialmente, o tipo de cultura que tinha uma vez organizado estas exigências e fornecido as experiências de sentido. A crise de legitimidade da visão-de-mundo moral cristã tem uma dimensão política, na medida em que o Estado perde os seus meios religiosos de legitimação. Na medida em que a perda da cultura moral cristã ocorre sem a formação de um eu soberano, cria-se a oportunidade para que o Estado forneça sua própria legitimação manipulando as auto-identidades. Dessa maneira, o Estado assume o papel deixado vago pela Igreja. Unicamente no período moderno, então, torna-se possível para o Estado explorar diretamente as necessidades reflexivas, provendo uma identidade substitutiva para o eu em relação à comunidade. (WARREN, 1988, p. 66)
Neste sentido,
O veneno da doutrina “direitos iguais para todos” – foi o cristianismo que mais fundamentalmente disseminou; a todo sentimento de veneração e de distância entre homem e homem, isto é, ao pressuposto de toda elevação, de todo crescimento de civilização, o cristianismo fez uma guerra de morte, a partir dos mais secretos escaninhos dos instintos ruins – a partir do ressentiment das massas ele forjou para si a principal arma que tem contra nós, contra tudo que é nobre, alegre, magnânimo sobre a terra, contra nossa felicidade na terrra (NIETZSCHE, 1983e, p. 353)
Neste seio democrático, é impossível não lidar com as massas para efeitos de preenchimento de funções políticas. Os partidos políticos, assim, tentam cooptar e convencer as massas, no intuito de obter os seus votos. O preenchimento das funções políticas passa pela consulta às massas, e isso terá fortes conseqüências. Na medida em que precisam dos votos, os partidos devem aparentar capazes de trazer o bem-estar, cujo conteúdo é ditado pelo povo. Logo, os políticos, para serem eleitos, devem absorver o que a massa define sobre bem-estar, se identificando com os ideais do populacho. Em conseqüência disto, o ter de lidar com as massas vai confundindo cada vez mais governantes e os governados
O povo passa, então, a ser a fonte de legitimação do poder político porque, para ser adorado, o líder deve se identificar com o povo realizando o que Nietzsche chama de pequena política. Mais propriamente, a cultura encontra-se em perigo pois os valores são ditados pela massa, que é essencialmente medíocre. Nietzsche vai mais além em sua crítica ao dizer que, se é preciso preservar os valores mais elevados da cultura, deve-se sair da política, já que esta se tornou uma coisa de medíocres. O próprio sufrágio universal não é um direito, mas sim uma concessão, porque não foi conquistado tal qual o movimento democrático narra.
Mesmo assim, a própria democracia não acontece na prática. Ela perde o seu sentido próprio na medida em que a vontade do povo não é efetivamente expressa, seja porque a do líder influencia, seja porque o sufrágio não é unânime. Assim, a democracia, enquanto auto-governo do povo e para o povo, não existe.
5. Os novos filósofos e o rebanho
Em virtude desta condição, é preciso que os homens que queiram se contrapor à democracia sejam muito fortes e desejosos pois, no mundo moderno, impulsionou-se a feminização e a fragilização dos indivíduos. Este mundo é uma doença que vai tomando o homem e fragilizando-o de modo a desprovê-lo de qualidades. Para evitar isso, os novos filósofos devem apoiar a sua moral na vida, e não na morte, de modo a transvalorar a dicotomia entre bem e mal. Para o autor,
Nós que somos de outra crença, - nós, para quem o movimento democrático não é meramente uma forma de degradação da organização política, mas uma forma de degradação, ou seja, de apequenamento do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor: para onde temos nós de apontar nossas esperanças? – Para os novos filósofos, não resta escolha, para os espíritos fortes e originais o bastante para dar os primeiros impulsos a estimativas de valor opostos e para transvalorar, inverter “valores eternos” (idem, 1983c, p. 282)
Os novos filósofos, segundo Nietzsche, devem ter coragem e audácia pra ir contra o rebanho, representado pela mediocrização da cultura. O homem é um ser individual e pleno de capacidades e, quando ele se desenvolve no rebanho, este passa a aniquilar a potencialidade criadora da vida que o indivíduo tem. O futuro do homem deve sempre ser produto da sua vontade, e não da vontade do rebanho; assim, a coragem é um elemento essencial para enfrentá-lo, pois o que lhe é diferente é visto com maus olhos. Segundo o filósofo:
Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de inicio a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão (idem, 1998, p. 29)
E completa:
imaginemos “o inimigo” tal como concebe o homem de ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu o “inimigo mau”, o “mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um “bom” – ele mesmo! (idem, p. 31)
A própria forma através da qual a moral se constitui na era moderna está vinculada à concepção de rebanho. Nietzsche afirma que “quem olhou em profundidade para dentro do mundo, adivinha bem que sabedoria há em que os homens sejam superficiais. É seu instinto de conservação que os ensina a serem fugazes, leves e falsos”. (idem, 1983c, p. 277). Neste sentido, a moral dos nobres estava aliada à diferenciação entre o “bom” e o “ruim”, entre o grande homem e o desprezível. Na modernidade, quando a relação entre senhor e escravo se dilui, o “bom” não mais se contrapõe ao “ruim”, mas ao “mau”, e a própria concepção do que é “bom” também muda. Os escravos tornam o “bom” dos nobres em algo “mau”, em algo reprovável; inversamente, transformam o que era visto como desprezível e medíocre em algo “bom”, contribuindo para o empobrecimento da cultura e dos valores. Mais especificamente,
O olhar do escravo é desfavorável às virtudes dos poderosos: ele tem skepsis e desconfiança, tem refinamento de desconfiança contra todo o “bom” que é honrado ali – gostaria de persuadir-se de que, ali, a própria felicidade não é genuína. Inversamente, são postas em relevo e banhadas de luz as propriedades que servem para facilitar a existência dos que sofrem: aqui fica em lugar de honra a compaixão, a complacente mão pronta para ajudar, o coração caloroso, a paciência, a diligencia, a humildade, a amabilidade - : pois estas são aqui as propriedades mais úteis e quase os únicos meios para tolerar a pressão da existência. (idem, 1983c, p. 292-293)
Em outras palavras,
Está claro, como sobre a palma da mão, que as designações morais de valor, por toda parte, foram aplicadas primeiramente a homens e somente mais tarde, por derivações, a ações: por isso é um grave equivoco quando os historiadores da moral partem de perguntas como: “Por que as ações compassivas foram louvadas”. O homem de espécie nobre se sente como determinante de valor, não tem necessidade de ser declarado bom (idem, p. 291-292)
6. Conclusões
Na verdade, o homem moderno só reconhece a figura do espelho dele, que seja igual a ele e, em decorrência disto, o rebanho sempre joga “pedras” nos diferentes. O próprio grande homem, tendo em vista a força irreversível da democracia, pode ser engolido por este movimento democrático a qualquer momento. O rebanho é tirânico e, se a sua tirania for eficiente, a possibilidade da construção de grandes homens se reduz na mesma proporção da coragem de se contrapor ao mundo moderno. O homem especial, o excepcional, não só se vê perseguido como também é forçado a introjetar algum tipo de culpa, condenando a si mesmo por não ser medíocre, por não ter uma alma de rebanho. Deste modo,
O instinto do rebanho [...] – uma potência que agora se tornou soberana, - é algo fundamentalmente diferente do instinto de uma sociedade aristocrática: e tudo depende do valor das unidades que a soma tem para significar [...] Nossa sociologia não conhece nenhum outro instinto senão o do rebanho, isto é, dos zeros somados, - onde cada zero tem “direitos iguais”, onde é virtuoso ser zero (idem, 1983f, p. 382)
Havendo uma linguagem do forte, há por sua vez uma do fraco, uma linguagem do rebanho. É dela que se deve precaver. Há nela um evidente discurso do ressentimento, que atribui todas as desgraças do mundo e da sua vida aos outros. Incapaz de assumir a sua responsabilidade pessoal (atributo apenas dos fortes), o medíocre transfere a causa dos seus inúmeros fracassos e decepções a tudo o que está além e acima dele.
O sentimento do rebanho - expressão coletiva do medíocre e do baixo – é profundamente influenciado pelo pensamento cristão. Para Nietzsche, o“ cristianismo foi feito para uma outra espécie de escravos antigos, para os fracos de vontade e de razão, portanto para uma grande massa dos escravos” (idem, 1983d, p. 185). Mais precisamente, “infelicidade e culpa – essas duas coisas foram postas pelo cristianismo na mesma balança” (idem, p. 167); portanto, o rebanho volta-se contra o que se destaca acusando-o de não ter fracassado e sucumbido na vida como os demais.
Segundo Marx & Engels, “o poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” (MARX & ENGELS, 2002, p. 12). Observa-se que Nietzsche inverte o primado marxista de que as idéias dominantes são as da classe dominante. Para Nietzsche, ao contrário, são os dominadores que têm que se precaver das perigosas e ameaçadoras idéias dos dominados, invejosas e pervertidas que foram exatamente por terem sido de alguma forma oprimidos.
7. Bibliografia
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau editora, 1999
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. O Estado entre os gregos. Disponível em: <http://antivalor.vilabol.uol.com.br/ textos/outros/nietzsche.htm>. Acesso em: 12 mar. 2006. [trad.: Noéli Correia de Melo Sobrinho]
_____________________. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 [trad.: Paulo César de Souza]
_____________________. Humano, demasiado humano. In: LEBRUN, Gérard. Os Pensadores – Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural, 1983a [trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho]
_____________________. Para além do bem e do mal. In: LEBRUN, Gérard. Os Pensadores – Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural, 1983c [trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho]
_____________________. Aurora. In: LEBRUN, Gérard. Os Pensadores – Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural, 1983d [trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho]
_____________________. O anticristo. In: LEBRUN, Gérard. Os Pensadores – Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural, 1983e [trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho]
_____________________. Sobre o niilismo e o eterno retorno. In: LEBRUN, Gérard. Os Pensadores – Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural, 1983f [trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho]
_____________________. Assim falou Zaratrusta. In: LEBRUN, Gérard. Os Pensadores – Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural, 1983g [trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho]
WARREN, Mark. Nietzsche and political thought. Massachusetts: The MIT Press, 1988 [trad.: Noéli Correia de Melo Sobrinho]
Felipe Dutra Asensi
Pesquisador discente em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em Direito pela Universidade Federal Fluminense, no Brasil. Trabalha com pesquisas no âmbito do Direito Constitucional, teoria política e instituições democráticas.Código da publicação: 1118
Como citar o texto:
ASENSI, Felipe Dutra..Democracia e igualdade: assim não falou Nietzsche. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 170. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/1118/democracia-igualdade-assim-nao-falou-nietzsche. Acesso em 20 mar. 2006.
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