Correlação necessária entre ato normativo e ato interpretativo
- INTRODUÇÃO
A contragosto de Konrad Hesse[2], Ferdinand Lassalle[3] já asseverava a implicância dos fatores reais de poder na construção da verdadeira constituição de um povo. Afirmou este último, em sua obra “O que é uma Constituição”, que palavras lançadas sobre o papel não são mais do que “papel e tinta sem valor”. Ou seja, a constituição escrita, para que seja efetiva, deve guardar certa relação com os fatores reais de poder. E, no lapso existente entre a norma posta e os fatores reais de poder (situação normada), situa-se a figura do intérprete normativo.
Como se percebe, existe uma pertinência lógica entre ato normativo e ato interpretativo. Ambos se complementam objetivando operacionalizar e efetivar os anseios do legislador.
Nessa medida, aquilo que é exarado na Constituição ou qualquer outro corpo normativo, para que possa ter efetividade e interferir no mundo dos fatos, vislumbrado por Miguel Reale[4] na sua teoria tridimensional do Direito, passa inequivocamente pela interpretação humana, pelo entendimento que o interprete faz do texto, trazendo então para ele significados e encargos axiológicos. Daí o fato de se afirmar que ato normativo e ato interpretativo são inseparáveis.
- ATO NORMATIVO E ATO INTERPRETATIVO
Por mais clara que seja um ato normativo, ele requer sempre uma interpretação. A clareza de um texto legal é coisa relativa. Uma mesma disposição pode ser clara em sua aplicação aos casos mais imediatos e pode ser duvidosa quando se a aplica a outras relações que nela possam enquadrar e às quais não se refere diretamente. Daí a necessidade da interpretação de todas as normas.
É a hermenêutica que contém regras bem ordenadas que fixam os critérios e princípios que deverão nortear a interpretação. A hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar, mas não esgota o campo da interpretação jurídica, por ser apenas um instrumento para sua realização. O hermeneuta, portanto, pratica uma arte guiada pela ciência, porém jamais substituída por ela, que, ao elaborar regras, traçar diretrizes, condicionar o esforço, não dispensa o coeficiente pessoal, o valor subjetivo, nem reduz a uma máquina o investigador.
A questão é que o ordenamento jurídico, em que pese estar, via de regra, positivado em documento solene, é um processo em constante movimento e dinamismo. Sendo assim, o intérprete, ao tentar encaixar a norma na situação normada, não deve restringir-se aos, já superados, métodos de interpretação ligados à estrita literalidade da lei. Ao contrário, deve adotar métodos mais amplos, que permite uma maior adequação entre o modelo jurídico em voga e o mundo cada vez mais dinâmico.
Do escólio doutrinário de Maria Helena Diniz pode-se retirar a seguinte lição:
“Interpretar é descobrir o sentido e alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos. (...) o magistrado a todo instante, ao aplicar a norma ao caso sub judice, a interpreta, pesquisando o seu significado. Isto é assim porque a letra da norma permanece, mas seu sentido se adapta a mudanças que a evolução e o progresso operam, na vida social. Interpretar é, portanto, explicar, esclarecer, dar o verdadeiro significado do vocábulo, extrair da norma tudo o que nela se contém, revelando seu sentido apropriado para a vida real e conducente a uma decisão”[5].
Percebe-se então, que o Direito não é uma mera abstração. Ele deve ser entendido numa perspectiva pragmática, como elemento social, diuturnamente vivenciado pela sociedade.
Nessa linha de intelecção, forçoso declarar que a atividade interpretativa jamais é imparcial. Corroborando com isso, a teoria do fato social, aduzida por Émile Durkheim[6] não deixa margem a qualquer especulação de que exista uma visão imparcial a partir de qualquer ser humano, assunto tratado de maneira transversa pelo professor Miranda Rosa[7] ao confrontar a eficácia da norma e seu efeito social.
Desse modo, o intérprete, como qualquer outro ser humano, ao debruçar na sua missão interpretativa, não consegue enxergar as normas sob uma ótica estritamente livre, ele as vê sob o enfoque de seus valores, de sua formação acadêmica e, sobretudo, de suas condições pessoais. Nesse caso, a sua visão jurídica sempre estará limitada aos seus conceitos pré-estabelecidos.
Disso se conclui, que não existe uma interpretação que sobressai. Uma interpretação que sobrepuja as demais. Embora merecer destaque o fato de que as interpretações devem obedecer a critérios mínimos de racionalidade. Isso para evitar leituras absurdas e abusivas.
- CONCLUSÃO
A variedade de interpretações deve-se ao fato de que o sentido incorporado na norma é mais rico do que tudo que seu criador pensou, porque ela, pelo seu dinamismo, é suscetível de adaptação. O advento de novos fenômenos sociais, técnicos, culturais, morais, econômicos leva o intérprete a apreciá-los, juridicamente, à luz das normas já existentes.
Doutra banda, ao interpretar a norma, o intérprete procura compreendê-la em atenção aos seus fins sociais e aos valores que pretende garantir. O ato interpretativo não se resume, portanto, em simples operação mental, reduzida a meras inferências lógicas a partir das normas, pois o intérprete deve levar em conta o coeficiente axiológico e social nela contido, baseado no momento histórico em que está vivendo.
A esse respeito, Miguel Reale, certa feita, informou que toda interpretação jurídica é de natureza teleológica fundada na consistência valorativa do direito, operando-se numa estrutura de significações e não isoladamente, de modo que cada preceito normativo significa algo situado no todo do ordenamento jurídico. A norma, portanto, deverá ser interpretada no conjunto da ordenação jurídica, implicando a apreciação dos fatos e valores que lhe deram origem, mas também a dos supervenientes.
Posto isso, vale salientar que as normas não são efetivas de per si, elas carecem de interpretação, até porque, não saem prontas das mãos do legislativo. Elas atingem todo a sua magnitude e operacionalidade apenas depois do trabalho dos intérpretes e aplicadores, a teor do caso concreto.
26 de Julho de 2013
REFERÊNCIAS
AMARAL, Rafael Caiado. Breves Ensaios acerca da hermenêutica constitucional de Peter Haberle. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/3995/breves-ensaios-acerca-da-hermeneutica-constitucional-de-peter-haberle, acesso 06 de julho de 2011, às 15h.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. Editora Saraiva, São Paulo. 2006.
ÉMILE, Durkheim. Tradução Pietro Nassetti. As Regras do método sociológico. Editora Martin Claret. São Paulo, 2001.
HESSE, Konrad. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. A Força Normativa da Constituição. Editora Ségio Antônio Fabris, Porto Alegre, 1991.
LASSALLE, Ferdinand. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. O que é uma Constituição? Editora Lider, Belo Horizonte, 2004.
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5.ªed., São Paulo, 1994.
ROSA. Felipe Augusto de Miranda. Sociologia do Direito o fenômeno jurídico como fato social. Editora Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2004.
[2] HESSE, Konrad. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. A Força Normativa da Constituição. Editora Ségio Antônio Fabris, Porto Alegre, 1991.
[3] LASSALLE, Ferdinand. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. O que é uma Constituição? Editora Lider, Belo Horizonte, 2004.
[4] REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5.ªed., São Paulo, 1994.
[5] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. Editora Saraiva. São Paulo, 2006. p. 424.
[6] ÉMILE, Durkheim. Tradução Pietro Nassetti. As Regras do método sociológico. Editora Martin Claret. São Paulo, 2001.
[7] ROSA. Felipe Augusto de Miranda. Sociologia do Direito o fenômeno jurídico como fato social. Editora Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2004.
Elaborado em julho/2013
Jacó Santos Pereira
Bacharel em Teologia e em Direito. Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor de Direito Penal e Processo Penal no Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro-Oeste (UNIDESC).