Kelsen se propôs a tratar de um assunto que se identifica como um dos mais controvertidos e intrincados na filosofia do direito, qual seja, a distinção entre a ordem jurídica e a ordem moral. 

Não se pode olvidar que a premissa Kelseniana foi a de definir o direito como o objeto da ciência jurídica, sendo necessário abstrair tudo o quanto não se inserisse como integrante de seu objeto.

 De fato, Kelsen eliminou de sua análise os elementos estranhos ao direito, tais como as concepções sociológicas, as ideologias, as valorações pessoais que pudessem prejudicar a concepção jurídica científica que teria apenas a norma em seu estado puro.

Sustentou Kelsen que o direito não se encontra relacionado a uma idéia de justiça universal ou atrelado ao atendimento pura e simplesmente de reclamos sociais.

Sua preocupação foi a de identificar e definir o objeto da ciência jurídica sem apelar para fundamentos extra-normativos. Com isso, não desconhece a importância das ciências sociais, da moral, da religião, apenas não aceitando que tais elementos representem fundamento da ordem jurídica.

Não obstante, reconheceu o jurista a existência de outros sistemas normativos sociais pretendentes à regulação da conduta humana, como é o caso da ordem pautada na moral.

Kelsen buscou separar a norma jurídica de outras normas sociais a fim de atender seu objetivo precípuo, que foi o de assegurar a pureza do direito, objeto da ciência jurídica, retirando as valorações que pudessem ser inseridas no estudo do objeto.

 Todavia, não se eximiu de avaliar as distinções entre a ordem positiva e a ordem moral, não obstante não aceitasse que a validade do direito passasse pela observância das regras morais.

O jurista foi crítico severo das teorias que procuraram fundamentar a diferença entre o direito e a moral a partir do critério da intenção normatizada pelo direito e da intenção preconizada pela moral.

Investigando então a diferença entre moral e direito concluiu que, sendo que as normas jurídicas existem para regular e disciplinar a vida em comunidade, a distinção entre direito e moral não reside simplesmente no fato de que a moral regula condutas internas e o direito, as externas, como muito se sustentou.

De fato, as condutas internas são repreendidas pela moral e também pelo direito. A norma moral tolhe a conduta interna assim como também o direito o faz.

Com efeito, sendo inequívoco que a norma moral não pode ser aplicada ao indivíduo que não esteja inserto numa sociedade, é inarredável concluir que certas condutas podem ser, a um só tempo, repreendidas pelo direito e pela moral.

 Nesse sentido, não se pode distinguir direito e moral a partir simplesmente das condutas humanas, na medida em que as normas de direito e da moral prescrevem condutas internas e externas, não sendo tais condutas, como de modo bastante comum se diz, associadas exclusivamente a um ou a outro sistema normativo.

De fato, o direito, assim como a moral são sistemas normativos que se preocupam com as condutas efetivadas e também com as intenções, conferindo relevo tanto aos interesses bem como às intenções que ensejaram a conduta contrária à preconizada como ideal e adequada.

Assim, segundo Kelsen, uma conduta apenas pode ter valor moral quando não só seu motivo determinante como também a própria conduta correspondam a uma norma moral, de modo que o motivo não pode ser separado da conduta motivada.

 Mas algo é certo, a intenção também pode ser objeto de análise do direito, sobretudo, quando feita de modo objetivo, ou seja, descrita normativamente.

O fato do sistema normativo baseado na moral não ser centralizado, porquanto, destituído de órgãos que funcionem segundo a divisão de trabalho como ocorre no direito também não tem o condão de diferenciar os sistemas normativos.

Com efeito, o direito e a moral não podem ser diferenciados no que tange à produção ou à aplicação de suas normas, já que a moral é também uma ordem positiva, uma vez que suas normas são criadas a partir de costumes ou de uma elaboração consciente.

 O que segundo Kelsen presta-se à distinção entre direito e moral é o fato de que no direito, como ordem coercitiva que é, se determina a aplicação da sanção para os casos de comportamentos diversos dos que preconizados pela ordem jurídica, ao passo que na moral a sanção consiste na desaprovação da conduta contrária às suas normas, não havendo assim o uso da coação física. 

Com efeito, sendo certo que tanto a norma jurídica como a norma moral prescrevem e vedam condutas humanas, a distinção entre tais ordenamentos reside exatamente na forma de prescrição e vedação destas condutas.

É que o direito preceitua o uso organizado e sistematizado da força estatal quando a conduta oposta à recomendada ocorre ao passo que a moral, quando suas normas são frustradas, apenas cuida de aplicar sanções de caráter transcendental sem apelo à coerção física.

Nesse contexto, distinguir direito da moral, é avaliar o tipo de sanção imposta ao infrator da conduta recomendada pela ordem social.

O direito é  então um ordem coerciva, concebida de acordo com um sistema escalonado de normas dizendo a sanção na hipótese da conduta contrária à conduta devida, e, a seu turno, a moral, não sendo resultante de um sistema normativo hierarquizado, não se aplica a sanção, mas aprova-se ou desaprova-se condutas humanas.

Sendo induvidoso que o direito se difere da moral, resta ainda explorar as relações entre essas duas ordens sociais.

Releva correto afirmar que o direito pode ser moral, conquanto não tenha necessariamente que o ser, já que, uma ordem social que não seja justa, em tese pode ser direito.

É que a análise que se faz do objeto da ciência jurídica prescinde de valorações de outras ordens, como justiça, acerto, bondade, moral. A mobilidade dos sistemas normativos sociais não permite de modo seguro afirmar uma moral universal, válida uniformemente no tempo e no espaço, o que conduz o estudioso a uma conclusão, segundo a qual o que é moral ou o que não é em nada gera influencia no que é direito.

Kelsen explana assim cerca da relatividade do valor moral concluindo que não se pode determinar de modo tranqüilo um elemento comum aos diversos sistemas morais existentes, não se podendo, como se disse anteriormente, com certeza e segurança  definir o que seja justo ou injusto, bom ou mal no tempo ou no espaço.

Arremata o jurista austríaco que o que é comum é que a norma moral comporte também um dever ser, uma forma, preconizando, portanto, uma conduta devida por um homem em relação à sociedade, sendo essa conduta estatuída pela norma moral como boa e a contrária a ela como má.

No entanto, as conclusões acerca da ordem moral, não obstante possam permitir influxos à ordem jurídica, não é determinante à sua formulação e é temática que escapa ao objeto da ciência jurídica, já que sua filosofia pressupõe a pureza metodológica consistente em abstrair todos os fenômenos pertencentes a outros campos que não o normativo.

Nesse passo, quando se afirma que o direito é parte da moral, não significa dizer que o direito contempla determinado conteúdo, mas sim que ele estabelece também um dever ser, não sendo a formulação uma questão de conteúdo e sim essencialmente de forma.

É que o significado de bom assume nesse contexto a noção do que deve ser, ou seja, aquilo que corresponde a uma norma, de sorte que o que está se afirmado na norma é bom e as condutas humanas contrárias são más. Frisa-se que isso se dá não em razão do conteúdo, mas da forma.

 Conclui o jurista que a validade de um ordenamento jurídico não mantém relação de dependência com a ordem social pautada na moral, já que os valores morais devem ser relativizados, não havendo assim uma ordem justa de modo absoluto.

A ordem jurídica é por assim dizer um conjunto de comandos que prescrevem um dever ser e a ciência jurídica procura descrever seu objeto sem a devida  implementação de valorações.

Nessa esteira de raciocínio, uma norma jurídica pode ser tida como válida ainda que contrarie uma moral particular, admitindo-se que não existe uma moral universal. A moral encontra variações no tempo e no espaço, não sendo estável não fornecendo, portanto, segurança jurídica, sendo então sugerida pelas vicissitudes de determinada sociedade.

 Desse modo, resta claro que a ciência jurídica não se preocupa em legitimar o direito a partir de argumentos fincados na moral, já que sua função cinge-se à descrição de seu objeto, a norma jurídica, concebida em sua pureza.

O direito então, segundo Kelsen não precisa satisfazer a uma exigência moral mínima, eis que, como se disse alhures, não existe uma moral absoluta com conteúdo comum a todos os sistemas morais, razão pela qual não se presta a fundamentar e justificar  o direito.

 

 

Elaborado em maio/2014

 

Como citar o texto:

SOUSA, André Lopes de. .Kelsen E A Dicotomia Entre As Normas De Direito E As Derivadas Da Moral. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 22, nº 1188. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/3166/kelsen-dicotomia-entre-as-normas-direito-as-derivadas-moral. Acesso em 19 ago. 2014.

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